Cooperação interdomiciliar: utilização de pesquisa para fundamentar a política A cooperação interdomiciliar é um recurso importante para as famílias de baixa renda, entretanto ela tem sido quase ignorada pelos doadores. Embora não se constitua em um substituto para os programas públicos, essa cooperação privada merece mais atenção nas pesquisas sobre pobreza, na análise de gênero, no planejamento dos projetos e nas estratégias de desenvolvimento. Os antropólogos e sociólogos reconheceram há muito tempo que a cooperação interdomiciliar, que se produz através da transferência de dinheiro, bens e serviços por meio das redes sociais, se constitui em um importante mecanismo de sobrevivência das famílias pobres nos países em desenvolvimento. Além de ajudar a atender às necessidades básicas em tempos de crise, as redes sociais mobilizam recursos para educação, habitação, infra-estrutura comunitária, desenvolvimento de pequenos negócios e viagens ao exterior para conseguir emprego. No entanto, as conclusões sobre a cooperação interdomiciliar teve pouca influência sobre a política de desenvolvimento. Por quê? Uma razão é que a maioria dos estudos enfocou comunidades específicas, utilizando um método qualitativo, com pequena discussão sobre a maneira de generalizar as conclusões. Como resultado, muitas aplicações potencialmente promissoras para a política de desenvolvimento não foram exploradas. A importância da cooperação interdomiciliar Estudos feitos na Colômbia, em El Salvador, no Quênia, Peru e nas Filipinas concluíram que mais de um em cinco domicílios recebe ajuda monetária (Tabela 1). As transferências de dinheiro são particularmente importantes para as famílias mais pobres e, em alguns casos, o auxílio representa quase metade da renda familiar. Estudos recentes também relataram a importância da cooperação interdomiciliar no Leste Europeu e na Ásia Central. Na Bulgária, na República Tcheca, no Quirguistão, na Polônia, na Rússia e na Ucrânia, entre 21 e 76% dos domicílios fornecem ou recebem dinheiro através de redes privadas. Na Rússia, as ajudas recebidas por 5% das famílias mais pobres equivalem a mais de um terço dos ganhos com salário formal e, na Ucrânia, aproximadamente três quintos. Nesses países, os ajustes em nível domiciliar auxiliam as pessoas que não conseguem bons empregos no setor formal. Além disso, uma ampla cooperação interdomiciliar pode ajudar a explicar por que houve tão poucos protestos sociais na Rússia apesar de uma grande queda dos salários reais. Contudo, essa ajuda mútua não elimina a pobreza (Barberia, Johnson e Kaufmann, 1998). No nível comunitário, um dos estudos mais completos sobre cooperação através de redes sociais foi conduzido na zona sudeste de Cartagena, na Colômbia, em 1982. Quase metade dos domicílios mencionados no relatório havia recebido uma ajuda em dinheiro ou espécie, no mês anterior à pesquisa. No quintil mais pobre, os auxílios representavam 52% da renda das famílias administradas por mulheres e 40% da renda naquelas administradas por homens (Bamberger, Kaufmann e Vélez, 1999). O estudo mostrou que a cooperação é uma importante fonte de auxílio dos domicílios mais abastados para seus parentes e amigos mais pobres, além de atuar como um sistema de seguro social informal entre famílias de baixa renda. Em 1998, durante o trabalho de campo de acompanhamento, os pesquisadores puderam localizar a maioria das famílias de Cartagena, a partir das quais haviam sido preparados estudos de caso, há mais de 15 anos. Embora a cooperação ainda fosse importante, o percentual de famílias no quintil mais pobre, que recebia auxílio monetário, havia diminuído de quase 50% para apenas 23%. Esse estudo realça um ponto importante: levando-se em conta a pobreza e a vulnerabilidade da maioria dos domicílios incluídos nas redes de apoio, a cooperação não é uma fonte confiável de segurança a longo prazo. Embora os auxílios mútuos sejam, com freqüência, uma fonte importante de segurança e apoio para os pobres, nenhuma pesquisa, em qualquer país em desenvolvimento, concluiu que mais da metade das famílias pobres as recebesse. De fato, normalmente, a proporção é muito menor. A cooperação é de grande importância para os pobres e é necessário compreender muito melhor o seu funcionamento. Porém, ela deve ser considerada como um complemento e não como substituta da assistência pública. O que motiva a cooperação interdomiciliar? Os pesquisadores propuseram muitas explicações para a cooperação interdomiciliar através de transferências de dinheiro, bens e serviços. Explicações antropológicas e sociológicas Durante quase 50 anos, as redes sociais têm sido objeto de interesse na literatura etnográfica sobre a pobreza urbana. Os estudos pioneiros de Oscar Lewis sobre a "cultura da pobreza", na Cidade do México, em Porto Rico e Nova York, nos anos 50 e 60, concluíram que as famílias pobres intercambiavam serviços informais de crédito e compartilhavam alimentos, roupas e mobiliário. Na falta de acesso aos serviços públicos e com suas rendas baixas e irregulares, as famílias pobres se apoiavam em seus parentes, vizinhos e amigos para assegurar suas necessidades básicas (Lewis, 1961). Muitos pesquisadores subseqüentes confirmaram a importância dos sistemas de cooperação em rede nos países industrializados e em desenvolvimento. Uma forma diferente de reciprocidade, ocorrida nas Filipinas, chama-se utang na loob ou dívida de gratidão. Quando uma família recebe assistência de outra, a ela vinculada por laço de parentesco ou social, esta será impelida a retornar a ajuda de bom grado, para evitar permanecer em dívida permanente com o doador. A obrigação de restituir o auxílio recebido passa de uma geração para outra. Apoio entre gerações Cox e Jimenez (1990), seguindo a tradição de uma geração anterior de economistas, mostraram que a ajuda mútua entre gerações atua como um sistema de seguridade social informal através do qual crianças tomam conta de seus pais em idade avançada ou os pais ajudam seus filhos em momentos de emergência. Estratégias para que mulheres e famílias chefiadas por mulheres enfrentem os impactos das crises As mulheres e, principalmente, as famílias chefiadas por mulheres suportam, cada vez mais, o impacto das crises econômicas e, em geral, cabe a elas manter a família unida durante essas pressões. Em muitos países, as relações de gênero estão mudando devido ao crescimento da participação da mão-de-obra feminina e da incapacidade dos homens de atuar no seu tradicional papel de principal arrimo de família. Como a maioria das mulheres tem menos acesso ao trabalho formal, aos mercados financeiros e às redes políticas do que os homens, elas precisam se apoiar mais nas redes informais para manter o padrão de vida da família. As redes de mulheres pobres e daquelas que chefiam suas famílias, freqüentemente, intercambiam bens e serviços que os domicílios com renda mais alta podem adquirir de imediato. Além disso, as mulheres que administram seus próprios negócios se apóiam nas redes informais para cuidar de seus filhos, obter proteção da polícia e assistência para conseguir crédito, clientes e matérias primas. Modelos teóricos de intercâmbio Sahlins (1965) trata da cooperação interdomiciliar ou entre grupos sociais maiores como modelos de intercâmbio ou de reciprocidade, que ocorrem continuamente. Em um dos extremos, a ajuda mútua toma a forma de um presente sem expectativa de reciprocidade. Fora da perspectiva altruísta, os recursos são transferidos sabendo-se que serão devolvidos se e quando for possível fazê-lo, mas sem qualquer planejamento ou forma específica de pagamento ­ como as mesadas oferecidas pelos pais a seus filhos. Mais além da série contínua, estão as transações orientadas para o mercado, nas quais cada parte visa maximizar a sua vantagem na transação. No outro extremo está a "reciprocidade negativa", na qual as partes tentam extrair bens e serviços entre si à força. Sahlins influenciou uma geração de cientistas sociais. Larissa Lomnitz estudou os padrões de intercâmbio recíproco a longo prazo entre parentes e vizinhos em uma favela fora da Cidade do México. Como Oscar Lewis, ela concluiu que as condições econômicas instáveis levavam muitas famílias a desenvolverem redes de intercâmbio, nas quais obtinham recursos para se manter auto-suficientes e maximizar "um bem importante, ou seja, a segurança" (Lomnitz, 1977, p. 190). A confiança mútua entre as famílias da rede é um elemento importante dessas relações. Inspirado pela teoria redistributiva de justiça social de John Rawl e fundamentando-se no trabalho acima citado, Daniel Kaufmann (1982) demonstra que as famílias pobres, reconhecendo que suas receitas flutuantes não podem cobrir todas as suas necessidades de forma consistente, se engajam em uma estrutura de intercâmbio interdomiciliar "contratual", regida por um contrato implícito de trocas recíprocas ao longo do tempo, para o estabelecimento de ajuda mútua em tempos de crise. Em outras palavras, um mecanismo de seguro informal com uma rede baseada nas relações de parentesco, comunitárias, ou em ambas, cujo propósito é diminuir o risco de que qualquer das famílias participantes não consiga atender às suas necessidades básicas ao longo do tempo. Os "doadores" consideram os auxílios como investimento, esperando uma futura reciprocidade, caso suas rendas decresçam. Implicações da política A política de desenvolvimento empenha-se em descobrir redes de segurança rentáveis para grupos vulneráveis. Embora a cooperação particular beneficie apenas uma fração das famílias vulneráveis e pobres, seu tamanho é suficiente para merecer uma análise cuidadosa no sentido de que poderia se constituir em um complemento das finanças públicas. Esse aspecto levanta algumas questões para a política: · Qual seria o efeito líquido causado pelas transferências redistributivas públicas na saúde, segurança para a velhice e assemelhados, depois que os seus efeitos sobre os fluxos líquidos privados fossem levados em conta? · Alguns serviços - saúde, educação, suplementos nutricionais ­ podem ser fornecidos de modo mais eficiente através da cooperação privada em vez de pela rede pública? · Alguns grupos ­ minorias étnicas, mulheres que são chefes de família ­ podem ser atingidos de modo mais efetivo através dos auxílios mútuos privados? · As redes privadas informais podem tornar as metas do setor público mais eficazes? Diferentes questões são levantadas durante o planejamento dos projetos de habitação, transporte, fornecimento de água e desenvolvimento urbano, por exemplo, para alavancar a cooperação privada. Os estudos dos programas de habitação de baixo custo do Banco Mundial concluíram que as pessoas estão, freqüentemente, querendo fornecer dinheiro, materiais e trabalho para ajudar seus pais, filhos ou parentes a formar capital, nas oportunidades de investimento oferecidas pelo acesso ao mercado de serviços. Os mesmos incentivos aumentam quando os projetos de transporte criam oportunidades para que pequenos empresários entrem no mercado de transporte de passageiros ou de bens. As questões a serem consideradas incluem: · Como podem ser estimados o volume e a distribuição da cooperação privada gerados pelos diferentes tipos de projetos? · A cooperação pode ser medida com suficiente precisão e confiabilidade a fim de ajudar a estimar a capacidade e disponibilidade dos diferentes grupos em pagar por bens (habitação, estradas) e serviços (água, transporte, saúde, educação)? · Como a cooperação privada pode ser alavancada para os projetos de infra-estrutura social ou física, como habitação, construção e projetos menores de irrigação? Finalmente, as redes interdomiciliares representam um aspecto crucial, porém em grande parte não explorado, do capital social. A disposição para o engajamento nas redes de intercâmbio baseia-se na confiança e em várias dimensões da solidariedade social, que não compreendemos inteiramente. Um melhor conhecimento dos determinantes e das utilizações da cooperação interdomiciliar, bem como da maneira como políticas públicas podem estimular esses auxílios mútuos, poderia ajudar o Banco Mundial a fortalecer o capital social como uma pedra fundamental da Estrutura Completa do Desenvolvimento. Bibliografia adicional Bamberger, Michael, Daniel Kaufmann, and Eduardo Velez. 1999. "Interhousehold Transfers and Survival Strategies of Low- income Households." World Bank, Wash- ington, D.C. Barberia, Lorena, Simon Johnson, and Daniel Kaufmann. 1998. "Social Networks in Transition" William Davidson Institute Working Paper 102. University of Michi- gan. Cox, Donald, and Emmanuel Jimenez. 1990. "Achieving Social Objectives through Pri- vate Transfers: A Review." World Bank Research Observer 5(2): 205-18. Kaufmann, Daniel. 1982. "Social Interac- tions As a Strategy of Survival among the Urban Poor: A Theory and Some Evi- dence." Ph.D. diss. Harvard University, Department of Economics, Cambridge, Mass. Lewis, Oscar. 1961. The Children of Sanchez. New York: Random House. Lomnitz, Larissa. 1977. Networks and Mar- ginality: Life in a Mexican Shantytown. New York: Academic Press. Mukras, Mohammad, John Oucho, and Michael Bamberger. 1985. "Resource Mobilization and the Household Economy in Kenya." Canadian Journal of African Studies 19(2). Sahlins, Marshall. 1965. "On the Sociology of Primitive Exchange." In M. Banton, ed., The Relevance of Models for Social Anthro- pology. London: Tavistock. Esta nota foi escrita por Michael Bamberger (Sociólogo Sênior, Divisão de Gênero, Rede PREM), Daniel Kaufmann (Gerente Sênior, Governança, Regulação e Finanças, Instituto do Banco Mundial) e Eduardo Velez (Chefe de Setor, Desenvolvimento Humano, Unidade Gestora do México). Se você tiver interesse em artigos semelhantes, considere a possibilidade de participar do Grupo Temático de Gênero e Desenvolvimento. Entre em contato com Wendy Wakeman (x 33994) ou clique em Thematic Groups, na Rede PREM. Page 1 Banco Mundial PREM M a r ç o 2 0 0 0 n ú m e r o 3 6 Pobreza e Gênero Vice-presidência para economia do desenvolvimento e rede de redução da pobreza e gestão econômica Page 2 ­ Table 1 Tabela 1 Conclusões e a magnitude do impacto da cooperação interdomiciliar País, ano Conclusões Brasil (Nordeste), 1988/89 38% das mulheres adultas nas comunidades de amostra ajudaram a educar uma criança que não era sua Colômbia (Cartagena), 1998 23% das famílias no quintil de mais baixa renda receberam auxílio e 13% remeteram ajuda equivalente a 50% e 3%, no quintil de renda mais alta El Salvador (Santa Ana), 1976 O auxílio mútuo foi destinado a 58% das famílias no decil de mais baixa renda e 48% no decil de menor renda seguinte, representando 41% da receita familiar de todos os domicílios nesses decis Índia, 1975-83 93% dos domicílios rurais receberam auxílio equivalente, em média, a 8% da renda familiar Indonésia, 1982 31% dos domicílios rurais receberam auxílio equivalente, em média, a 10% da renda familiar Quênia, 1974 O quintil mais pobre das famílias urbanas recebeu em média 41% de sua renda na forma de ajuda Malásia, 1977-78 19 a 30% das famílias receberam auxílio equivalente, em média, a 11% de sua renda familiar Peru, 1985 22% das famílias urbanas forneceram e 23% receberam auxílio equivalente, em média, a 2,9% da renda das famílias receptoras Filipinas (Tondo), 1978 43% das famílias no terço mais pobre receberam auxílio equivalente, em média, a 23% da renda familiar Rússia (trabalhadores urbanos), 1996 18% das famílias receberam auxílio equivalente, em média, a 1,8% da renda familiar Ucrânia (trabalhadores urbanos) 1996 17% das famílias receberam auxílio equivalente, em média, a 1,7% da renda familiar Fonte: Mukras, Oucho e Bamberger, 1985; Barberia, Johnson e Kaufmann, 1998. Veja também as citações em Bamberger, Kaufmann e Vélez, 1999, e Cox e Jimenez, 1990. Page 2 Nota PREM 36 Março 2000 Page 3 Nota PREM 36 Março 2000 Page 3 ­ Margin text As mulheres freqüentemente suportam o impacto das crises econômicas Page 4 ­ Margin text Precisamos compreender melhor os determinantes e usos das transferências interdomiciliares Page 4 Esta série de notas destina-se a resumir as recomendações sobre práticas corretas e as principais políticas sobre os tópicos relacionados à PREM. As Notas PREM são distribuídas para toda a equipe do Banco Mundial e também estão disponíveis no site da rede PREM na Web, (http://prem). Se você tiver interesse em escrever uma Nota PREM, envie a sua idéia por correio eletrônico para Sarah Nedolast. Para obter cópias adicionais desta nota, entre em contato com o PREM Advisory Service, no telefone x87736. Preparado para a equipe do Banco Mundial