Manual Jurídico de Formação para Profissionais sobre a Lei contra a Mutilação Genital Feminina/Excisão na Guiné-Bissau Abril 2019 1 Algumas comunidades, como é o caso de comunidades praticantes na Guiné-Bissau, acreditam que a MGF/E é essencial para que a jovem menina se torne uma mulher e membro de pleno direito da sua própria comunidade; só assim poderá adquirir o direito de se associar a outras mulheres da sua faixa etária, participar em todos os rituais ancestrais e até constituir família. Hoje temos a noção e o conhecimento das consequências nocivas da MGF/E para a saúde das mulheres e das meninas e que é crime no nosso país. Devemos por isso unir esforços para conseguirmos que as meninas da Guiné-Bissau e na Diáspora nasçam, cresçam e se desenvolvam num ambiente favorável, protegido de qualquer prática nefasta e que garanta a promoção dos seus plenos direitos. Quem ama protege, por isso vamos unir-nos para o abandono das práticas nefastas, seja em que país for garantindo a promoção dos direitos humanos das mulheres e jovens raparigas. Fatumata Djau Baldé Presidente do CNAPN – Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança Ficha técnica: Manual Jurídico de Formação para Profissionais sobre a Lei contra a Mutilação Genital Feminina/Excisão na Guiné-Bissau Autores: Sara Guerreiro e Hélder Pires Coordenação e Supervisão técnica: Isabella Micali Drossos (Banco Mundial) Fatumata Djau Baldé (Comité Nacional para o Abandono de Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança) e Ansumane Sanhá (Gabinete de Informação e Consulta Jurídica) Publicação financiada pelo Fundo Fiduciário Nórdico (Nordic Trust Fund) e Banco Mundial Abril 2019 2 Manual Jurídico de Formação para Profissionais sobre a Lei contra a Mutilação Genital Feminina/Excisão na Guiné-Bissau Índice Acrónimos e Abreviaturas............................................................................................................................ 4 Agradecimentos............................................................................................................................................ 5 1. Enquadramento - o que é necessário saber sobre a Mutilação Genital Feminina?........................... 8 1.1. Conceito ........................................................................................................................................ 8 1.2. Contexto Internacional ................................................................................................................. 9 1.3. Contexto Nacional ....................................................................................................................... 11 1.4. Causas e consequências .............................................................................................................. 15 1.5. A MGF enquanto forma de violência contra as mulheres .......................................................... 20 2. Enquadramento internacional e regional .......................................................................................... 22 2.1. Enquadramento Internacional .................................................................................................... 22 2.2. Enquadramento Regional ........................................................................................................... 24 2.3. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP ............................................................... 25 3. Enquadramento nacional e Lei contra a Excisão Feminina na Guiné-Bissau: anotações de conteúdo ..................................................................................................................................................... 26 3.1. MGF e os direitos fundamentais em causa ................................................................................. 26 3.2. Âmbito e conceito de MGF na lei ................................................................................................ 29 3.3. MGF como crime ......................................................................................................................... 32 3.4. MGF e proteção das crianças ...................................................................................................... 34 3.5. MGF e disposições criminais relevantes ..................................................................................... 36 3.6. MGF, assistência e sigilo profissional .......................................................................................... 42 3.7. MGF e medidas de prevenção .................................................................................................... 44 3.8. MGF e asilo.................................................................................................................................. 45 3.9. Referência à Estratégia Nacional o abandono da MGF............................................................... 47 4. Guias de procedimentos – metodologia............................................................................................ 48 4.1. Introdução ........................................................................................................................................ 48 4.2. Orientações para elaboração dos guias de procedimentos............................................................. 49 Anexo 1 – Lei n.° 14/2011, de 6 de julho .............................................................................................. 52 Anexo 2 – Jurisprudência ....................................................................................................................... 55 Tribunal Regional de Bafatá: Proc. n.º 63/2011, 25 de Janeiro de 2012 .............................................. 55 Tribunal Regional de Bissau – Vara Crime: Proc. n.º 98/2014, de 17 de Dezembro de 2014 .............. 59 3 Tribunal Regional de Bafatá: Proc. n.º 26/2015, de 21 de Maio de 2015 ............................................ 66 Tribunal Regional de Gabú: Proc. n.º 071/2014, de 12 de Março de 2015 .......................................... 68 Lista de Imagens e Tabelas ......................................................................................................................... 73 Bibliografia.................................................................................................................................................. 74 Acrónimos e Abreviaturas ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados AMIC Amigos da Criança (ONG) CAJ Centros de Acesso à Justiça CDC Centro de Controlo e Prevenção de Doenças CDC Convenção dos Direitos da Criança CEDAW Comité para a Eliminacao de todas as formas de Discriminacao contra mulheres CEDEAO Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental CNAPN Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas CP Código Penal CPC Código de Processo Penal CPLC Comunidade dos Países de Língua Portuguesa FCSH-UNL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa GBM/BM Grupo Banco Mundial (World Bank Group) HIV/SIDA Síndrome da Imunodeficiência Adquirida IMC Instituto da Mulher e Criança INE Instituto Nacional de Estatística INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa LGDH Liga Guineense dos Direitos Humanos MGF ou MGF/E Mutilação genital feminina ou mutilação genital feminina / Excisão (Kriol: fanado) MICS Inquérito aos Indicadores Múltiplos NU Nações Unidas OMS Organização Mundial da Saúde ONG Organização não-governamental PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento UE União Europeia UEFGM Unidos para acabar com a MGF UNFPA Fundo de População das Nações Unidas UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância VBG Violência Baseada no Género 4 Agradecimentos Na Guiné-Bissau, cerca de metade das mulheres são afetadas pela Mutilação Genital Feminina (MGF). Em novembro de 2018, uma equipa do Banco Mundial visitou a Guiné-Bissau, para trabalhar em conjunto com parceiros e colegas nacionais para realizar atividades no âmbito do Fundo Fiduciário # TF0A8091 “Fundo Fiduciário Nórdico: Guiné-Bissau: Redes de Segurança e Projeto de Serviços Básicos” (MGF e Direitos Humanos) (P163901), com o objetivo de promover advocacia e formação para o abandono da MGF. O Manual de Formação Jurídica para Profissionais da Lei contra a Mutilação Genital Feminina / Excisão na Guiné-Bissau foi desenvolvido como parte das atividades realizadas e finalizado entre julho e novembro de 2018. A equipa realizou uma missão de campo em Bafatá, onde a prevalência de MGF de mulheres e meninas é de 87%. Foram realizadas as seguintes atividades: (a) campanhas de alfabetização jurídica em sete (7) comunidades para portadores de deveres e detentores de direitos para promover o conhecimento da Lei contra a MGF por líderes comunitários, sobreviventes de MGF, mães de meninas em risco de MGF e agentes comunitários de mudança. A literacia jurídica é um elemento central de uma abordagem contra esta prática prejudicial baseada nos direitos humanos, uma vez que a MGF não é vista geralmente como uma ofensa criminal, mas sim como uma prática tradicional “necessária”. Esta atividade incluiu, portanto, formação em literacia jurídica sobre a criminalização da MGF para professores, líderes religiosos, líderes tradicionais de justiça, líderes comunitários, grupos de mulheres e Fanatecas - mulheres que continuam a praticar a MGF como uma atividade tradicional e remunerada, não obstante a existência da lei. Essas campanhas de alfabetização combinaram meios de comunicação (rádio, panfletos, músicas populares, manuais informativos, pósteres, T-shirts) e campanhas comunitárias de divulgação, em colaboração com outras entidades, como o Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas (CNAPN), o Gabinete de Informação Jurídica e Assistência do Ministério da Justiça (GIJCU) que supervisiona os Centros de Acesso à Justiça (CAJs) - e a Associação de Mulheres Juristas. (b) formação de juízes, advogados, procuradores, funcionários de justiça, polícias, assistentes sociais, profissionais de saúde, líderes da sociedade civil, funcionários regionais, representantes de organizações internacionais e membros de equipa de projetos do Banco Mundial sobre o conteúdo e a aplicação da Lei de 2011 contra a MGF, incluindo uma formação sobre o tratamento especial necessário para responder adequadamente a estes casos sensíveis. O sistema judiciário na Guiné-Bissau tem respondido à Lei de 2011 contra a MGF: 12 pessoas foram consideradas culpadas desde 2011 e 8 delas foram condenadas a cumprir pena na prisão. Estes são elementos muito encorajadores. O conhecimento da lei por profissionais da saúde e jurídicos é fundamental na promoção de uma abordagem baseada nos direitos humanos para diminuir a MGF na Guiné-Bissau e aumentar a aplicação da lei e um processo penal eficaz e eficiente. Este Manual foi apresentado e validado durante a formação jurídica e subsequentemente revisto em conformidade. c) Criação e operacionalização de uma linha telefónica dedicada às questões jurídicas relacionadas com a MGF, para fornecer informações gerais e aconselhamento, com vista a proteger as vítimas e / ou prevenir a MGF. A nossa equipa incluiu a Luiza Bogado e a Sara Guerreiro, consultoras jurídicas, Fanis Labropoulos, cineasta e eu própria, Isabella Micali Drossos, conselheira sénior no Banco Mundial. Na Guiné-Bissau, fomos apoiados por Sonia Sanchez, diretora de operações, Rama Barbosa, assistente de programa, e Djacumbá Cassamá, assistente de equipa. Os nossos parceiros e colegas em Bissau incluíram a Fatumata 5 Baldé, presidente do CNAPN; Hélder Pires e Maimuna Sila, consultores jurídicos, Ansumane Sanhá do Gabinete de Informação e Assistência Jurídica e o Professor Malam Djassi, teólogo. As atividades foram recolhidas num vídeo produzido por Fanis Labropoulos (“uma imagem vale mais que mil palavras”). O link para este vídeo pode ser encontrado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=VqonkiUuLSw&t=34s Os nossos agradecimentos especiais vão para: (a) os nossos colegas no Banco Mundial: Philippe Auffret, Camila Lindstrom, Kimie Velhagen e Paula Tavares. (b) as nossas contrapartes nacionais: Fatumata Baldé, presidente do CNAPN; O professor Malam Djassi, teólogo, e Ansumane Sanhá, presidente em exercício do GICJU. (c) os nossos consultores: Luiza Bogado, Sara Guerreiro, Hélder Pires e Maimuna Sila, consultores jurídicos; Fanis Labropoulos, cineasta; Rita Santos, que colaborou na revisão final e tradução deste Manual. (d) os restantes colegas em Bissau e em Brasília: Ramatulay Barbosa, Djacumba Cassamá, Sonia Sánchez, Amadou Ba, Alexandra Leão, Carolina dos Santos e Adriane Landwehr. Isabella Micali Drossos Leituras recomendadas Conceito MGF, causas, consequências: • Guia de Formação Académica Multissetorial Sobre Corte/Mutilação Genital Feminina, Dir. Adriana Kaplan e Laura Nuño Gómez, in: https://mapfgm.eu/wp-content/uploads/2017/04/Guia- Portugues.pdf • Eliminação da Mutilação Genital Feminina – Declaração conjunta OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM, OMS. Lisboa: Associação para o Planeamento da Família, 2009. In: http://www.who.int/eportuguese/publications/mutilacao.pdf?ua=1 • II Programa de Acção para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina no âmbito do IV Plano Nacional para a Igualdade – Género, Cidadania e Não Discriminação (2011-2013), Grupo de Trabalho Inter-sectorial sobre a Mutilação Genital Feminina. In: https://www.cig.gov.pt/wp- content/uploads/2013/12/II_Programa_Accao_Mutilacao_Genital_Feminina.pdf MGF na Guiné-Bissau: • Estratégia Nacional para o abandono da MGF/E, 2018-2022, Guiné-Bissau, Coordenação: Fatumata Djau Baldé, 2018. 6 • Estudo sobre a situação das práticas nefastas e violência doméstica nas Regiões Bafatá, Oio, Cacheu e Bissau, Cleunismar Silva, LGDH - Setembro 2017. In: https://drive.google.com/file/d/1JUTY0MMDaX_IZEEhQCZuVJsvCfh_tX1N/view • Corte/ Mutilação Genital Feminina: Respostas Institucionais Integradas, Lisboa, 28 e 29 de setembro de 2017, Atas do III Seminário Internacional do Programa Académico Multissetorial para o Combate e Prevenção do Corte / Mutilação Genital Feminina (MAP-FGM), Organizado por: Clara Carvalho Ricardo Falcão Marta Patrício. In: http://www.mgf.uab.es/eng/scientific_publications/ProceedingsIII_MAPFGM.pdf?iframe=true&widt h=100%&height=100% • Relatório Nacional sobre a Aplicação/Implementação da Declaração e do Plano de Acão de Beijing (1995), Fatumata Djau Baldé e Paulina Mendes. In: https://www.uneca.org/sites/default/files/uploaded- documents/Beijing20/NationalReviews/guinea_bissau_beijing_report_0.pdf Enquadramento internacional e legislação comparada sobre a MGF: • World Bank. Compendium of International and National Legal Frameworks on Female Genital Mutilation, February 2018, World Bank (em inglês). In: http://documents.worldbank.org/curated/en/828661517490252879/Compendium-of-international- and-national-legal-frameworks-on-female-genital-mutilation Vídeos recomendados • Mutilação genital feminina: O crime do qual muito poucos falam/Euronews/2016/ Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=pfmJ64QjxiE (em português) • Documentário "Este é o meu corpo"/Município da Amadora/2017/Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=aFxwgRkmXgY (em português) • The Cruel Cut - Engaging Young Men/Leyla Hussein: https://vimeo.com/108707482 (em inglês) 7 1. Enquadramento - o que é necessário saber sobre a Mutilação Genital Feminina? Objetivos deste módulo: No final deste módulo, os participantes devem conseguir: 1. Descrever o contexto internacional e nacional sobre MGF 2. Descrever o que é a MGF 3. Descrever as causas e consequências da MGF 4. Caraterizar a MGF como uma forma de violência contra as mulheres 1.1. Conceito A MGF/excisão feminina1 (MGF) é definida pela OMS como “todas as intervenções que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos externos ou que provoquem lesões nos órgãos genitais femininos por razões não médicas” (World Health Organization, UNICEF, and United Nations Population Fund 1997) e (OMS 2009). Os tipos mais comuns de MGF são os seguintes: Tipo I: remoção parcial ou total do clítoris e/ou do prepúcio (clitoridectomia) Tipo II: remoção parcial ou total do clítoris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios (excisão) Tipo III: Estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clítoris (infibulação) Fonte das imagens: OMS/(Krupa 2017) Tipo IV: Todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: punção/picada, perfuração, incisão/corte, escarificação e cauterização (OMS 2009).2 “[...] sua origem remonta a tempos anteriores ao do surgimento da religião muçulmana. Não está claro, contudo, quando ou onde a prática iniciou. Alguns autores sugerem que foi no 1 Apesar de o termo “mutilação genital feminina” ser preferível, por exprimir claramente a gravidade da prática bem como por corresponder ao termo adotado pelas organizações internacionais que reportam esta prática, o termo utilizado pela legislação guineense é “excisão feminina”. Assim, utilizar-se-á neste manual de forma indistinta a expressão MGF ou excisão feminina. 2 O tipo IV inclui ainda, de acordo com a OMS, práticas como o estiramento/alongamento dos lábios vaginais e a introdução de substâncias nocivas na vagina. De referir que o tipo IV está já documentado em Moçambique, na província de Tete. De facto, nesta região, é comum as meninas começarem, a partir dos 8/9 anos, a alongar a labia minora (localmente designada por puxa-puxa ou kukhuna ou kupfuna). Nesta província, é também comum as raparigas/mulheres introduzirem produtos na vagina de modo a apertá-la, secá-la ou para tratar doenças (Bagnol e Mariano, 2012). Fonte: (LISBOA et al. 2015). 8 Antigo Egito. Outros dizem que a MGF é um velho ritual africano que chegou ao Egito por difusão. Há ainda quem levante a hipótese de a prática ter sido aplicada nas mulheres negras à época do velho mercado árabe de escravos ou de que ela tenha sido introduzida quando o Vale do Nilo foi invadido por tribos nômades cerca de 3.100 a.C. [...] Existem diversas crenças a manter a prática da MGF. Diz-se que os homens a quiseram pelas seguintes razões: assegurar seus poderes; acreditar que suas mulheres não iriam procurar outros genitores ou que homens de outras tribos não as violariam; crer que as mulheres perderiam o desejo sexual. Em algumas tribos, acredita-se que o clitóris é diabólico e que se tocar na cabeça da criança durante o parto, ela estará condenada a inimagináveis desgraças. Outros pensam que essa falsa representação de um pênis minúsculo faria sombra à virilidade masculina” (Piacentini 2007, 120). A idade da rapariga ou da mulher em que se pratica a MGF e o tipo de MGF praticada dependem dos vários fatores culturais que determinam a existência dessa prática. A MGF é geralmente praticada em raparigas com idades entre os 4 e os 12 anos, apesar de em algumas culturas se realizar mais cedo, logo após o nascimento ou, o mais tardar, antes do casamento ou do parto (UEFGM 2019b). 1.2. Contexto Internacional Estima-se que cerca de 200 milhões de mulheres e raparigas em 30 países diferentes tenham sido sujeitas a MGF. Ademais, cada dia, 8.000 raparigas encontram-se em risco– 3 milhões de raparigas e mulheres por ano (UNICEF 2016; UEFGM 2019b). Os procedimentos de MGF são conduzidos frequentemente por mulheres da comunidade, especialmente designadas para o efeito. Por vezes, parteiras tradicionais ou pessoas com poderes mágicos e curativos ou mesmo barbeiros da aldeia desempenham estas funções. A MGF é também praticada em hospitais e clínicas por profissionais de saúde que utilizam anestesias e antissépticos. A OMS expressa a sua oposição inequívoca à medicalização da mutilação genital feminina, alertando para que, em nenhuma circunstância, seja praticada por profissionais ou instituições de saúde. A MGF tem impactos muito negativos na saúde e bem-estar da mulher. A título de exemplo, algumas dessas consequências são hemorragias grave, dores intensas, febre, problemas de micção, cicatrização de feridas, problemas menstruais, infeções, tétano, infertilidade, insuficiência renal, fístula, VIH / SIDA, ansiedade, perda de memória, stress pós-traumático, complicações sexuais, bem como complicações no parto, aumento do risco de morte de recém-nascidos, nascimentos prematuros, etc. Embora o continente africano seja indicado como um exemplo de região com altos níveis de prevalência (ver imagem 1), a MGF é praticada em todo o mundo (ver imagens 2, 3 e 4). 9 Assim, no continente Africano, países com elevadas taxas de prevalência (85%) incluem a Guiné-Conacri, a Serra Leoa, a Somália, o Egito, a Eritreia e o Mali. Porém, a MGF também é praticada em comunidades da Ásia (por exemplo, na Índia, na Malásia e na Indonésia) e do Médio Oriente (Irão, Iraque, comunidades Curdas, Paquistão, Arábia Saudita e Iémen), entre certos grupos étnicos da América Central, do Sul e do Norte e na Austrália, assim como na Europa, e nos EUA, especialmente entre comunidades migrantes oriundas de países afetados pela MGF. Imagem 1 – Percentagem de raparigas e mulheres entre os 15 e os 49 anos que sofreram MGF, por país no continente africano. Fonte: (UNICEF 2013a) Imagem 2 – Prevalência de MGF no mundo. Fonte: (The European Post, 2018) (Com base no mapa Belga GAMS, dados da UNICEF, 2013) 10 Reino Unido EUA 7,000 6,159 mulheres num ano 600,000 6,000 507,000 mulheres 500,000 5,000 400,000 4,000 300,000 3,000 2,000 200,000 1,000 100,000 0 0 Vitimas de MGF 2018 (1 ano) Vitimas ou risco de MGF nos EUA Imagem 3 – Números de MGF /RU (1 ano) Imagem 4 - Números de MGF/EUA Fonte: (Clinical Audit and Registries Management Service 2018) Fonte: CDC (2013)3 (...) em Portugal, o número de mulheres em idade fértil que poderá ter sido submetida à prática da MGF/C ronda as 5.246. Ao ter em conta todas as mulheres com mais de 15 anos, esse valor sobe para os 6.576 (...) os números demonstram que o país que mais contribui para o total de mulheres vítimas de MGF é a Guiné-Bissau (...) este país representa cerca de 90% das mulheres que se estima terem sido sujeitas à MGF (LISBOA et al. 2015) A MGF é uma grave violação dos direitos humanos, um tipo de tortura e uma forma grave de violência contra mulheres e meninas. A MGF constitui uma violação de direitos humanos básicos das mulheres, incluindo o direito de viver uma vida livre de violência, o direito à integridade física, o direito à não discriminação e o direito de proteção contra tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. 1.3. Contexto Nacional O inquérito do MICS (2014) mostra que 44,9% das mulheres e 30% das raparigas na Guiné- Bissau sofreram MGF, e 500.000 estão sob o risco de sofrer MGF. Mais de 80% das mulheres e meninas são excisadas antes dos 14 anos, com mais de 40% dos episódios de excisão a acontecerem antes dos 4 anos de idade (UNICEF 2016). A MGF é mais comum entre mulheres iletradas (61,8%) do que entre aquelas com educação primária (41,2%) e secundária (24,2%) (MICS 2014). 3 Centers for Disease Control and Prevention, Refugee Health Guidelines, Female Genital Cutting (also known as female circumcision, female genital mutilation, and female genital excision). In: https://www.cdc.gov/immigrantrefugeehealth/guidelines/domestic/general/discussion/female-genital-cutting.html 11 Na Guiné-Bissau, cerca de metade das mulheres são afetadas pela MGF. Na Guiné-Bissau, a MGF está presente em todas as regiões: Tombali, Quinara, Oio, Biombo, Bolama /Bijagós, Bafatá, Gabú, Cacheu e Bissau, sendo que a prevalência e tipo de procedimento varia amplamente entre e dentro de regiões e conforme os grupos étnicos (ver Imagem 5). A prática é altamente concentrada na zona Leste (91,5%) e significativamente menor na zona Oeste (32,5%). Níveis mais altos de MGF são também observados em áreas rurais (50,1%) por oposição às áreas urbanas (39,8%) (Ministério da Economia e Finanças, Direcção Geral do Plano, and Instituto Nacional de Estatística 2017) Imagem 5 – Prevalência da MGF nas várias regiões da Guiné-Bissau. Fonte: (Bogado 2018) A MGF na Guiné-Bissau é praticada maioritariamente por grupos islamizados, pois é tida como uma recomendação corânica. No entanto, mulheres de grupos não islamizados que se casam com homens de grupos islamizados acabam por submeter-se à prática. Uma vez que a MGF é uma prática acompanhada por outros rituais e festividades, a convivência entre comunidades praticantes e não praticantes fez com que, no passado, crianças de comunidades não praticantes acabassem por ser submetidas à prática (Baldé 2018)4. Na Guiné-Bissau, apenas 13% das mulheres inquiridas pela UNICEF em 2014 refere que a MGF deve continuar a existir. Uma esmagadora percentagem de mulheres entende que que a prática deve ser descontinuada: 90% das mulheres na cidade e 73% das mulheres nas comunidades rurais. (Ministério da Economia e Finanças, Direcção Geral do Plano, and Instituto Nacional de Estatística 2017) Na Guiné-Bissau, a prática é registada um pouco por todo o País, por causa da convivência partilhada dos diferentes grupos que compõem o território. Mas ela é registada maioritariamente nas zonas habitadas pelos grupos Islamizados do País que são: - A zona Leste, concretamente as regiões de Bafatá e Gabu, que são habitadas maioritariamente pelos grupos Fulas e Mandingas, - A zona Norte, concretamente a região de Oio habitada também pelos Oincas e Mansoncas e a região de Cacheu um pouco a norte da região os grupos cassangas, enquanto grupos praticantes da E/MGF - A zona Sul, concretamente as regiões de (Quinara e Tombali) com grupos Beafadas, Fulas, Tandas e Nalus enquanto grupos praticantes, e 4 Ver leituras recomendadas: Corte/ Mutilação Genital Feminina: Respostas Institucionais Integradas, Lisboa, 28 e 29 de setembro de 2017. 12 - O Sector Autónomo de Bissau com uma grande mistura de grupos étnicos, mas onde os grupos praticantes da E/MGF são em número considerável. O tipo de prática mais prevalecente no País é o tipo II, embora também se pode encontrar um pouco do tipo III sobretudo junto de grupos Fulas e nas zonas que fazem fronteira com a Guiné-Conacri. (Manual de formação de facilitadores, Comité para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança – CNAPN - da Guiné Bissau, n.d.) - Tipo de prática mais prevalecente: tipo II, embora também se possa encontrar o tipo III (sobretudo nos grupos fula e nas zonas que fazem fronteira com a Guiné-Conacri); - Idade da prática: variada, tendo em conta os grupos étnicos: • Fula: crianças mais novas, entre os 3 e os 5 anos; • Outros grupos praticantes: a idade varia entre a realização do corte e o ritual de passagem para à fase adulta; • Mandinga e Beafada: realizam a prática em dois momentos: o primeiro momento é o do corte e o segundo momento é o da passagem à fase adulta, com o ritual de aprendizagem e da educação para a jovem mulher (fanado garandi). Nesta segunda fase, as jovens raparigas que ainda não foram submetidas ao corte podem também participar, pois serão excisadas neste momento. (Baldé 2018) • A MGF medicalizada não parece ser proeminente na Guiné-Bissau. De acordo com os dados disponíveis, apenas 0,1% das mulheres entre os 15 e 49 anos que sofreram mutilação genital feminina foram cortadas por um profissional de saúde (UNICEF 2013b). De 2008 à data presente, e segundo os dados disponíveis, cerca de 389 comunidades declararam publicamente o abandono total da prática nas suas comunidades. Em 2018, foi adotada uma segunda Estratégia Nacional para o abandono da MGF que visa consolidar e reforçar estes resultados (ver infra). Um recente estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) questionou as comunidades que declararam o abandono da MGF sobre se continuavam a entender que esse abandono constituía boa prática: de 538 inquiridos, a maioria respondeu que sim (88,1%), contra 8,2%, que responderam não. (INEP 2017) “Tenho 5 filhas e 4 delas foram submetidas a excisão e não deixei que submetessem a mais nova. Quando viajava com ela para Canchungo dizia para eles de que ela foi circuncidada em Bafatá e quando íamos para Bafatá dizia de que ela já tinha sido excisada em Canchungo e foi assim que ela escapou” (EM16, 38 anos) (LISBOA et al. 2015) o Em 2011, foi aprovada na Guiné-Bissau a Lei n. 14/2011, de 6 de julho, que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina. O sistema judiciário na Guiné-Bissau tem respondido à Lei de 2011 contra a MGF: várias pessoas foram consideradas culpadas desde 2011 e algumas delas foram condenadas a cumprir pena na prisão. O conhecimento da lei por profissionais da área jurídica é fundamental na promoção de uma abordagem baseada nos direitos humanos, para diminuir a MGF na Guiné-Bissau e aumentar o cumprimento da lei bem como para garantir uma ação penal eficaz e eficiente. 13 O suprarreferido estudo do INEP questionou as comunidades sobre o conhecimento da Lei n. 14/2011, de 6 de julho. A maioria dos inquiridos respondeu que sim (80%). Imagem 6 – Gráfico sobre o conhecimento da Lei. Fonte: CONHECE A LEI 14/2011? Gráfico 13 (INEP 2017) Nao No entanto, quando os mesmos inquiridos foram 20% questionados sobre se sabiam que a MGF é crime as respostas indicaram esmagadoramente que sim: 96,5% indicaram que a prática da MGF é crime, enquanto que os que responderam que não sabem, correspondem a 3,2%. Os inquiridos foram também questionados sobre se Sim tinham conhecimento de casos de violação da Lei 80% 14/2011, de 6 julho, ou casos de prática clandestina. A maior parte respondeu que não (84%). Dos que responderam que sim (16%), quando questionados sobre qual foi a sua atitude perante algum destes casos, 34,7% respondeu que se dirigiu às autoridades judiciais; 33,3% respondeu que manteve segredo; 17,3% disse que quis dirigir-se às autoridades, mas teve medo; 9,3% disse que contou a uma vizinha e (5,3%) disse que dirigiu-se em segredo à uma autoridade da tabanca/comunidade. É ainda interessante perceber quais as justificações para não reagir perante a prática de MGF, mesmo sabendo que é crime (ver tabela 1 infra), bem como quais as formas através das quais tiveram conhecimento sobre a lei MGF (ver tabela 2 infra). Justificações para não reagir perante a prática de MGF, mesmo sabendo que Percentagem é crime Medo do sobrenatural 33% Medo de retaliação por quem ainda pratica a MGF 30% Medo porque acha que pode morrer repentinamente 23% Medo porque se trata de um segredo dos ancestrais 13% Tabela 1 - Justificações para não reagir perante a prática de MGF. Fonte: (INEP 2017) Como tiveram conhecimento sobre a lei MGF? Percentagem Rádios comunitárias 22,7% Rádio nacional 20,9% Reuniões com ONGs 15,9% Rádios privadas 15,3% TV 12,5% Reuniões com associações de base 12,7% Tabela 2 - Formas através das quais as pessoas tiveram conhecimento sobre a lei MGF. Fonte: (INEP 2017) 14 1.4. Causas e consequências A MGF é uma norma social profundamente ancorada, com raízes históricas. A MGF tende a ser defendida pelas comunidades praticantes com argumentos baseados na religião. Porém não existe qualquer mandamento religioso que a recomende. Causas Razões apontadas como comuns para a MGF são: “A MGF é parte de uma complexa prática - Aceitação social / rito de passagem simbólica e cultural, relacionada com a - Religião matrimonialidade das mulheres e o papel - Higiene destas nas suas comunidades, incluindo o - Pureza/preservação da virgindade acesso à propriedade e estatuto social” - Maior possibilidade de casamento - Aumento do prazer sexual masculino (Bogado, 2018) - Condição para que a menina passe a ser considerada mulher A MGF é considerada um rito de iniciação das meninas e raparigas, habitualmente numa cerimónia ou ritual (na Guiné-Bissau chamado de “fanado”), que marca a integração destas no mundo adulto. Razões para a MGF na Guiné-Bissau: Embora nenhum destes motivos justifique a prática do crime da MGF, é importante compreender as motivações para a prática da MGF na Guiné-Bissau para poder prevenir e combater esta prática. Religião O animismo representa 40% da religião declarada da população. As duas outras religiões prevalentes no país são o islamismo (cerca de 50%) e cristianismo (10%, principalmente católico). Os apoiantes da MGF na Guiné-Bissau defendem que a prática é uma exigência do Islão. Em Bafatá e Gabú, por exemplo, que são regiões predominantemente muçulmanas, 96,3% e 86,8% das meninas foram submetidas à MGF. A religião é frequentemente usada por homens e mulheres para justificar o estatuto social inferior das mulheres e a aceitação da MGF. O Conselho Superior Islâmico, no entanto, emitiu um “fatwa” contra a prática, afirmando que não há disposição no Alcorão que apoie a MGF(African Development Bank Group 2015). De acordo com o CNAPN, há uma colaboração entre Cristãos e Muçulmanos para disseminar informação nas áreas rurais no sentido de que a MGF não é uma exigência da religião. Prática social As razões para a prática da MGF na Guiné-Bissau incluem uma mistura de fatores socioculturais que variam dentro das famílias e comunidades. Se a MGF é uma norma social e cultural, então as famílias são influenciadas por outras pessoas em suas comunidades ao decidir se cortam ou não suas próprias filhas. A MGF na Guiné-Bissau está profundamente enraizada no costume do fanado. "Fanado" é o ritual de iniciação que prepara meninos e meninas para a vida adulta e para a capacidade de perpetuar a tradição comunitária. Isto envolve a circuncisão de meninos e a mutilação genital feminina de meninas. 15 Pureza Segundo o CNAPN, os homens justificam a MGF como ato de higiene e limpeza, associado a ideais de pureza e fidelidade. Para as mulheres, o apoio para a prática é justificado pela tradição e pela necessidade de preservar a virgindade antes do casamento e fidelidade após o casamento, para fornecer mais satisfação sexual para o parceiro masculino, e garantir a higiene e os requisitos religiosos. A MGF é geralmente obrigatória para uma mulher se casar em sua comunidade e ser considerada “limpa”. Fonte: (Bogado 2018) A cerimónia do fanado é realizada através de uma cadeia que envolve toda a comunidade, como se apresenta no fluxograma que se segue: Imagem 7 – Representação das comunidades envolvidas no fanado. Fonte: (INEP 2017) (com adaptações) De acordo com o recente estudo do INEP supracitado (INEP 2017), quando questionados sobre o que o fanado significa para os inquiridos, a maioria (66%), respondeu que está ligado à cultura/tradição; 17,8% respondeu que é algo ligado à religião e 16,2% respondeu que é Ganha-pão de algumas pessoas, conforme representado no gráfico a seguir. O que significa o fanado (MGF)? Justificações reportadas Percentagem Está ligado à cultura/tradição 66% 16 Está ligado à religião 17,8% É o ganha-pão de algumas pessoas 16,2% Tabela 3- Significado do fanado. Fonte: (INEP 2017) Exercício recomendado Exercício sobre as práticas nefastas Trabalhar com os participantes no sentido de identificar práticas sociais benéficas, neutras e prejudiciais: num quadro colocar as três possibilidades (benéficas/neutras/ prejudiciais) e debaixo de cada classificação elencar exemplos de práticas. Promover a discussão acerca dos motivos que as tornam benéficas, prejudiciais ou neutras. A circuncisão feminina não existe no Alcorão Infelizmente, até hoje, há quem use a ignorância das pessoas e o seu não domínio da língua árabe para mostrar que a Mutilação Genital Feminina tem origem juridicamente no Alcorão. Porém, o Alcorão não fala da circuncisão feminina nem direta nem indiretamente. Alguns esforçaram-se por explicar a tradição do Abraão sobre a circuncisão masculina e associá-la à Mutilação Genital Feminina para justificar. Esta é uma explicação errada. Os ensinamentos do Abraão ultrapassam a questão da sua circuncisão e dos seus filhos masculinos. Resumir os ensinamentos na circuncisão e fazer equivaler a Mutilação Genital Feminina à Circuncisão Masculina é uma mentira sobre o Alcorão sem dúvida alguma. Se voltarmos às religiões anteriores ao Islão, como exemplo e não como prova legal, vamos constatar que a circuncisão masculina entre os judeus não é um ritual, mas apenas uma crença, a circuncisão considera-se uma necessidade religiosa. Cada judeu deve e não pode não ser circuncisado. Na religião muçulmana, a circuncisão não é condição de ser muçulmano, e ainda assim entre judeus e cristãos não há nenhuma indicação sobre a circuncisão feminina. Em todos os casos, a tradição do Abraão no sentido da circuncisão é masculina. Respeitamos os ensinamentos de Abraão que nos chamou muçulmanos. Se fosse outro caso, existiriam indicações para os judeus no Torá ou outros livros, confirmando a obrigação da circuncisão feminina. Podemos dizer que Abraão é inocente deste assunto e a História das religiões prova o mesmo. (Baldé, n.d.) 17 Imagem 8 – Resumo dos dados principais sobre a MGF na Guiné-Bissau Consequências A MGF é responsável por complicações (físicas, psicológicas e sociais) que podem resultar na morte. Além dos danos individuais imediatos e a longo prazo, a MGF pode colocar as mulheres em maior risco de problemas durante a gravidez e o parto (OMS 2009), riscos que são mais comuns com os procedimentos mais amplos de MGF. Fonte das imagens: OMS/ (Krupa 2017) A mortalidade neonatal aumenta quando se trata de mães sujeitas à “Quem ama, protege” prática. Segundo a OMS, a taxa de mortalidade infantil (dos bebés) é Fatumata Baldé 15% mais elevada entre as mulheres que sofreram MGF, tipo I, nas que foram sujeitas a MGF tipo II, é 32% mais elevada, e 55 % mais elevada em mulheres que sofreram uma mutilação de tipo III (a infibulação, que consiste em fechar a abertura vaginal). A OMS estimou que no continente de África morrem mais 10 a 20 bebés em cada 1000 partos, como resultado desta prática (WHO 2006) 5. Resumo das consequências para a saúde das mulheres: Consequências imediatas Consequências a longo prazo Hemorragia Corrimento vaginal e comichão vaginal Dor intensa: lesões no corte de tecidos e Micção dolorosa: danos na abertura da uretra ou nervos; inchaço e pressão, sem anestesia cicatrização do meato Choque: hemorrágico (perda de sangue), Problemas menstruais: devido à oclusão parcial da neurogénico (dor e trauma grave) ou séptico, abertura vaginal que pode ser fatal 5 A estimativa foi baseada num estudo de 28.393 mulheres atendidas em 28 centros obstétricos em Burkina Faso, Gana, Quénia, Nigéria, Senegal e Sudão. 18 Inchaço dos tecidos genitais: devido a Infeções génito-urinárias crónicas: infeções do trato inflamação resposta ou infeção local urinário, que podem levar a insuficiência renal e morte Febre: inflamação, trauma, infeção Infeções do trato reprodutivo: oclusão do vagina e Infeções: infeções locais agudas, formação de uretra causando estase e escalada das infeções abcessos, septicémia, infeções genitais e do trato reprodutivo, infeções do trato urinário, Infeções genitais: trauma, entrada de organismos destruição da pele, tétano, hepatite, VIH / SIDA infecciosos, reação devido à descarga Problemas urinários: retenção aguda de urina, Infeções do trato urinário: oclusão da uretra dor ao urinar, inchaço, lesão da uretra Vaginose bacteriana, Doenças sexualmente Problemas de cicatrização de feridas: a ferida transmissíveis e VIH/SIDA não cura devido a infeção ou a outras condições Tecido cicatricial e quelóide Morte: sangramento grave, dor e trauma ou Infertilidade: infeções pélvicas, dano nos órgãos infeção grave e forte reprodutivos, relações sexuais dolorosas Distúrbios psicológicas: depressão, ansiedade e distúrbios de stress pós-traumático (PTSD); Complicações sexuais: relação sexual dolorosa, falta de desejo sexual, menos satisfação sexual e menos experiência de orgasmo. Tabela 4 - Resumo das consequências para a saúde das mulheres. Fonte: (Bogado 2018) referindo as fontes da (WHO 2016), (WHO 2017) e (Kimani, Muteshi, and Njue 2016) Para algumas raparigas e mulheres, a experiência da MGF e os seus efeitos psicológicos são comparáveis com a experiência de violação sexual. “Sim, fui excisada. Lembro-me de que a minha avó materna foi a casa dos meus pais me buscar de manhã cedinho sem avisar os meus pais e me levou para a casa dela para ser circuncidada quando cheguei a casa dela vi outras raparigas, algumas estavam a chorar e fiquei logo com medo e comecei a chorar também quis fugir mas já era sem tempo, no entanto quando a minha mãe acordou não me viu ela perguntou por mim e foi aí que lhe disseram de que a minha avó me levou para a casa dela, assim a minha mãe foi para lá como a casa é perto. Quando ela chegou viu que estavam muitas meninas na casa da mãe e foi aí que ela se apercebeu de que a minha avó me submeteu a excisão. Então, ela foi avisar o meu pai e ele ficou muito furioso inclusive ralhou com a minha avó por ela não o ter avisado. Contaram-me de que nesse dia chorei desde 8:00 horas de manhã até as 20 horas sem comer nem beber, tudo que me davam para comer atirava para o chão” (EM3, 47 anos) Fonte: (LISBOA et al. 2015) Estes efeitos psicológicos da MGF são mais difíceis de investigar do que os efeitos físicos. Ansiedade, pânico, terror, humilhação e sentimentos de traição são alguns dos efeitos possíveis, de longa duração. De acordo com a Amnistia Internacional, especialistas sugerem que o choque e trauma do procedimento 19 podem contribuir para os comportamentos “mais calmos” e “dóceis”, considerados características positivas em sociedades que praticam MGF, com enormes custos para a saúde psicológica das mulheres. De acordo com o recente estudo do INEP, foi questionado aos inquiridos se têm conhecimento das consequências ou riscos da prática da MGF. A maioria (76,3%) respondeu que sim, têm conhecimento das consequências e riscos da prática da MGF, enquanto 23,7% respondeu que não tem conhecimento (INEP 2017). Quanto às medidas a tomar para prevenir a prática, a maioria dos inquiridos (73,5%) respondeu que deve haver alguma forma de prevenção que evite a prática da MGF, alguma medida de controlo, enquanto que uma minoria (26,5%) respondeu que não deve haver nenhuma medida de controlo. Dos que responderam sim, 42,5% indicou que uma boa medida de controlo passa pela sensibilização junto das fanatecas, pais, escolas, associações e comunidade; 10% respondeu que a aplicação da lei é suficiente porque pune; 8,6% respondeu que deve reforçar-se o controlo e a vigilância; 7,4% respondeu que deve ter-se um controlo, mas também o envolvimento da comunidade. Medidas de prevenção e controlo da MGF Percentagem Sensibilização junto das fanatecas, pais, escolas, associações e 42,5% comunidade A aplicação da lei é suficiente porque pune 10% Deve reforçar-se o controlo e a vigilância 8,6% Deve ter-se um controlo, mas também o envolvimento da comunidade 7,4% Tabela 5 - Medidas de prevenção e controlo da MGF. Fonte: (INEP 2017) Exercício recomendado Exercício sobre os participantes enquanto agentes de mudança Trabalhar com os participantes no sentido de validar os sentimentos e emoções, em virtude da maior familiaridade com as consequências da MGF nas mulheres e seus bebés. Quase todos os participantes na Guiné-Bissau conhecem alguém que foi sujeito a esta prática: os próprios, irmãs, filhas, mulheres, vizinhas ou conhecidas. Ter um maior contacto com as consequências da prática pode suscitar sentimentos de frustração, desespero, preocupação ou até de culpa nos participantes. É importante conversar durante este módulo e relembrar que os participantes podem mudar a realidade no presente e no futuro. 1.5. A MGF enquanto forma de violência contra as mulheres A violência baseada no género (VBG) engloba várias formas de violência que têm como alvos indivíduos e grupos, com base em expectativas e papéis tradicionalmente desempenhados em função do género6. A violência baseada no género inclui, mas não se limita, a qualquer ato na vida pública ou privada, “A mutilação não é uma tradição, é perpetrado ou tolerado pelo Estado, que resulte (ou violência” 6 A violência baseada no género (VBG) constitui o termo geral usado para falar sobre a "violência que ocorre enquanto resultado das expectativas sobre o papel normativo associado a cada género, bem como às relações de poder desiguais entre os dois géneros, dentro do contexto de uma sociedade específica.” (Bloom 2008, 14) 20 seja suscetível de resultar) em dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, emocional, psicossocial ou económico numa pessoa, com base na discriminação do género, expectativas quanto ao género e estereótipos de género. Atos de VBG podem incluir, mas não se limitam a: - Violência doméstica; - Abuso sexual e/ou violação sexual, incluindo conjugal; - Práticas tradicionais e culturais específicas de género que causam danos, entre as quais se inclui a MGF; - Exploração sexual e prostituição forçada; - Assédio sexual no trabalho ou fora dele; - Intimidação e assédio moral no trabalho ou fora dele; - Violências nas escolas e assédio moral, tanto entre estudantes como do professor ou funcionário da escola contra os estudantes, ou dos estudantes contra os professores ou funcionários da escola; - Tráfico de seres humanos; - Outras formas de violência económica e qualquer tipo de violência praticada contra uma pessoa por causa do género ou em relação com o género ou por força do suposto papel de género ou o estereótipo do papel de género. A MGF faz parte de uma ampla gama de práticas patriarcais ancoradas na desigualdade de género, cujo objetivo é controlar os corpos, a sexualidade e os direitos reprodutivos das mulheres e raparigas. A MGF é reconhecida internacionalmente como violação dos direitos humanos das mulheres e raparigas, e como forma extrema de discriminação e violência dirigida exclusivamente a raparigas e mulheres, com base no sexo. Na Guiné-Bissau, a violência baseada no género é o reflexo do modelo patriarcal, que legitima as práticas culturais tradicionais, sob quais, vários grupos étnicos que constituem o País se regem os seus comportamentos e suas atitudes. Estas práticas são nomeadamente mutilação genital feminina, casamento forçado e/ou precoce, levirato, gerontofilia, poligamia e violência doméstica (Baldé and Mendes, n.d.) Mesmo quando praticada por mulheres, a violência é considerada VBG, já que a mulher é utilizada como veículo de perpetuação de uma cultura de desigualdade que a subjuga e viola a sua integridade física e moral, deixando danos irreparáveis. A MGF coloca em causa direitos humanos fundamentais como a igualdade, dignidade e integridade física, e o livre desenvolvimento da personalidade, assim como o direito das meninas e mulheres a terem controlo sobre a sua própria vida. Esta violação tem um efeito prolongado no corpo e condiciona, por conseguinte, toda a vida e a autonomia das mulheres. “A excisão feminina também e considerada como ofensa grave aos direitos humanos, na medida em que ela é um costume sócio-cultural Tribunal Bissau – Vara Crime que causa danos físicos e psicólogos irreversíveis, e ainda, é (Proc. n.º 98/2014) responsável por mortes das meninas (...)” 21 2. Enquadramento internacional e regional Objetivos deste módulo: No final deste módulo, os participantes devem conseguir: 1. Descrever o enquadramento internacional relativo à MGF 2. Descrever o enquadramento regional relativo à MGF 3. Descrever o enquadramento nacional relativo à MGF 2.1. Enquadramento Internacional Os instrumentos internacionais de direitos humanos reconhecem, cada vez mais, a prática da MGF como uma forma de violência baseada no género e como violação dos direitos das mulheres e raparigas, nomeadamente dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Na última década, vários acordos internacionais de referência têm destacado a necessidade de combater a MGF como parte de um esforço mais amplo para promover a igualdade de género e o desenvolvimento sustentável. Instrumentos Resumo de conteúdo Internacionais Declaração Universal dos Proclama o direito de todos os seres humanos a viver em condições que lhes Direitos Humanos (1948) permitam gozar de boa saúde e de cuidados de saúde de qualidade. Art.º 3.º: Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal Art.º 5.º: Ninguém deve ser sujeito a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Pacto Internacional sobre os Condena a discriminação de género, reconhecendo o direito universal de todas as Direitos Civis e Políticos e o pessoas de gozar das melhores condições possíveis de saúde física e mental. Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966) Convenção Contra a Tortura Encoraja os Estados a tomar medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de e Outras Penas ou outra natureza com o intuito de impedir atos de tortura no território sob a sua Tratamentos Cruéis, jurisdição. Desumanos ou Degradantes (1984) Convenção sobre a Apela a que os Estados-Membros alterem modelos de comportamento sociocultural Eliminação de Todas as no sentido de eliminarem práticas e costumes que se alicercem em papéis Formas de Discriminação estereotipados ou em ideias de inferioridade ou superioridade de um dos sexos. contra as Mulheres (1979)7 Art.º 2.º/f): Tomar todas as medidas apropriadas, incluindo disposições legislativas, para modificar ou revogar qualquer lei, disposição regulamentar, costume ou prática que constitua discriminação contra as mulheres. Art.º 5.º/a): Modificar os esquemas e modelos de comportamento sociocultural de homens e mulheres com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas correntes, ou de qualquer outro tipo, que se baseiem na ideia de inferioridade ou de superioridade de um ou de outro sexo ou de um papel estereotipado para homens e mulheres. Convenção sobre os Direitos Estabelece a necessidade dos Estados-Membros se comprometerem no respeito da Criança (1989) dos direitos das crianças sem discriminação e independentemente de qualquer 7 A Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) foi ratificada pela Guiné-Bissau em 1985. 22 consideração baseada no sexo (Art.º 2.º). Prevê também o direito a uma vida livre de qualquer forma de violência física ou mental e de maus tratos (Art.º 19/1.º). Prevê, igualmente, que os Estados adotem medidas eficazes e adequadas no sentido de abolir quaisquer práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde das crianças (Art.º 24/3.º). Protocolo Facultativo à Estabelece mecanismos para receber e apreciar as participações sobre violações Convenção sobre a da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as Eliminação de Todas as mulheres. Os Estados Partes do Protocolo conferem jurisdição ao Comité para a Formas de Discriminação Eliminação da Discriminação contra a Mulher para apreciar participações de contra as Mulheres8 indivíduos ou investigar graves ou sistemáticas violações da Convenção, o que já resultou numa série de decisões contra Estados-Membros. Recomendação conjunta n. Refere-se às denominadas práticas prejudiciais: “7. As práticas prejudiciais 31 do Comité da Eliminação assentam, portanto, em discriminação baseada no sexo e idade, entre outros, e de Discriminação contra as muitas vezes têm sido justificadas com base em aspetos socioculturais e costumes e mulheres e N. 18 do Comité valores religiosos, bem como em equívocos em relação a alguns grupos dos Direitos das Crianças desfavorecidos de grupos de mulheres e crianças. Em geral, as práticas nocivas são sobre práticas nocivas. frequentemente associadas a formas de violência ou são, elas próprios, uma forma de violência contra mulheres e crianças. Enquanto a natureza e a prevalência das práticas variam de acordo com a região e a cultura, as mais prevalentes e bem documentadas são a mutilação genital feminina, o casamento infantil e / ou forçado, poligamia, crimes cometidos em nome da chamada violência relacionada com a honra e ao dote”. Especifica o conceito de MGF. Apela à tomada de medidas por parte dos Estados com vista à sua prevenção e combate. Declarações Resumo de conteúdo Internacionais Declaração e o Plano de Alarga o âmbito dos Direitos Humanos de forma a abranger as violações baseadas Ação de Viena, da no género, incluindo a mutilação genital feminina. Conferência Mundial Sobre os Direitos Humanos (1993) Resolução da AG das Nações Estipula que a violência contra a mulher tem de ser entendida como abrangendo a Unidas na sua resolução violência física e psicológica que ocorra dentro da família, incluindo a MGF e outras 48/104 (1993) (Declaração práticas nocivas para a mulher. sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher) Recomendação Geral No. 14 Recomenda aos Estados Partes que tomem medidas apropriadas e efetivas com vista da CEDAW sobre a a erradicar a prática da circuncisão feminina. Tais medidas podem incluir a circuncisão Feminina, 1990 disseminação de informação sobre a prática, o apoio, a nível nacional e local, a organizações de mulheres que trabalham para a eliminação da circuncisão feminina e de outras práticas prejudiciais, entre outras medidas. Resolução da Assembleia O objetivo específico destas resoluções é o de persuadir os Estados-membros a das Nações Unidas de 2012 “intensificar a ação mundial para eliminar as práticas de MGF”. (A/RES/67/146) Encorajam os países-membros das Nações Unidas a criarem mecanismos que Resolução da Assembleia proíbam expressamente a prática da MGF, a adotarem medidas destinadas a acabar das Nações Unidas de 2014 com a impunidade nos casos de MGF e solicitam às autoridades, serviços médicos e (A/RES/69/150) líderes religiosos e comunitários que redobrem esforços no sentido de aumentar a conscientização e o combate da prática 8 A Guiné-Bissau ratificou, em 28 de Fevereiro de 2008, o Protocolo Facultativo à CEDAW e o Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos Relativos aos Direitos das Mulheres em África, comummente conhecido pelo Protocolo de Maputo através da resolução Nº 25/2007 da ANP. 23 Planos de Acão Resumo de conteúdo Plano de Acão da Inclui recomendações sobre a MGF para governos e comunidades tendo em vista a Conferência Internacional eliminação da prática e a proteção de mulheres e meninas contra práticas sobre População e desnecessárias e perigosas. Desenvolvimento (1994) Plataforma de Ação da IV Incita os governos, organizações internacionais e organizações não governamentais Conferência Mundial sobre a desenvolver políticas e programas com vista à eliminação de todas as formas de a Mulher, Pequim (1995) discriminação das mulheres e meninas, incluindo a MGF. Exercício recomendado Pedir ao grupo que se organize para elaborar e apresentar a sua própria declaração de direitos humanos na Guiné-Bissau. Afixar as declarações resultantes e promover a leitura e assinatura individual como parte do seu compromisso para a eliminação da MGF. 2.2. Enquadramento Regional A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (a Carta de Banjul) e o seu Protocolo sobre os Direitos das Mulheres em África (Protocolo de Maputo), ratificados pela Guiné-Bissau, condenam explicitamente a MGF como uma violação dos direitos humanos. A Carta Africana dos Direitos e Bem-estar da Criança consagra especificamente a proteção infantil contra todas as formas de tortura, tratamento desumano ou degradante, especialmente contra danos físicos ou mentais ou abuso, negligência ou maus-tratos. Instrumentos Regionais Resumo de conteúdo Carta Africana dos Direitos Artigo 5º: Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa Humanos e dos Povos humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de (1981) exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos. Protocolo à Carta Africana Artigo 5º: Eliminação de Práticas Nocivas para os Direitos Humanos e Os Estados Parte condenam e proíbem todas as práticas nocivas que afetem os dos Povos Sobre os Direitos direitos humanos fundamentais das mulheres, e que contrariam as normas das Mulheres em África internacionais. Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas e outras (2003) 9 para eliminar essas práticas, nomeadamente: a) sensibilizar todos os sectores da sociedade sobre as práticas nocivas por meio de campanhas e programas de informação, de educação formal e informal e de comunicação; b) proibir, através de medidas legislativas acompanhadas de sanções, todas as formas de mutilação genital feminina, a escarificação, a medicação e a para- medicação da mutilação genital feminina e todas as outras práticas nocivas com vista à sua total erradicação; 9 A Guiné-Bissau ratificou, em 28 de Fevereiro de 2008, o Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos Relativos aos Direitos das Mulheres em África, comummente conhecido por Protocolo de Maputo através da resolução Nº 25/2007 da ANP. 24 c) prestar apoio necessário às vítimas de práticas nocivas, assegurando-lhes os serviços de base, tais como os serviços de saúde, a assistência jurídica e judiciária aconselhamento e a formação que lhes permita a auto-subsistência; d) proteger as mulheres que correm o risco de serem sujeitas às práticas nocivas ou a todas as outras formas de violência, de abuso e intolerância. Carta Africana sobre os Artigo 16: Proteção Contra o Abuso de Crianças e Tortura Direitos e Bem-Estar da 1. Estados Partes do presente Carta devem tomar específicas legislativas, Criança (1990) administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de tortura, desumanos ou degradantes e, especialmente, física ou mental dano ou sevícia, abandono ou de maus tratos, incluindo abuso sexual, enquanto no cuidado da criança. (...) 2.3. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, criada em 1996, assume-se como um projeto político cujo fundamento é a Língua Portuguesa, vínculo histórico e património comum de dez países – Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste - localizados em 4 continentes. A CPLP tem como objetivos gerais a concertação política e a cooperação nos domínios social, cultural e económico. Mais de metade da população destes 9 países é constituída por mulheres. Cientes de que a “afirmação da defesa dos direitos humanos na CPLP passa inequivocamente pela promoção da igualdade entre mulheres e homens, sem a qual não é possível construir sociedades mais justas e mais desenvolvidas”, a Resolução de Lisboa (maio de 2010) instituiu de forma permanente a reunião Ministerial de responsáveis pela Igualdade de Género da CPLP. Nestas reuniões têm-se debatido questões específicas sobre o empoderamento das mulheres, nas quais se inclui a MGF e a promoção da igualdade entre mulheres e homens (Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) 2018). Planos de Acão Resumo de conteúdo Resolução de Lisboa, II Reconhece que a violência contra as mulheres sob todas as suas formas, incluindo a Reunião de Ministros(as) MGF, constitui uma grave violação dos direitos humanos e das liberdades Responsáveis pela Igualdade fundamentais das mulheres e um obstáculo à realização da igualdade de género e de Género da CPLP do empoderamento das mulheres Declaração de Luanda, Considera que a violência contra as mulheres sob todas as suas formas, incluindo as Reunião Extraordinária de práticas tradicionais nocivas para mulheres e meninas, designadamente a MGF, é Ministros(as) Responsáveis uma grave violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública pela Igualdade de Género da CPLP (2011) Plano de ação para a O eixo 13 deste plano visa prevenir e combater todas as formas de violência contra igualdade do género e as mulheres e meninas. empoderamento das Uma das medidas previstas é a de capacitar os operadores/as judiciários/as, as forças mulheres, Reunião de e serviços de segurança e os/as profissionais de saúde, comunicação social, de Ministra(os) responsáveis educação, e formar para o atendimento às vítimas de violência e o combate a pela igualdade de género da Mutilação Genital Feminina. CPLP - 2017-2020 Declaração de Brasília Reconhece que a igualdade de género e o empoderamento de todas as mulheres e V Reunião de Ministra(os) meninas são prioridades transversais que devem estar presentes nas estratégias, nos responsáveis pela igualdade programas, planos de ação, atividades e na previsão orçamentária dos Estados- 25 de género da CPLP (2017) membros da CPLP como condição essencial para se alcançar o desenvolvimento sustentável, na realização plena da dignidade da pessoa humana. 3. Enquadramento nacional e Lei contra a Excisão Feminina na Guiné-Bissau: anotações de conteúdo Objetivos deste módulo: No final deste módulo, os participantes devem conseguir: 1. Descrever o enquadramento jurídico nacional relativo à MGF/excisão feminina 2. Descrever o conteúdo da Lei n.° 14/2011, de 6 de julho, que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina 3. Proceder a uma análise crítica da Lei n.° 14/2011, de 6 de julho, que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina Em 2011, foi aprovada na Guiné-Bissau a Lei n.° 14/2011, de 6 de julho, que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina (doravante Lei da excisão feminina). O sistema judiciário na Guiné-Bissau tem respondido à Lei de 2011 contra a MGF: várias pessoas foram consideradas culpadas desde 2011 e algumas delas foram condenadas a cumprir pena na prisão. 3.1. MGF e os direitos fundamentais em causa “A liberdade religiosa não protege práticas prejudiciais e, em particular, a liberdade religiosa nunca justifica prejudicar as crianças. Nunca.” Kristina Arriaga, comissária da Comissão Americana para Liberdade Religiosa Internacional 10 Lei n.° 14/2011, de 6 de julho Preâmbulo A Guiné-Bissau enquanto um Estado soberano abraçou a democracia como a sua forma de governo e de exercício do poder político. Consequentemente compromete-se a respeitar os valores e princípios nela subjacentes, nomeadamente a respeito pelos direitos fundamentais, na qualidade do vetor axiológico de Estado de Direito democrático e cristalização do princípio da dignidade da pessoa humana, no qual se funda a razão, a limite e a fim do Estado moderno. 10 In: https://www.catholicnewsagency.com/news/religious-freedom-advocate-female-genital-mutilation-is-unjustifiable-35815 26 A liberdade de manifestação cultural e religiosa integra o catálogo dos direitos fundamentais, dos quais nasce o dever do Estado, de as assegurar e proteger. Porém, não sendo direitos autónomos, procuraram a sua perfeição no sistema jurídico-constitucional em que se encontram consignados, porquanto a Constituição tem uma estrutura compromissória, na medida em que prevê inúmeros direitos fundamentais, "prima facie" opostos, cuja coerência prática cabe ao legislador ordinária estabelecer o ponto ótimo de equilíbrio entre um direito fundamental na sua relação com as demais. Com efeito, na prossecução da sua missão de realização da justiça, de garantir a segurança e promover a bem-estar social aos cidadãos, incumbe ao Estado adotar medidas legislativas indispensáveis, com vista a sancionar e reprimir as condutas ofensivas dos padrões de conduta numa vida em sociedade, capazes de por em causa a integridade física e moral e a dignidade da pessoa humana. Assim, ao abrigo da Constituição da República, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ao seu Protocolo Adicional e, sobretudo, da Convenção dos Direitos das Crianças (CDC), da Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW) e do Protocolo de Maputo, a Assembleia Nacional Popular, preocupada com a crescente dimensão social da excisão, decreta, nos termos da alínea g) do Artigo 86.° da Constituição da República, a seguinte: O preâmbulo da Lei da excisão feminina enquadra a matéria da MGF num contexto mais amplo dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição da República da Guiné-Bissau (Constituição). O Título II da Constituição é, de acordo com a sua epígrafe (direitos, liberdades e garantias e deveres fundamentais), a sede normativa do regime dos direitos fundamentais. No entanto, previamente a este título, é possível encontrar já na Constituição referências a valores com interesse para a matéria dos direitos fundamentais e MGF, como por exemplo: - Liberdade e justiça – artigo 3.º - Igualdade material e, implicitamente, dignidade – artigo 11.º - Liberdade religiosa (garantia institucional) – artigo 6.º/2 - Direito à saúde – artigo 15.º Os artigos mais relevantes, integrados no Título II, no que respeita à MGF são os seguintes: Igualdade: Artigo 24.°: Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de raça, sexo, nível social, intelectual ou cultural, crença religiosa ou convicção filosófica. Artigo 25.°: O homem e a mulher são iguais perante a lei, em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural. Proteção de todos os cidadãos: Artigo 27.°: 1 - Todo o cidadão nacional que resida ou se encontre no estrangeiro goza dos mesmos direitos e está sujeito aos mesmos deveres que os demais cidadãos, salvo no que seja incompatível com a sua ausência do País. 2 - Os cidadãos residentes no estrangeiro gozam do cuidado e da proteção do Estado. (...) Relação com o Direito Internacional: 27 Artigo 29.°: 1 - Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das demais leis da República e das regras aplicáveis de direito internacional. 2 - Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aplicabilidade direta11 dos direitos fundamentais: Artigo 30.°: 1 - Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2 - O exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais só poderá ser suspenso ou limitado em caso de estado de emergência, declarados nos termos da Constituição e da lei. Acesso à justiça: Artigo 32.°: Todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os atos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. Artigo 34.°: Todos têm direito à informação e à proteção jurídica, nos termos da lei. Integridade moral e física: Artigo 37.°: 1 - A integridade moral e física dos cidadãos é inviolável. 2 - Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, desumanos e degradantes. (...) Outros direitos pessoais: Artigo 44.°: 1 - A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom-nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar. (...) MGF e conflito de direitos Uma consideração interessante do preâmbulo é a que se refere à “liberdade de manifestação cultural e religiosa”, como integrando “o catálogo dos direitos fundamentais, dos quais nasce o dever do Estado, de as assegurar e proteger”. Mais interessante ainda é a seguinte consideração: “porém, não sendo direitos autónomos, procuraram a sua perfeição no sistema jurídico-constitucional em que se encontram consignados, porquanto a Constituição tem uma estrutura compromissória”. Parece, assim, resultar do preâmbulo que o entendimento subjacente à MGF é o de a considerar uma prática incluída na esfera do conteúdo da liberdade religiosa e identidade cultural na Guiné-Bissau. Mais parece que a repressão da MGF é justificada pela necessidade de proteger a “integridade física e moral e a dignidade da pessoa humana” que prevalecem sobre a liberdade religiosa, com recurso implícito às teorias do “conflito de direitos”. Na teoria do conflito de direitos parte-se do princípio que o ordenamento protege simultaneamente dois direitos em contradição concreta. Como resolver, então, a contradição? Admitindo que não existe nenhuma hierarquia entre os valores em causa no ordenamento em questão, não se pode resolver o caso sacrificando um dos valores relativamente ao outro, menos importante. Haverá, então, que procurar a solução no quadro da unidade do ordenamento tentando harmonizar, da melhor maneira possível, os preceitos divergentes (Vieira de Andrade 1983). Como refere Robert Alexy, quando dois princípios entram 11 Possibilidade de invocação imediata dos direitos por força da constituição ainda que haja falta ou insuficiência da lei. 28 em colisão (Alexy 1997) – tal como acontece quando segundo um princípio algo se encontra proibido e, segundo outro princípio, algo é permitido – um desses princípios tem que ceder face ao outro (técnica da concordância prática). Isto não significa declarar inválido o princípio que cede ou introduzir nele uma cláusula de exceção. O que sucede é que perante determinadas circunstâncias um dos princípios cede face ao outro. Perante circunstâncias diferentes, a questão da cedência pode ser resolvida de forma diferente. A liberdade de religião encontra-se consagrada no artigo 52.°: 1 - A liberdade de consciência e de religião é inviolável. 2 - A todos é reconhecida a liberdade de culto, que em caso algum poderá violar os princípios fundamentais consagrados na Constituição. O conflito de direitos e a técnica da concordância prática são utilizados comumente no campo dos direitos fundamentais. O que é questionável, no caso da MGF, é o ponto de partida desta lei, veiculado no preâmbulo, ou seja, considerar a inserção da MGF como manifestação da liberdade religiosa. Importa sublinhar que cada vez mais se verifica um consenso das organizações internacionais e entidades religiosas no sentido de clarificar que a MGF não encontra qualquer base sólida nos textos sagrados nem na palavra dos profetas, não podendo ser justificada com base na religião. Imagem 9 – Resumo do conflito de direitos, de acordo com o Preâmbulo da Lei da Excisão na Guiné-Bissau "(...) o respeito pelas tradições e culturas tem como limite intransponível o respeito dos direitos humanos que constituem o mínimo denominador comum exigível em todas as culturas, tradições e religiões" (...) “a remoção do clitóris não é cultura, é mutilação e discriminação feminina" Tribunal Supremo em Espanha, 201212 3.2. Âmbito e conceito de MGF na lei 12 Sentença n.º 835/2012, de 31 de outubro: o Tribunal Supremo Espanhol pronunciou-se, pela primeira vez, a propósito de um recurso apresentado contra a Sentença n.º 197/2011, de 15 de novembro de 2011, da Audiencia Provincial de Teruel, que condenou os pais (cidadãos da Gâmbia e residentes em Teruel/Espanha) de uma menor (nascida no Gâmbia e a residir com os pais) por crime de lesões e mutilação genital a uma pena de seis anos de prisão para o pai e de dois anos para a mãe. O Tribunal rejeitou o recurso. 29 CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS ARTIGO 1.° (Âmbito) A presente lei visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina na República da Guiné- Bissau. O artigo 1.° da Lei da excisão feminina refere-se ao âmbito da lei consagrando duas dimensões fundamentais da mesma: 1) A prevenção da prática, o que envolve todos os esforços no sentido de proteger as crianças ou mulheres em risco, através da disseminação de informação, mecanismos que possam prestar assistência a raparigas em risco, etc.. Os artigos 12.° e 13.° concretizam esta primeira parte da lei, i.e. a da prevenção. 2) O seu combate e/ou repressão, o que significa, entre outras medidas, punir os agentes que praticam a MGF. Os artigos 4.° a 11.° da Lei concretizam a segunda parte da previsão normativa, i.e. a repressão. ARTIGO 2.° (Conceito de Excisão) Para efeitos da presente lei entende-se por excisão, toda a forma de amputação, incisão au ablação parcial ou total de órgão genital externo da pessoa do sexo feminino, bem como todas as ofensas corporais praticadas sobre aquele órgão por razões socio-culturais, religiosa, higiene ou qualquer outra razão invocada O artigo 2.° da Lei da excisão feminina refere-se ao conceito de excisão. O conceito de MGF foi visto supra, tendo sido feita referência à definição da OMS: “todas as intervenções que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos externos ou que provoquem lesões nos órgãos genitais femininos por razões não médicas”. Embora o termo utilizado pela legislação guineense seja “excisão feminina”, teria sido preferível adotar o termo “mutilação genital feminina”, por exprimir claramente a gravidade da prática, bem como por corresponder ao conceito mais consensual, adotado internacionalmente por organizações de referência (UNICEF, FNUAP, etc.). Independentemente da designação, o conceito da lei está alinhado com a definição da OMS e parece suficientemente amplo para incluir as referidas intervenções. Sublinha-se ainda que este conceito é suficientemente amplo para incluir a proibição da medicalização da mutilação genital feminina, defendida pela OMS e considerada inadmissível; ou seja, em nenhuma circunstância, se admite que a MGF seja praticada por profissionais ou instituições de saúde. Legislação comparada Análise do conceito de MGF na legislação de alguns países lusófonos Portugal 30 Artigo 144.º -A (Mutilação genital feminina) do Código Penal Português13 (alteração de 201514) 1 — Quem mutilar genitalmente, total ou parcialmente, pessoa do sexo feminino através de clitoridectomia, de infibulação, de excisão ou de qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. 2 — Os atos preparatórios do crime previsto no número anterior são punidos com pena de prisão até 3 anos. Moçambique Artigo 178.° do Código penal (alteração de 201415) (Castração e mutilação genital) 1. Se alguém cometer o crime de castração, amputando a outrem qualquer órgão necessário à procriação, será punido com a pena de doze a dezasseis anos. 2. Incorre na pena do número anterior, aquele que voluntariamente mutilar os órgãos genitais. 3. Se resultar a morte do ofendido dentro de quarenta dias depois do crime, por efeito das lesões produzidas, a pena será a de prisão maior de dezasseis a vinte anos. Brasil O Brasil não tem uma lei explícita ou disposição sobre a MGF, mas há uma proposta de lei na câmara inferior do Congresso que visa introduzir especificamente os parágrafos 2-A e 13 do artigo 129 do Código Penal, para definir explicitamente e criminalizar MGF na legislação brasileira16. Proposta de art.o 129. § 2º-A Incorre na mesma pena [2 a 8 anos] quem pratica mutilação genital feminina.(...) § 13 Para os fins do § 2º-A, mutilação genital feminina consiste em cortar, costurar, alterar a anatomia, ou mutilar de qualquer outra forma, total ou parcialmente, o órgão genital feminino.” ARTIGO 3.° (Proibição da excisão) 1. É expressamente proibida a prática de excisão feminina em todo o território da Guiné-Bissau. 13 Até 15 de Setembro de 2015, o enquadramento legal português previa, através do Artigo 144º, o crime de ofensas corporais graves. Apesar de o termo Mutilação Genital Feminina não estar mencionado expressamente na redação da lei, os trabalhos preparatórios da mesma mencionavam que: a MGF pode ser considerada como uma forma de “privar ou afetar a capacidade de fruição sexual de alguém”. O princípio da extraterritorialidade era aplicável, o que implicava que a MGF pudesse ser punida, mesmo que fosse cometida fora do país. Devido à ratificação da Conferência de Istambul por Portugal, em agosto de 2015, a MGF tornou-se um crime autónomo no Código Penal Português, através da Lei nº 83/2015. Através desta Lei, designadamente da nova redação do Artigo 144º-A, as práticas de MGF passaram a ser crime punível por lei com pena de prisão de 2 a 10 anos. São também considerados crime todos os atos preparatórios de MGF, puníveis com pena de prisão até 3 anos, nomeadamente levar as mulheres ou crianças a viajar para fora do país com o objetivo de serem submetidas a MGF ou colaborar na organização das viagens, ou ajudar, incentivar ou adquirir apoio para praticar MGF dentro ou fora do país, nomeadamente promover recolhas de fundos para pagar a MGF (UEFGM 2019a). 14 Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto: Trigésima oitava alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, autonomizando o crime de mutilação genital feminina, criando os crimes de perseguição e casamento forçado e alterando os crimes de violação, coação sexual e importunação sexual, em cumprimento do disposto na Convenção de Istambul. In: https://www.cig.gov.pt/wp- content/uploads/2016/03/Lei-n.%C2%BA-83_2015_05-agosto.pdf 15 Lei n.º 35/2014: Lei da revisão do Código Penal. In: https://www.scribd.com/document/356854172/Lei-35-2014Codigo-Penal-docx 16 PROJETO DE LEI N.º 3.344, DE 2015 (Da Sra. Iracema Portella) Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para tipificar a mutilação genital feminina como crime de lesão corporal gravíssima. In: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=91D24BA1C9A0EC7AE011CFAFDDBCD733.proposicoesWeb2?cod teor=1406748&filename=Avulso+-PL+3344/2015 31 2. A intervenção médica sobre o órgão genital feminino, feita nas instalações sanitárias adequadas por pessoa habilitada com a fim de corrigir quaisquer anomalias resultantes ou não da excisão, não é tida como sendo excisão feminina, para efeitos de aplicação da presente lei, desde que o ato médico tenha sido aprovado pelo coletivo de médicos afetos ao serviço com base num diagnóstico que indique a necessidade dessa cirurgia. O artigo 3.° da Lei da excisão feminina clarifica e reforça a proibição absoluta e expressa da excisão em todo o território da Guiné-Bissau. O artigo 9.° acrescenta a componente da extraterritorialidade da aplicação desta lei (ver infra). O n.° 2 do artigo 3.° contém uma delimitação negativa do conceito da MGF, clarificando que não é MGF a intervenção médica sobre o órgão genital feminino, feita nas instalações sanitárias adequadas por pessoa habilitada com o fim de corrigir quaisquer anomalias resultantes ou não da excisão. Tal inclui as denominadas “cirurgias reparativas”, como seja a cirurgia reconstrutiva do clitóris, que desejavelmente devem ser integradas em processos mais amplos de reconstrução, envolvendo várias dimensões (biológicas, emocionais, morais, psicológicas, sexuais), às quais as mulheres vítimas de MGF podem ter acesso17. A eficácia destas reparações não é consensual – quer em termos físicos quer psicológicos - e, em nenhum caso, elimina o mal cometido, o trauma e o estigma associado à MGF. A previsão do n.° 2 também inclui outras intervenções médicas para corrigir “anomalias” não resultantes da excisão. Note-se que qualquer ato médico tem que ser “aprovado pelo coletivo de médicos afetos ao serviço com base num diagnóstico que indique a necessidade dessa cirurgia”. No relatório da organização “28 too many – FGM Let’s end it” defende-se que este artigo abre “uma porta” para permitir a MGF médica, mas tal não parece corresponder ao que a lei explicitamente enuncia (28 Too Many 2018). Exercício recomendado Exercício sobre a legislação relativa à MGF – discussão sobre a utilidade de uma lei autónoma para a MGF versus a previsão geral do crime contra a integridade física no Código penal 3.3. MGF como crime CAPÍTULO II DOS CRIMES E PENAS ARTIGO 4.° (Sanção) Quem, por qualquer motivo, efetuar a excisão feminina numa das suas variadas formas (clitoridectomia, excisão, incisão, infibulação) com ou sem consentimento da vítima, é punido com pena de prisão de 2 a 6 anos. A MGF é claramente criminalizada pela Lei, consagrando-se, no artigo 4.° o respetivo tipo penal. Para a excisão de menores aplica-se o artigo 5.°. Consentimento: de referir que o consentimento das vítimas é irrelevante em matéria de MGF. Normalmente as vítimas são menores de idade, mas, mesmo em casos em que sejam maiores, o 17 Para mais informação sobre as cirurgias reparativas ver: (Villani 2018) 32 consentimento não seria relevante para efeitos de exclusão da ilicitude ou culpa dos agentes que praticam o crime, quer nos termos do Código Penal guineense, quer nos termos desta lei. Legislação comparada Molduras penais em países vizinhos18 Gâmbia • Pena pela prática de MGF: prisão de 3 anos • Se a prática de MGF causa a morte: pena de prisão perpétua Senegal • Pena pela prática de MGF: prisão de 6 meses a 5 anos • Se a prática de MGF causa a morte: pena de “trabalhos forçados” perpétua19 Mauritânia • Pena pela prática de MGF: prisão de 1 a 3 anos Questão da prova: a prova quanto à prática deste crime é um dos desafios da implementação desta lei mas não difere substancialmente da de outros tipos de crimes. Assim, no A jurisprudência conhecida sobre MGF na Guiné-Bissau direito guineense, “a prova é demonstra que, até ao presente, os agentes confessaram apreciada segundo a livre convicção a prática do crime, que, nalguns casos, foram tidos em da entidade que se formará a partir conta relatórios médicos ou relatos de agentes de saúde, das regras de experiência e dos bem como fotografias das crianças. critérios da lógica” (artigo 117.° do Código de Processo Penal). Questão da prova no Reino Unido Opinião “A falta de condenações [no RU] inevitavelmente levanta questões: a nossa lei atual é adequada para proteger mulheres e meninas contra a MGF? A lei deve mudar para tornar mais fácil condenar os perpetradores? A resposta não é simples. Existem inúmeros fatores que dificultam tanto a deteção quanto a condenação da MGF. A obtenção de provas suficientes é uma questão que impede o processo penal: ambos os casos apresentados este ano [2018] caíram, por inadmissibilidade ou falta de provas suficientes. As meninas muitas vezes têm medo de "reportar" os seus pais ou família. Os perpetradores da MGF estão cada vez mais conscientes do risco de serem processados e, por isso, tomam medidas evasivas. Estas medidas incluem o aumento da MGF do Tipo 4, que pode ser uma pequena incisão, picada ou lesão”(Mellor 2018). Penas acessórias: especialmente nos casos em que a MGF é realizada por profissionais de saúde, pode haver recurso à aplicação de penas acessórias. Algumas leis que criminalizam a MGF preveem, no corpo do respetivo diploma, a aplicação destas penas (ver infra, exemplo da Lei Italiana). Nos termos da alínea c) do artigo 39.° do CP, são penas acessórias a suspensão temporária de profissão e a demissão. Terão de ser preenchidos os pressupostos de aplicação destas penas acessórias (cfr. artigos 51.° e 52.° do CP), pelo que melhor teria sido prever especificamente uma pena acessória, integrada nesta lei. Legislação comparada Sanções acessórias relativamente a profissionais de saúde 18 Para uma análise comparativa das várias leis sobre MGF, ver (The World Bank Group 2018). 19 (The World Bank Group 2018) e (28toomany 2015). 33 Lei Italiana Art. 583-ter:20 Quando uma pessoa que pratica uma profissão relacionada com a saúde é condenada por um dos crimes previstos no art. 583-bis, a sentença implicará a proibição secundária / acessória da prática de tal profissão de três a dez anos. A sentença é comunicada ao corpo nacional / ordem de cirurgiões. 3.4. MGF e proteção das crianças ARTIGO 5.° (Excisão sobre menor) 1. A excisão praticada sobre menor de idade é punida com pena de prisão de 3 a 9 anos. 2. Os pais, tutor, encarregado de educação ou qualquer pessoa a quem cabe a custódia da criança tem o dever de impedir a prática da excisão. 3. O não cumprimento do disposto no número anterior é punido com a pena de prisão de 1 a 5 anos. 4. Para efeitos desta lei, tanto o termo menor de idade como criança se referem a pessoa abaixo da idade da maioridade. A lei prevê uma moldura penal agravada (3-9 anos) para os casos de excisão praticada sobre menor de idade, que são os casos regra. Mais estabelece um dever de impedir a prática a Na jurisprudência guineense conhecida, a pena todos os que tenham o dever de proteger a máxima aplicada foi a pena de prisão de 3 anos. criança, cuja violação comporta uma pena de Todos os casos envolveram situações de MGF de prisão de 1 a 5 anos. A idade da maioridade crianças. Apenas num caso é referida a idade das na Guiné-Bissau é 18 anos. menores: menos de 1 (um) ano de idade. year old. Mecanismos de proteção das crianças na Guiné-Bissau: A legislação guineense sobre a matéria da proteção das crianças é obsoleta21 e não protege especificamente as vítimas (potenciais ou efetivas) de MGF. É urgente desenvolver e aprovar legislação adequada. Tem-se falado na adoção de uma Política Nacional de Proteção da Criança e de um Código de Proteção da Criança, harmonizados com a Convenção sobre os Direitos da Criança e alinhados com a Agenda Nacional para as Crianças (UNICEF 2015), mas até agora não são públicos quaisquer projetos legislativos. O sistema de proteção das crianças é frágil e insuficiente para dar resposta às necessidades. O Ministério da Mulher, Família e Coesão Social coordena os serviços de assistência social na Guiné- Bissau. Como efetivamente não tem presença ao nível regional ou local, o Ministério é também um provedor de serviços direto, embora com capacidade muito limitada. O IMC e várias agências especializadas, como o Comité para o Abandono de Práticas Nocivas (CNAPN) têm alguma capacidade para além do nível central. 20 Legge 9 gennaio 2006, n. 7, "Disposizioni concernenti la prevenzione e il divieto delle pratiche di mutilazione genitale femminile" pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 14 del 18 gennaio 2006. In: http://www.camera.it/parlam/leggi/06007l.htm 21 A legislação principal que regula esta matéria é de 1971: Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores do Ultramar Decreto 417/71. 34 Embora tenham sido feitos planos para tribunais de Família e Menores nas regiões, estes não estão operacionais, havendo apenas uma secção de Família e Menores no Tribunal Regional de Bissau. (UNICEF 2015) Legislação comparada Ordens de proteção Noutros ordenamentos jurídicos vigoram disposições que asseguram o recurso a “ordens de proteção” ou medidas cautelares, que visam remover imediatamente e com caráter de urgência o perigo de MGF. Estas ordens revelam-se particularmente importantes no caso da MGF praticada em menores. Uganda22 Lei sobre Proibição da Mutilação Genital Feminina, 5 de 2010 Seção 14: Poderes especiais do tribunal (1) Um tribunal judicial pode, se estiver convencido de que uma rapariga ou mulher será provavelmente submetida a mutilação genital feminina, a pedido de qualquer pessoa, emitir uma ordem de proteção. (2) Quando a ordem de proteção é emitida em relação a uma criança, o Tribunal de Família e Crianças pode emitir ordens apropriadas para a criança, conforme julgar necessário. Reino Unido23 Seção 73 da Lei de Crimes Graves de 2015, que alterou a Lei de Mutilação Genital Feminina para incluir ordens de proteção contra a MGF. Uma ordem de proteção contra a MGF é uma medida civil que pode ser solicitada através de um tribunal de família. A ordem de proteção contra a MGF oferece um meio para proteger as vítimas reais ou potenciais de MGF nos termos do direito civil. Pode incluir, por exemplo, a retenção de um passaporte para evitar que a pessoa em risco seja levada para o estrangeiro para a prática de MGF ou medidas de prevenção para que as pessoas que pretendem realizar a MGF não o possam fazer. As ordens de proteção não implicam o pagamento de quaisquer taxas ou custas judiciais. A violação de uma ordem de proteção contra a MGF é uma infração penal, à qual corresponde uma pena de até 5 anos de prisão. Como alternativa ao processo criminal, a violação da ordem pode ser tratada no tribunal de família como um desrespeito ao tribunal, com um máximo de 2 anos de prisão. Os pedidos de ordem de proteção podem ser feitos por: - a pessoa que deve ser protegida pela ordem; - uma terceira parte relevante (como uma autoridade local); - qualquer outra pessoa com a permissão do tribunal (por exemplo, professores, profissionais de saúde, polícia, familiares). Quando a ordem é decidida, a polícia do local em que a potencial vítima reside deve receber uma cópia do pedido, juntamente com uma declaração que demonstre que todos os envolvidos foram informados. Lei da proteção da criança em Portugal: 22 Ver (The World Bank Group 2018) 23 Ver também: (GOV.UK 2016) 35 A proteção específica das crianças está prevista na Lei nº 147/9924 – Lei de proteção de crianças e jovens em perigo – e pode ser aplicável em casos de MGF. Esta lei concede às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) um papel preventivo e protetor no combate a situações que ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral de crianças e jovens. Artigo 91.º (Procedimentos urgentes na ausência do consentimento) 1 - Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais. 2 - A entidade que intervém nos termos do número anterior dá conhecimento imediato das situações a que aí se alude ao Ministério Público ou, quando tal não seja possível, logo que cesse a causa da impossibilidade. 3 - Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de acolhimento, nas instalações das entidades referidas no artigo 7.º ou em outro local adequado. 4 - O Ministério Público, recebida a comunicação efetuada por qualquer das entidades referidas nos números anteriores, requer imediatamente ao tribunal competente procedimento judicial urgente nos termos do artigo seguinte. 3.5. MGF e disposições criminais relevantes ARTIGO 6.° (Agravação) 1. Quem, com intenção apenas de praticar excisão sobre outrem lhe causar os efeitos previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo 115.° do Código Penal, a pena será de 2 a 8 anos de prisão. 2. Se, em vez dos efeitos previstos no artigo 115.° referido no número 1 deste artigo, resultar a morte da vítima, a pena será de 4 a 10 anos de prisão. O artigo 6.° refere-se à agravação pelo resultado, caso se verifiquem os seguintes efeitos, de acordo com o numero 1 do artigo 115.º do Código Penal (ofensas corporais graves): “(...) c) Lhe afetar a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, ou de procriação de maneira grave e duradoira ou definitivamente; d) Lhe provocar doença permanente ou anomalia psíquica incurável; ou e) Lhe criar perigo para a vida; é punido com pena de prisão de dois a oito anos. (...) 24 Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, Lei n.º 142/2015, de 08 de Setembro, Lei n.º 23/2017, de 23 de Maio e Lei n.º 26/2018, de 05 de Julho. 36 Os efeitos referidos pelo Código Penal são muito comuns no caso da MGF, como se viu supra a propósito das consequências da MGF. Repare-se que este artigo só agrava a moldura penal caso se trate de MGF sobre mulheres (adultas), já que a pena associada à MGF de menores é superior à moldura penal prevista por agravação: 3 a 9 anos. Nota-se ainda que, caso a MGF cause a morte de uma criança, a moldura penal máxima é agravada em apenas um ano. ARTIGO 7.° (Comparticipação) Quem facilitar, incitar, incentivar, ou contribuir de alguma forma para a prática de excisão feminina é equiparado, para efeitos do presente diploma, ao autor principal, devendo ser punido nessa qualidade. O artigo 14.º do Código Penal, (sob a epígrafe agentes do crime) refere que “a participação na prática de um crime pode assumir a forma de autoria, co-autoria ou cumplicidade”. Os artigos seguintes do CP esclarecem o significado de cada um destes conceitos: - Autoria: é punível como autor quem executa o facto, por si mesmo, por intermédio de outrem ou, dolosamente, instiga um terceiro à prática de um crime (artigo 15.° do CP); - Co-autoria: se vários autores, por acordo, tácito ou expresso, tomarem parte direta na execução ou atuarem conjuntamente em conjugação de esforços para a prática do mesmo facto, responderão como co-autores (artigo 16.° do CP); - Cumplicidade: é punível como cúmplice quem, dolosamente e fora dos casos de autoria, ajuda terceiro a praticar um crime. O n.° 2 refere que é aplicável ao cúmplice a pena correspondente ao tipo de ilícito, especialmente atenuada (artigo 17.° do CP); Outras normas relevantes são as relativas a: - Culpa na comparticipação: cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes (artigo 18.° do CP); - Ilicitude na comparticipação: a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto, quando depender de certas qualidades ou relações especiais do agente, reflete-se na responsabilidade criminal dos demais agentes que tenham conhecimento de que essas qualidades ou relações especiais se verificam num dos comparticipantes (artigo 19.° do CP). Conclui-se que a lei da MGF na Guiné-Bissau trata a matéria da participação no crime de MGF de forma ligeiramente diferente da prevista no Código Penal, considerando as situações de cumplicidade como situações de autoria. Assim, são autores: - Os “autores do crime”, que serão normalmente as fanatecas: de acordo com a jurisprudência conhecida, várias fanatecas foram condenadas a pena de prisão de 3 anos, algumas a pena de prisão suspensa e outras a pena de prisão efetiva; - Os pais ou responsáveis pelas crianças, que tomam a decisão de submeter as crianças à MGF e, portanto, violam diretamente o número 2 do artigo 5.°: de acordo com a jurisprudência 37 conhecida, várias mães foram condenadas como autoras da violação do dever de impedir a prática da excisão, de acordo com este artigo (a pena de prisão de 3 anos, algumas a pena de prisão suspensa e outras a pena de prisão efetiva); - Outras pessoas que facilitem, incitem, incentivem, ou contribuam de alguma forma para a prática de excisão feminina, que são equiparados a autor principal de acordo com o artigo 7.°. Nestes casos, entende-se que deve haver recurso aos artigos 18.° e 19.° do CP, supracitados, para aferir do grau de culpa e ilicitude da comparticipação. Quanto àqueles que sabem que a prática da MGF se vai realizar e nada fazem para a impedir, a lei parece contemplá-los no artigo seguinte (artigo 8.°). No entanto, de acordo com a jurisprudência conhecida, outros familiares das crianças que tomaram conhecimento da realização da prática e não impediram a sua realização foram condenados ao abrigo do artigo 7.° da Lei (na pena de pena de 12 (doze) meses de prisão convertida em multa a razão diária de 500 (quinhentos) fcfa). ARTIGO 8.° (Omissão de auxílio e de denúncia) 1. Quem por qualquer meio tomar conhecimento de preparação conducente à pratica de excisão e não adotar medidas para impedir a sua consumação, podendo fazê-lo sem riscos para a sua integridade física, e equiparado a omissão de auxilio previsto no artigo 144.° do Código Penal. 2. Quem, por natureza das suas funções, tiver conhecimento da prática de excisão tem o dever de denunciá-la à Polícia Judiciaria, ao Ministério Publico ou a Polícia de Ordem Publica. 3. A violação do disposto no número anterior é punida com a pena de multa de 500.000 xof a 2.500.000 xof. O artigo 8.° da lei remete para o artigo 144.° do Código Penal nos casos em que alguém toma conhecimento da preparação conducente à prática de MGF e não adota medidas para impedir a sua consumação, podendo fazê-lo sem riscos para a sua integridade física. As formas de participação no crime de MGF foram vistas supra (ver anotação ao artigo 7.°). Refere o artigo 144º (Omissão de auxílio) que: 1. Quem, em caso de grave necessidade de outra pessoa que se encontrar em perigo de vida, deixar de a socorrer diretamente ou por intermédio de terceiros, quando o pudesse fazer sem qualquer risco pessoal grave, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa. 2. Se o agente for médico ou profissional de saúde, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 3. No caso previsto no número anterior, acessoriamente, poderá ser decretada a suspensão da atividade profissional do agente por um período de tempo até um ano. 4. O procedimento criminal depende de queixa. A questão que se pode colocar é a de saber se o artigo 8.° da lei, ao remeter para o artigo 144.° do Código Penal, também remete para o caráter semi-público do crime de omissão de auxílio. Neste caso, a omissão de auxílio apenas pode ser julgada caso a situação tenha sido reportada às autoridades por quem seja titular do direito de queixa. No entanto, o artigo 10.° desta Lei refere claramente que o procedimento criminal para os crimes previstos nesta lei não depende de queixa, denúncia ou participação das vítimas ou seus representantes legais, pelo que a interpretação mais adequada é a de 38 que o artigo 8.° remete para o artigo 144.° do Código Penal apenas no que respeita ao tipo penal e medida da pena (e não à natureza do crime). Por outro lado, refere o número 2 que quem, por natureza das suas funções, tiver conhecimento da prática de excisão tem o dever de denunciá-la à Polícia Judiciaria, ao Ministério Publico ou à Polícia de Ordem Publica. A violação deste dever de denúncia tem consequências previstas no número 3: pena de multa de 500.000 xof a 2.500.000 xof. Este artigo deve ser lido em conjugação com o artigo 12.° (ver infra). A imagem infra (imagem 10) resume o conteúdo da lei e respetivas consequências penais para vários intervenientes possíveis em casos de MGF. Imagem 10 – Resumo do conteúdo da lei e respetivas consequências penais para possíveis intervenientes em casos de MGF ARTIGO 9.° (Fraude à lei) E aplicável o disposto no artigos 4.° a 8.° da presente lei, os casos em que a cidadã nacional ou estrangeira residente na Guiné-Bissau seja deslocada e excisada num país estrangeiro. Em regra, no Direito Penal guineense, vale o princípio da aplicação territorial da lei penal, que dispõe que “A lei penal guineense é aplicável aos factos praticados em território da Guiné-Bissau, independentemente da nacionalidade do agente” (artigo 5.º do CP). O artigo 7.º do CP, dispõe sobre a aplicabilidade da lei penal a factos praticados fora do território nacional25. 25 Artigo 7º (Factos praticados fora do território nacional): 1. Salvo tratado ou convenção em contrário, a lei penal da Guiné-Bissau é aplicável a factos praticados fora do território nacional desde que: a) Constituam algum dos crimes previstos no título VII, no Capítulo III do título III ou nos artigos 203º, 204º e 205º do Código Penal; b) Constituam algum dos crimes previstos no título I ou nos artigos 124º, 125º, 195º e 196º do Código Penal e o agente seja encontrado na Guiné-Bissau não sendo possível a sua extradição; 39 Extraterritorialidade da aplicação da lei penal ao crime de MGF: o artigo 9.° da Lei prevê claramente um elemento de extraterritorialidade, que possibilita a condenação pelo crime de MGF quando os factos forem praticados noutra jurisdição, mesmo que nesta não se criminalize a MGF. Era possível considerar- se semelhante proibição com recurso às normas do CP existentes, mas este artigo clarifica a inclusão deste elemento, o que é importante para prevenir os casos em que, por exemplo, crianças residentes na Guiné-Bissau sejam levadas para fora do país para serem submetidas à MGF num outro país, com outra jurisdição. Face a este risco - real e atual - a inclusão clara do elemento da extraterritorialidade alarga o combate à MGF a vários contextos, contribuindo para a sua erradicação, além de constituir uma mensagem preventiva e um reforço para os progenitores, que assim terão mais uma arma com que resistir à pressão familiar e social para submeter as suas filhas à prática de MGF. Os meios de comunicação social sugerem que a MGF transfronteiriça tem sido um problema para a Guiné-Bissau, uma vez que as famílias atravessam as fronteiras de países vizinhos (como o Senegal) para serem cortadas. Como a Guiné-Bissau tentou reforçar as leis para combater a MGF, isto, por sua vez, levou famílias a tentar viajar com as meninas para fora do país para áreas onde podem evitar processos judiciais. (28 Too Many 2018) Jurisprudência comparada Espanha Exercício do poder paternal: Sentença 4815/2010, de 11 de maio, da Audiencia Provincial de Barcelona: o tribunal negou provimento ao recurso interposto por uma mulher da Guiné Conacri para manter o exercício do poder parental em relação à sua filha mais nova, por esta “minimizar a importância da MGF da sua filha” resultando “evidente a existência de risco da menor vir a ser sujeita a MGF caso se deslocasse à Guiné como pretendia a sua mãe (...) o organismo público, assumindo a tutela da menor pretende impedir que a menor se desloque ao seu país de origem e, uma vez lá, independentemente da sua vontade e até mesmo da sua mãe, seja submetida a uma prática que, além de atentar à sua integridade física, pode causar evidentes efeitos psicológicos e afetar a plenitude da sua vida sexual futura”. Violação do dever de cuidado: Sentença 5/2014 de 24 de fevereiro, da Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional: Os pais de duas meninas (cidadãos espanhóis de origem gambiana) foram absolvidos num caso que ocorreu em 2003. A mãe viajou com seus filhos para seu país de origem, durante dois meses, no verão. As duas meninas foram deixadas por dois dias sob o cuidado da avó, que usou a ausência da mãe para praticar a MGF. Quando a mãe voltou, ela teve uma grande discussão com a avó, por ser contra a prática. O tribunal afirmou que, embora seja verdade que os pais têm um dever de cuidado para com seus filhos, tal não pode implicar que a família não deve viajar para o país de origem ... não pode ser entendido como negligência do dever de cuidado o facto de a acusada ter deixado as crianças com a sua mãe durante dois dias (...). (Johnsdotter and Mestre i Mestre 2015) c) Se trate de factos praticados por guineenses ou por estrangeiros contra guineenses, sendo os agentes encontrados na Guiné-Bissau. 2. No caso previsto na alínea anterior, se o agente não viver habitualmente na Guiné-Bissau ao tempo da prática dos factos, a lei penal guineense só se aplicará desde que: a) Tais factos sejam criminalmente puníveis pela legislação do lugar em que foram praticados; b) Constituam crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. 40 Questão do impedimento expresso de viajar com potenciais vítimas para países onde a MGF se pratica: Resta saber se a previsão de extraterritorialidade, acima referida, traz a mesma segurança que traria o impedimento expresso de conduzir as crianças ou jovens para países onde a MGF se pratica, com o intuito dessa prática. Portugal Opinião: A Amnistia Internacional, em análise à tipificação criminal da MGF em Portugal, aborda a matéria do impedimento expresso de viajar com potenciais vítimas para países onde a MGF se pratica, referindo: “(...) o nosso primeiro entendimento é de que tal proibição expressa não traz nada de novo, podendo sim trazer o perigo, quando mal aplicada, de se imiscuir na esfera de exercício do poder paternal e na esfera privada da família.” e “(...) poderemos igualmente enquadrar a proibição de transportar jovens para países onde a MGF é efetuada, razão pela qual podem e devem ser estabelecidas normas/princípios orientadores para um inquérito prévio e informal, aquando do surgimento de jovens a viajar para países onde a MGF é executada, bem como a vinda de uma “fanateca” (excisadora) para Portugal” (...) “Com isto, não se entende a necessidade de criar uma norma expressa de proibição, mas sim normas que regulamentem um processo de investigação prévio a essa viagem para estrangeiro (vítimas) ou para Portugal (excisadora), com uma imperiosa abordagem de DH, com respeito pelos jovens, pela liberdade de todo o agregado familiar, bem como dos restantes sujeitos a esse inquérito.” (Grupo de Juristas AI 2008) ARTIGO 10.° (Procedimento criminal) O procedimento criminal para os crimes previstos nesta lei não depende de queixa, denúncia ou participação das vítimas ou seus representantes legais. O artigo 10.° desta Lei refere claramente que os crimes previstos nesta lei são públicos, ou seja, não dependem de queixa, denúncia ou participação das vítimas ou dos seus representantes legais. Crime público: crime para cujo procedimento basta a sua notícia pelas autoridades judiciárias ou policiais, bem como a denúncia facultativa de qualquer pessoa. As entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar os crimes de que tenham conhecimento no exercício de funções. Nos crimes públicos o processo corre mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos. Crime semi-público: crime para cujo procedimento é necessária a queixa da pessoa com legitimidade para a exercer (por norma o ofendido ou seu representante legal ou sucessor). O artigo 180.º do Código de Processo Penal enuncia os titulares do direito de queixa26. As entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar esses crimes, sem embargo de se tornar necessário que os titulares do direito 26 Artigo 180.º do Código de Processo Penal (titulares do direito de queixa) 1. Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la qualquer das pessoas a seguir indicadas, independentemente do acordo das medidas: a) Quem estiver na situação descrita no artigo 66º, alínea a); b) Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertencerá ao cônjuge sobrevivo ou legalmente equiparado, e aos descendentes e, na falta deles, aos ascendentes, irmãos e seus descendentes, salvo se algum deles tiver participado no crime; c) Quando o ofendido for incapaz por anomalia psíquica ou menor de 14 anos, o direito de queixa pertencerá ao seu representante legal e às pessoas referidas no número anterior nos termos aí mencionados. 2. A queixa apresentada contra um dos participantes no crime implica a instauração do procedimento criminal contra todos. 41 de queixa exerçam tempestivamente o respetivo direito (sem o que não se abrirá inquérito). Nos crimes semi-públicos é admissível a desistência da queixa. Importa ainda ter em conta os seguintes artigos: - Artigo 177.º do Código de Processo Penal (Participação): 1. Qualquer agente policial que tomar conhecimento da prática de um crime elabora, obrigatória e imediatamente, participação. 2. Aos funcionários públicos, gestores públicos e quaisquer outros agentes ou autoridades públicas que tomarem conhecimento de crimes no exercício das suas funções e por causa delas é correspondentemente aplicável o disposto no número anterior. 3. Se se tratar de crime semi-público, a instauração do procedimento criminal depende do exercício do direito de queixa sob pena de, não sendo exercido nos oito dias imediatos à elaboração do auto, este se arquivar. - Artigo 85º do Código Penal (Prazo para o exercício do direito de queixa) Quando o procedimento criminal depender de queixa esta deve ser apresentada nos seis meses após o titular ter tomado conhecimento do facto, sob pena 3.6. MGF, assistência e sigilo profissional CAPÍTULO III ASSISTENCIA E MEDIDAS PREVENTIVAS ARTIGO 11.° (Assistência judiciária) As vítimas ou quaisquer interessados, que pretendam constituir-se assistente nos termos dos artigos 66.°, 67.° e 68.° do Código do Processo Penal, nos processos relacionados com crimes previstos na presente lei são isentos do pagamento de quaisquer taxas ou impostos. Uma pessoa que tenha sido vítima de um crime pode limitar‑se a apresentar queixa. Se quiser ter poderes que lhe permitam intervir diretamente no andamento do processo, deve constituir‑se assistente. Em princípio, só o ofendido pelo crime pode constituir‑se assistente. Contudo, se se tratar de menor ou incapaz, o seu representante legal pode tomar o seu lugar. Ao constituir-se assistente, nos termos do artigo 67.° do Código de Processo Penal27, assume uma posição de colaboração com o Ministério Público, entidade a quem compete investigar, deduzir acusação e sustentá‑la efetivamente. Em particular, o assistente tem os direitos de28: 27 Artigo 67º (Constituição de assistente): 1. As pessoas com legitimidade para se constituírem assistentes podem requerê-lo em qualquer altura do processo desde que o façam até sete dias antes da audiência de julgamento. 2. Durante a investigação o requerimento é dirigido ao Ministério Público e na fase de julgamento ao juiz. (...) 28 Artigo 68º (Poderes do assistente): 1. A intervenção processual do assistente é subordinada e auxiliar da do Ministério Público. 2. Excetua-se do disposto no número anterior: a) Oferecer provas e requerer diligências pertinentes a descoberta da verdade; b) Deduzir acusação definitiva independente e por factos diversos da posição assumida pelo Ministério Público, no fim da investigação; c) Recorrer das decisões que o afetem; d) Formular o pedido de indemnização por perdas e danos emergentes de crime. 42 - Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que considere necessárias (mas não realizar, ele próprio, atos de investigação); - Deduzir acusação independente da do Ministério Público; - Interpor recurso das decisões que o afetem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo para tanto de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça. O assistente tem ainda outros direitos, com destaque para os relativos à fase de julgamento. Pode, nomeadamente, participar na audiência e fazer alegações no final desta através do seu advogado, pronunciar‑se sobre os meios de prova e arrolar testemunhas. Normalmente, a constituição de alguém como assistente implica o pagamento de taxa de justiça e obriga à constituição de advogado29. O artigo 11.° prevê claramente que, nos casos de MGF, não há lugar ao pagamento de quaisquer taxas ou impostos para a constituição de assistente. Para promover a constituição de assistente nestes casos, poderia a Lei também ter previsto uma ligação mais clara aos mecanismos de assistência judiciária. ARTIGO 12.° (Dever especial de assistência) 1. Os responsáveis e técnicos das estruturas sanitárias têm o dever de prestar assistência física e psicológica às vítimas de excisão e de lhes assegurar o tratamento mais apropriado, de acordo com as legis artis. 2. Quem, por razão da sua qualidade profissional, tomar conhecimento da prática de excisão feminina, além do disposto no número anterior, fica obrigado ao regime previsto no artigo 8.° da presente lei. O número 1 do artigo 12.° estabelece o dever dos prestadores de cuidados de saúde de prestarem assistência física e psicológica às vítimas de MGF. A formação específica dos profissionais de saúde revela-se fundamental bem como a aprovação de guias de procedimentos claros nestes casos, com informações sobre a MGF e um conjunto de passos que devam ser tomados nestas situações. O número 2 do artigo 12.° estabelece o dever legal de denunciar a prática de MGF à Polícia Judiciária, ao Ministério Público ou à Polícia de Ordem Pública. O segredo profissional aplica-se aos profissionais de saúde. No entanto, normalmente os códigos deontológicos ou profissionais autorizam algumas exceções nas quais estão incluídos os maus tratos/violência sobre menores. Na Guiné-Bissau, não há dúvidas de que o dever legal imposto pelo número 2 do artigo 12.° de reportar a prática de MGF – quer o seu risco quer a prática consumada - prevalece sobre o segredo profissional, nos casos de MGF. Torna-se importante articular o regime penal, previsto no Código Penal e Código de Processo Penal, com esta disposição legal. Torna-se ainda fundamental prever um conjunto de regras deontológicas ou éticas relativamente aos profissionais da saúde, nas quais fique claro o que está abrangido pelo segredo profissional e em que casos esse segredo deve ser afastado. Legislação comparada Sigilo profissional no Brasil (Waksman 2011): 29 Artigo 69º ((Representação judiciária): 1. O assistente é sempre representado por advogado. (...) 43 Sigilo profissional Resulta de confidências feitas ao profissional de saúde em virtude da prestação de serviços Informações contidas no prontuário médico devem ser resguardadas Alcança todas as pessoas que tenham acesso às informações do prontuário do paciente Não deve ser revelado para autoridade judiciária ou policial (não há disposição legal que respalde ordens dessa natureza) Informações abrangidas Relatadas ao profissional Percebidas no decorrer do atendimento Descobertas e que o paciente não tinha intenção de informar Libera do segredo médico Autorização expressa do paciente Justa causa Dever legal A imagem infra (imagem 11) resume o conteúdo da lei e respetivas consequências penais para os técnicos de saúde, em casos de MGF. Imagem 11 – Resumo do conteúdo da lei e respetivas consequências penais para técnicos de saúde em casos de MGF 3.7. MGF e medidas de prevenção ARTIGO 13.° (Governo) O Governo, através das instituições competentes, deve inscrever no Orçamento Geral do Estado verbas com vista a: a) Apoiar ações de informação, sensibilização da comunidade sobre as consequências da excisão; b) Apoiar as atividades de assistência e reinserção social das vítimas da excisão; c) Promover e encorajar campanhas de sensibilização pela Mídias e demais órgãos de informação sobre as consequências nefastas da excisão; 44 d) Promover e encorajar ações de formação e capacitação de líderes de opinião e ONG's junto das Comunidades; e) Promover maior cooperação entre diferentes estruturas defensoras de direitos humanos, líderes religiosos, poder tradicional no combate e denúncia dos casos de excisão. As medidas de prevenção e promoção previstas no artigo 13.° da Lei da excisão são medidas às quais o governo se encontra obrigado a afetar verbas orçamentais. A prevenção do crime inclui um conjunto de estratégias e medidas que visam reduzir o risco de ocorrência de crimes e dos seus efeitos nocivos sobre os indivíduos e a sociedade. Essas medidas podem ser implementadas por indivíduos, comunidades, empresas, organizações não-governamentais e instituições públicas, incluindo o governo. A prevenção do crime pode ter um caráter: a) Primário e Universal - fortalecendo as instituições que apoiam a sociedade civil ou aspetos do ambiente físico ou social mais amplo que podem levar ao crime (prevenção primária). b) Secundário e Particular - Pode ser direcionada a cenários de alto risco ou para a identificação precoce e subsequente intervenção na vida de pessoas ou grupos em risco de se envolver em atividades criminosas ou de se tornarem vítimas de crime (prevenção secundária). c) Terciário - direcionada a prevenção de reincidência entre as pessoas que já se envolveram em ofensas (prevenção terciária). Uma estratégia abrangente de prevenção ao crime incorporará as três abordagens. Nota-se que a Lei se foca essencialmente na prevenção primária e secundária. É importante encontrar estratégias de prevenção terciária, financiadas pelo governo. 3.8. MGF e asilo “Não existe dúvida de que a violação e outras formas de violência baseada no género, tal como a violência relacionada com o dote, mutilação genital feminina... são atos que infligem dores severas e sofrimento – tanto físico como mental – e que têm sido utilizadas como formas de perseguição, tanto as perpetradas pelo Estado como por atores privados” (UNHCR 2002) A Convenção de Genebra de 1951, ratificada pela Guiné-Bissau, define refugiado como qualquer pessoa “que receie, com razão bem fundamentada, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país de que tem nacionalidade ou, em virtude de tal receio, não queira pedir a proteção desse país” (Artigo 1.º). No entanto, desde a sua adoção, o âmbito da definição tem sido alargado. Inicialmente, a perseguição era interpretada como sendo feita pelos Estados ou pelos seus agentes. Atualmente, é considerada perseguição quando o Estado não oferece proteção adequada em relação à perseguição feita por atores não-estatais. A aplicação da Convenção aos casos de perseguição por motivos de género foi clarificada pela declaração do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que declarou que a MGF é considerada uma forma de violência com base no género, que equivale a perseguição com base no género 45 e perseguição infantil (UNHCR 2009). Isto significa que a idade da criança ou o facto de existir ou não uma manifestação de receio são irrelevantes, e o pedido deve, de qualquer forma, ser considerado bem fundamentado. No caso da Guiné-Bissau, o estatuto do refugiado é regulado pela Lei n.o 6/2008, de 27 de maio. O artigo 130 refere-se ao fundado receio de perseguição em termos semelhantes aos da Convenção supracitada, pelo que se admite juridicamente a concessão do estatuto de refugiado a pessoas que o requeiram, com fundamento em risco de MGF nos seus países. Da mesma forma, guineenses em risco de MGF, quer o risco seja próprio quer seja para as suas filhas ou familiares, podem requerer asilo em países como Portugal. A Lei portuguesa n.º 26/2014, alterou alguns aspetos da legislação anterior, e especificou a MGF como motivo de pedido e concessão de asilo31. Recomendações para a melhoria da Lei contra a MGF na Guiné-Bissau Por (28 Too Many 2018)  Embora a MGF médica não seja atualmente um desafio na Guiné-Bissau, o desempenho da MGF por um profissional de saúde ou num ambiente médico deve ser explicitamente criminalizado e a respetiva punição prevista na legislação principal (para refletir e reforçar as normas relativas a negligência médica estabelecidas no Código Penal). Quaisquer potenciais lacunas devem ser colmatadas.  Quaisquer futuras alterações à lei devem incluir a proteção de mulheres e meninas que não foram cortadas (bem como das suas famílias) de qualquer linguagem depreciativa ou exclusão social da comunidade, incluídas nas leis de alguns outros países.  As leis devem ser acessíveis e fáceis de entender em todos os idiomas locais. Exercício recomendado Análise crítica da legislação relativa à MGF Os participantes devem analisar criticamente a lei da excisão, identificando os seus pontos fortes e as suas limitações e produzir um conjunto de recomendações práticas para o respetivo aperfeiçoamento. 30 “1. O Estatuto do Refugiado é concedido a qualquer pessoa que: a) Receando com razão de ser perseguida pelo facto da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, de pertencer a um certo grupo social ou suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que possui nacionalidade e não pode ou pelo facto desse receio não quer reclamar-se da protecção desse país ou que se não tem nacionalidade e se encontra fora do país onde tinha a sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos ou receios não possa ou não queira regressar”. 31 Por força da confidencialidade da matéria, não existe informação oficial relativa ao motivo do pedido de proteção internacional nem à idade das requerentes de asilo em Portugal. No entanto, sabe-se que o asilo é concedido em Portugal com fundamento no risco de MGF. Sabe-se também que os valores são muito inferiores aos registados noutros países europeus, não colocando Portugal como um dos principais destinos. Segundo os dados sobre MGF e asilo na UE, de março de 2014, os países que mais recebem este tipo de pedidos (25 mil mulheres em 2013) são a Alemanha, a Suécia, a Holanda, a Itália, a França, o Reino Unido e a Bélgica (UNHCR 2014). Tendo em conta que as requerentes de asilo são provenientes sobretudo da Somália, Eritreia, Nigéria, Iraque, Guiné, Egito, Etiópia, Mali e Costa do Marfim, é expectável que Portugal não figure neste relatório de atualização dado não ser o destino preferencial destas comunidades. 46 3.9. Referência à Estratégia Nacional o abandono da MGF Em 2018, foi aprovada uma Estratégia Nacional para o Combate à MGF, para os anos 2018-2022, com os seguintes objetivos: 1. Alcançar o abandono total da prática de MGF/E em todo o território da República da Guiné-Bissau até ao ano 2030, criando assim um ambiente protetor de direitos das mulheres, crianças e jovens raparigas assegurando-lhes uma boa saúde, uma educação de qualidade, a manutenção da sua integridade física e o respeito de todos os seus direitos; 2. Dotar o país de um instrumento estratégico (técnico-político) de orientação com vista ao abandono da prática da MGF/E; 3. Criar um ambiente institucional favorável a uma coordenação das intervenções e o respetivo seguimento e avaliação. A Estratégia adota uma abordagem holística e integrada bem como uma metodologia progressiva que visa mudar comportamentos para abandonar práticas tradicionais prejudiciais (incluindo a MGF) através da educação. Este método considera as prioridades e necessidades das populações locais e baseia-se no respeito pelos direitos humanos em geral e, em particular, pelos direitos das crianças e das mulheres, com o fim de alcançar a mudança social. Privilegia ainda a parceria com a comunidade através do respeito pelos seus valores sociais e culturais. É nosso desejo, que este plano, fruto duma abordagem participativa e consensual, possa permitir às partes engajadas no abandono da prática de MGF/E, de contribuírem significativamente para o abandono total sustentável da prática no curto e médio prazo. Estamos esperançados em ver criado no nosso país, um ambiente de proteção de mulheres, jovens raparigas e crianças, e que assegure a plena participação das mesmas no desenvolvimento das suas comunidades e do seu país, assim como de ver instalado de forma voluntária e definitiva na nossa sociedade o impacto social, económico e no desenvolvimento do respeito pela manutenção da integridade física das mulheres e jovens raparigas em linha com a realização plena dos seus direitos e dignidade. O Primeiro-Ministro Dr. Aristides Gomes A Estratégia adota sete eixos de ação: Eixo Estratégico 1: Fortalecimento capacidade institucional; Eixo Estratégico 2: Comunicação através da mudança de comportamento e mobilização social; Eixo Estratégico 3: Extensão e cobertura nacional de ações de capacitação das comunidades; Eixo Estratégico 4: Fortalecimento da capacidade dos diferentes atores; Eixo Estratégico 5: Cooperação sub-regional, regional e na diáspora; Eixo Estratégico 6: Medidas de acompanhamento; Eixo Estratégico 7: Coordenação, pesquisa, seguimento, avaliação e advocacia. 47 4. Guias de procedimentos – metodologia Exercício Elaborar guias de procedimentos para os diversos profissionais com intervenção relevante ao nível da MGF: magistrados judiciais ou do ministério público, advogados, técnicos dos CAJs (ou defensores públicos), órgãos de polícia, profissionais da saúde, organizações da sociedade civil, etc. Leituras recomendadas: • Organização Mundial da Saúde (OMS) (2009). Eliminação da Mutilação Genital Feminina – Declaração conjunta OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM, OMS. Associação para o Planeamento da Família, in: http://www.who.int/eportuguese/publications/mutilacao.pdf?ua=1 • Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco [CNPCJR] (2014). Mutilação Genital Feminina Manual de Procedimentos para CPCJ - Colaborar Ativamente na Prevenção e Eliminação da Mutilação Genital Feminina. Lisboa: CNPCJR in: https://www.cig.gov.pt/wp- content/uploads/2015/.../Relat_Mut_Genital_Feminina_p.pdf • Escola de Polícia Judiciária [EPJ] (2012). Mutilação Genital Feminina - Guia de Procedimentos para Órgãos de Polícia Criminal in: http://www.instituto- camoes.pt/images/cooperacao/guia_procd_opc_mgf.pdf • Maus Tratos em crianças e jovens, Guia Prático de Abordagem, Diagnostico e Intervenção, Direcção- Geral da Saúde / Divisão de Comunicação e Promoção da Saúde no Ciclo de Vida, Fevereiro de 2011. In: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/maus-tratos-em-criancas-e-jovens-guia-pratico- de-abordagem-diagnostico-e-intervencao.aspx 4.1. Introdução Ainda que a MGF seja teoricamente conhecida na Guiné-Bissau, os tabus (culturais e/ou religiosos) acerca do corpo da mulher e da sua saúde reprodutiva, bem como as normas sociais que encorajam a menina e/ou mulher a aceitar o sofrimento “sem se queixar” (sufri), levam a que não sejam verdadeiramente divulgadas e logo conhecidas as consequências reais da prática. Assim, os profissionais e os/as voluntários/as, na maioria das organizações e instituições com competências na área da violência baseada no género, incluindo autoridades com competências ao nível criminal, possuem pouca ou nenhuma experiência específica no âmbito da mutilação genital feminina. Além disso, o primeiro contacto com a MGF provoca perplexidade, tristeza, desamparo, indignação e dúvida sobre a resposta mais adequada para afastar o perigo de danos ou de danos adicionais na criança e/ou na mãe e familiares. Provoca ainda sentimentos de culpa e arrependimento por não ter tido uma intervenção mais adequada, por desconhecimento. Importa assim proceder a ações de capacitação adequadas que colmatem não apenas a falta de conhecimento, mas também que consigam ajudar a gerir as emoções e sentimentos dos profissionais neste primeiro contacto “real” com a MGF. Torna-se essencial elaborar guias de procedimentos com orientações para uma atuação mais em concreto, alinhada com a missão e competências das autoridades, instituições e/ou organizações relevantes. 48 4.2. Orientações para elaboração dos guias de procedimentos Lista indicativa de legislação relevante: • Constituição da República da Guiné-Bissau (Constituição) • Lei Orgânica dos Tribunais, aprovada pela Lei n.º 3/2002, de 20 de novembro revista pela Lei n.º 6/2011 (LOT) • Código Penal e Código de Processo Penal • Decreto-lei n.º 11/2010, de 14 de junho, relativo ao acesso ao Direito e à justiça • Estatuto da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau • Lei n.º 8/2010, de 22 de junho (Lei Orgânica da GN) • Lei n.º 9/2010, de 22 de junho (Lei Orgânica da POP) • Lei n.º 1 /2009, de 27 de setembro (Estatuto dos Magistrados Judiciais) • Decreto-Lei nº14/2010 de 15 de novembro (Estatuto Orgânico da Polícia Judiciária) Método recomendado para elaboração dos guias: 1) Identificação do papel desempenhado por cada instituição: rever missão, atribuições e competências genéricas (com recurso à legislação ou regulamentação existente); 2) Identificação de ações chave a desempenhar com relevância para a prevenção ou combate da MGF: rever competências específicas relacionadas com a MGF (com recurso à legislação ou regulamentação existente); 3) Identificação dos passos (fases ou etapas) relevantes a tomar em cada ação enunciada: início, desenvolvimento e conclusão, bem como sub-etapas relevantes; 4) Identificação dos desafios e pontos fortes no que respeita às ações chave e passos relevantes: o que constitui um possível obstáculo, quais os recursos existentes; 5) Elaborar orientações sobre como potenciar mecanismos de colaboração e encaminhamento de casos: quais as instituições relevantes e quais os passos a dar bem como informações concretas necessárias para construir mecanismos de colaboração; 6) Identificar formas de maximizar e otimizar recursos e aumentar o impacto das ações chave. Orientações adicionais para a elaboração de guias de procedimentos para os profissionais em matéria de MGF Para elaborar os guias de procedimentos, importa ter em conta três tipos de situações que devem ter um tratamento diferente: Situação Foco Entidades mais relevantes 1 – Risco genérico de MGF: pode Prevenção e • Líderes comunitários (tradicionais e ser identificado em comunidades sensibilização religiosos) e/ou regiões onde • ONGs e organizações comunitárias tradicionalmente a prática é • Instituições estatais competentes realizada, considerando a religião (como o Instituto da Mulher e Criança) e normas sociais ou costumes • Profissionais de saúde 49 existentes na comunidade e/ou região 2 – Risco iminente de MGF: pode Denúncia e Todas as anteriores, em ligação com: ser identificado quando existam procedimentos de • Autoridades policiais indícios de atos preparatórios da urgência com vista à prática, especialmente em remoção do perigo • Ministério Público determinadas épocas ou atingida • Centros de Acesso à Justiça uma determinada idade • Tribunais Idealmente será ativado um sistema de proteção, envolvendo medidas cautelares que evitem a MGF 3 – MGF consumada: sempre Tratamento e/ou • Profissionais de saúde que a MGF é detetada, quer assistência • Centros de Acesso à Justiça tenha acabado de ser realizada e • Advogados Responsabilização a vítima apresente riscos de • Tribunais dos agentes e/ou saúde elevados, quer a posteriori, comparticipantes quando a MGF é detetada (em especial se a mulher está grávida) Na elaboração dos guias de procedimentos deve ser dada especial atenção à fase de identificação e orientações para interação com a pessoa em risco de MGF e/ou com a vítima: Para identificar as situações de MGF, os vários profissionais devem estar informados sobre: - Conceito de MGF (incluindo os tipos específicos praticados na localidade relevante); - Causas e consequências da MGF; - Realidade local e níveis de prevalência em cada região; - Tipos de cerimónias, épocas ou idades relevantes; - Sinais da prática e tradições que a envolvem. Interação com a pessoa em risco de MGF e/ou com a vítima A interação com a pessoa em risco de MGF e/ou com a vítima deve obedecer aos seguintes princípios e/ou usar as seguintes técnicas: 50 51 Anexo 1 – Lei n.° 14/2011, de 6 de julho Preâmbulo A Guiné-Bissau enquanto um Estado soberano abraçou a democracia como a sua forma de governo e de exercício do poder político. Consequentemente compromete-se a respeitar os valores e princípios nela subjacentes, nomeadamente a respeito pelos direitos fundamentais, na qualidade do vetor axiológico de Estado de Direito democrático e cristalização do princípio da dignidade da pessoa humana, no qual se funda a razão, a limite e a fim do Estado moderno. A liberdade de manifestação cultural e religiosa integra o catálogo dos direitos fundamentais, dos quais nasce o dever do Estado, de as assegurar e proteger. Porém, não sendo direitos autónomos, procuraram a sua perfeição no sistema jurídico-constitucional em que se encontram consignados, porquanto a Constituição tem uma estrutura compromissória, na medida em que prevê inúmeros direitos fundamentais, "prima facie" opostos, cuja coerência pratica cabe ao legislador ordinária estabelecer o ponto ótimo de equilíbrio entre um direito fundamental na sua relação com as demais. Com efeito, na prossecução da sua missão de realização da justiça, de garantir a segurança e promover a bem-estar social aos cidadãos, incumbe ao Estado adotar medidas legislativas indispensáveis, com vista a sancionar e reprimir as condutas ofensivas dos padrões de conduta numa vida em sociedade, capazes de por em causa a integridade física e moral e a dignidade da pessoa humana. Assim, ao abrigo da Constituição da República, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ao seu Protocolo Adicional e, sobretudo, da Convenção dos Direitos das Crianças (CDC), da Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW) e do Protocolo de Maputo, a Assembleia Nacional Popular, preocupada com a crescente dimensão social da excisão, decreta, nos termos da alínea g) do Artigo 86.° da Constituição da República, a seguinte: CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS ARTIGO 1.° (Âmbito) A presente lei visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina na República da Guine- Bissau. ARTIGO 2.° (Conceito de Excisão) Para efeitos da presente lei entende-se par excisão, toda a forma de amputação, incisão au ablação parcial au total de órgão genital externo da pessoa do sexo feminino, bem como todas as ofensas corporais praticadas sobre aquele órgão por razões socio-culturais, religiosa, higiene ou qualquer outra razão invocada. ARTIGO 3.° (Proibição da excisão) 1. É expressamente proibida a prática de excisão feminina em todo o território da Guiné-Bissau. 2. A intervenção médica sobre o órgão genital feminino, feita nas instalações sanitárias adequadas par pessoa habilitada com a fim de corrigir quaisquer anomalias resultantes ou não da excisão, não é tida como sendo excisão feminina, para efeitos de aplicação da presente lei, desde que o ato médico tenha sido aprovado pelo coletivo de médicos afetos ao serviço com base num diagnóstico que indique a necessidade dessa cirurgia. 52 CAPÍTULO II DOS CRIMES E PENAS ARTIGO 4.° (Sanção) Quem, por qualquer motivo, efetuar a excisão feminina numa das suas variadas formas (clitoridectomia, excisão, incisão, infibulação) com ou sem consentimento da vítima, é punido com pena de prisão de 2 a 6 anos. ARTIGO 5.° (Excisão sobre menor) 1. A excisão praticada sobre menor de idade e punida com pena de prisão de 3 a 9 anos. 2. Os pais, tutor, encarregado de educação ou qualquer pessoa a quem cabe a custódia da criança tem o dever de impedir a prática da excisão. 3. O não cumprimento do disposto no número anterior é punido com a pena de prisão de 1 a 5 anos. 4. Para efeitos desta lei, tanto o termo menor de idade como criança se referem a pessoa abaixo da idade da maioridade. ARTIGO 6.° (Agravação) 1. Quem, com intenção apenas de praticar excisão sobre outrem lhe causar os efeitos previstos nas alíneas c), d) e e) do artigo 115.° do Código Penal, a pena será de 2 a 8 anos de prisão. 2. Se, em vez dos efeitos previstos no artigo 115.° referido no número 1 deste artigo, resultar a morte da vítima, a pena será de 4 a 10 anos de prisão. ARTIGO 7.° (Comparticipação) Quem facilitar, incitar, incentivar, ou contribuir de alguma forma para a prática de excisão feminina e equiparado, para efeitos do presente diploma, ao autor principal, devendo ser punido nessa qualidade. ARTIGO 8.° (Omissão de auxílio e de denúncia) 1. Quem por qualquer meio tomar conhecimento de preparação conducente à pratica de excisão e não adotar medidas para impedir a sua consumação, podendo fazê-lo sem riscos para a sua integridade física, e equiparado a omissão de auxilio previsto no artigo 144.° do Código Penal. 2. Quem, por natureza das suas funções, tiver conhecimento da prática de excisão tem o dever de denunciá-la à Polícia Judiciaria, ao Ministério Publico ou a Polícia de Ordem Publica. 3. A violação do disposto no número anterior é punido com a pena de multa de 500.000 xof a 2.500.000 xof. ARTIGO 9.° (Fraude à lei) E aplicável o disposto no artigos 4.° a 8.° da presente lei, os casos em que a cidadã nacional ou estrangeira residente na Guiné-Bissau seja deslocada e excisada num pais estrangeiro. ARTIGO 10.° (Procedimento criminal) 53 o procedimento criminal para os crimes previstos nesta lei não depende de queixa, denuncia ou participação das vítimas ou seus representantes legais. CAPÍTULO III ASSISTENCIA E MEDIDAS PREVENTIVAS ARTIGO 11.° (Assistência judiciária) As vitimas ou quaisquer interessados, que pretendam constituir-se assistente nos termos dos artigos 66.°, 67.° e 68.° do Código do Processo Penal, nos processos relacionados com crimes previstos na presente lei são isentos do pagamento de quaisquer taxas ou impostos. ARTIGO 12.° (Dever especial de assistência) 1. Os responsáveis e técnicos das estruturas sanitárias tem o dever de prestar assistência física e psicológica às vítimas de excisão e de Ilhes assegurar o tratamento mais apropriado, de acordo com as legis artis. 2. Quem, por razão da sua qualidade profissional, tomar conhecimento da prática de excisão feminina, alem do disposto no numero anterior, fica obrigado ao regime previsto no artigo 8.° da presente lei. ARTIGO 13.° (Governo) O Governo, através das instituições competentes, deve inscrever no Orçamento Geral do Estado verbas com vista a: a) Apoiar ações de informação, sensibilização da comunidade sobre as consequências da excisão; b) Apoiar as atividades de assistência e reinserção social das vítimas da excisão; c) Promover e encorajar campanhas de sensibilização pela Mídias e demais órgãos de informação sobre as consequências nefastas da excisão; d) Promover e encorajar ações de formação e capacitação de líderes de opinião e ONG's junto das Comunidades; e) Promover maior cooperação entre diferentes estruturas defensoras de direitos humanos, líderes religiosos, poder tradicional no combate e denuncia dos casos de excisão. ARTIGO 14.° (Revogação) E revogada toda a legislação que contrarie as normas da presente lei. ARTIGO 15.° (Entrada em vigor) A presente Lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação no Boletim Oficial. Aprovada em 6 de Junho de 2011.- 0 Presidente da Assembleia Nacional Popular, Dr. Raimundo Pereira. Promulgada em 5 de Julho de 2011. Publique-se. o Presidente da Republica, Malam Bacai Sanha. 54 Anexo 2 – Jurisprudência Tribunal Regional de Bafatá: Proc. n.º 63/2011, 25 de Janeiro de 2012 Acórdão Acordam os Juízes que compõem o colectivo em processo comum com a intervenção do tribunal colectivo, o M.P. acusa as suspeitas: 1. Abi T., 2. Bula B., 3. Aua S., 4. Djenabú D., 5. Serifo D., todas devidamente identificadas nos autos (fls.36), Imputando a suspeita Abi T. a prática em co-autoria material e de forma consumada de dois crimes de excisão sobre o menor, p.ep. pela disposição do art.º 5º/1 da Lei n.º 14/2011, por referência ao art.º. 16º/1 do C.P., As suspeitas Bula B. e Aua S., pela prática em co-autoria material e de forma consumada de um crime de excisão sobre o menor, p. e p. pela disposição do art.º. 5º/1 da lei nº 14/2011, de 6 de Julho por referência ao art.º 16.º/1 do C.P.; Djenabú D., em comparticipação e de forma consumada a prática de um crime de excisão sobre o menor, p. e p. pela disposição do art.º 5/1 da Lei nº 14/2011 de 6 de Julho agravada pelo art.º 7º do mesmo diploma; Serifo D. em comparticipação de forma consumada pela prática de um crime de excisão sobre o menor, p. e p. pela disposição do art.º 5º /2 e 3 da Lei nº 14/2011, de 6 de Julho, tendo por base os factos constantes da acusação de fls 34 a 38 que aqui se dão por inteiramente reproduzidos. As suspeitas não contestaram a acusação e nem apresentaram testemunhas. Após o despacho que designou o dia para julgamento não ocorreram nulidades, mostrando-se valida e regular a instância. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com a observância do legal formalismo. Fundamentação Factos provados 1. Numa data não apurada do ano 2011, a suspeita Djenabú D. contactou a suspeita Abi T., propondo que fizesse “uso” as suas netas depois do período de jejum; 2. Abi T. recusou, mas devido a insistência da Djenabú D. acabou por ceder e ficou combinada a realização da cerimónia depois do jejum; 3. A suspeita Abi T. convidou as suspeitas Bula B. e Aua S. para tomarem parte na cerimónia do fanado; 6. A suspeita Serifo D., consentiu entregar a sua filha U. D. para essa cerimónia; 55 4. No dia 25 de Setembro de 2011, por voltas das 07h 30min, as suspeitas Abi T., B Bula B. e Aua S. dirigiram-se a casa da Djenabú D., dividiram as tarefas e procederam a excisão de 4 menores (C. D., M. B., U. D. e D. D.); 5. As suspeitas são primárias e são fanatecas de longa data. Facto não provado ▪ Se as suspeitas tinham conhecimento da proibição da excisão. Convicção do tribunal Funda-se esta, no conjunto da prova produzida em audiência, nomeadamente: a) Nas declarações das suspeitas, que confessaram os factos, b) Nos relatórios médicos, fls. 30 a 33 dos autos. Subsunção dos factos ao Direito Vem imputadas as suspeitas Abi T., Bula B. e Aua S. a prática de crime de excisão de menor. Quanto a esse crime, dispõe o art.º 5º/1 da lei nº 14/ 2011, de 6 de Julho que: “A excisão praticada sobre menor de idade é punida com pena de prisão de 3 a 9 anos”. Ainda nesta lei, é definido que se entende por excisão toda a forma de amputação, incisão ou ablação parcial ou total de órgão genital externo da pessoa do sexo feminino, bem como todas as ofensas corporais praticadas sobre aquele órgão por razões sócio-cultural, religiosa, higiene ou qualquer outra razão invocada. As suspeitas, ao dividirem tarefa, molestaram os corpos das menores através de ablação parcial dos clítoris e bíbios menores das vítimas. E, fizeram isso de forma livre e voluntária. Resultam assim preenchidos os elementos constitutivos do crime de excisão de menor quer ao nível objetivo, quer ao nível volitivo. As suspeitas Djenabú D. e Serifo D. veem imputadas da prática do mesmo crime em comparticipação e de forma consumada, p. e p. pelo art.º 5º/2 e3 da Lei 2º 14/011 de 6 de Julho. Artigo 5/2º nos diz que “os pais, tutor, encarregado de educação ou qualquer pessoa a quem cabe a custódia da criança tem o dever de impedir a prática de excisão”. E, o nº 3 do mesmo artigo diz que: “o não cumprimento do disposto no número anterior é punido com a pena de prisão de 1 a 5 anos”. A ilicitude do comportamento da suspeita Djenabú D. vem agravada pelo art.º 7º do mesmo diploma que nos diz “Quem facilitar, incitar, ou contribuir de alguma forma para a prática de excisão feminina é equiparado, para efeitos do presente diploma, ao autor principal, devendo ser punido nessa qualidade”. É sabido e provado que a suspeita Djenabú D. é avó das menores e tinha por obrigação não permitir que seja feita a excisão e, antes pelo contrário foi ela que convidou as fanatecas. A suspeita Serifo D. é mãe de uma das menores e entregou-a para essa cerimónia de livre vontade. As suspeitas conformaram-se com o resultado das suas acções. 56 E, todas as suspeitas evocaram a ignorância da lei, mas existe um princípio de que a “ ignorância não aproveita o leigo”. A Constituição da República da Guiné Bissau diz no seu art.º 37º/1 que: “A integridade moral e física dos cidadãos e inviolável”. Tratando-se a excisão uma prática que poderá afectar grave a integridade corporal e desenvolvimento sexual o Estado adotou medidas legislativas indispensáveis com vista a sancionar e reprimir as condutas ofensivas dos padrões aceitáveis numa numa sociedade, capazes de podem em causa a integridade física e moral e a dignidade da pessoa humana. Escolha e determinação da pena Na sua escolha e determinação a luz do que dispõe os art.º 65º a 74º do C.P. há que considerar a gravidade do crime cometido e a moldura penal para o mesmo, assim como a personalidade do agente, circunstâncias atenuantes, grau de culpa. No caso em apreço partiremos do princípio de que a prisão é excepção e não regra. A aplicação duma pena não privativa de liberdade seria suficiente para satisfazer as exigências de reprovação e prevenção criminal. As suspeitas são primárias, confessaram o crime e, mostraram sinais de arrependimento, demonstrando posicionamento autocrítica em relação aos factos por que respondem. E, ainda colaboraram com a justiça. A lei em causa entrou em vigor há menos de três semanas da data dos factos. Da indemnização civil Nos termos do art.º 84º do C.P. a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é obrigatório e oficiosamente decretado pelo tribunal. Os pressupostos e cálculo da indemnização regula-se pelas normas de direito civil substantivo. Art.º 483º/1 do C.C. diz que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Assim, atendendo que as suspeitas são de idade avançada, sem meios de subsistência, o tribunal arbitrará uma indemnização simbólica. Estamos perante uma responsabilidade civil extracontratual. Segundo Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, pág. 356 e Almeida Costa, Direito da Obrigações 3ª ed., pág. 367, são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a violação de um direito, ilicitude, vinculo de imputação do facto ao agente; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano. A matéria alegada e provada preenche os aludidos pressupostos. Dispositivo Pelo exposto, o colectivo julga procedente e provada a acusação do M.P. e em consequência: a) Condenar as suspeitas Abi T., Bula B., Aua S., Djenabú D. e Serifo D. a 3 anos de prisão suspensa por igual período nos termos do art.º 57º C.P.; 57 b) Condenar as suspeitas no pagamento duma indemnização no valor de XOF 20.000,00 (vinte mil Francos CFA) cada no prazo de 30 dias; c) Declarar perdida a favor do Estado as facas que servem para excisão. ▪ Custas e impostos devidos no mínimo. ▪ Boletins ao Registo Criminal Registe e Notifique Bafatá, 25 de Janeiro de 2012 - João Gomes Cá 58 REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU TRIBUNAL REGIONAL DE BISSAU – VARA CRIME Tribunal Regional de Bissau – Vara Crime: Proc. n.º 98/2014, de 17 de Dezembro de 2014 ACÓRDÃO I. RELATÓRIO O MP acusou, em processo comum, e requereu o julgamento perante o tribunal coletivo dos suspeitos: • Umaro B. maior de idade, filho de _ e de _, residente no Bairro de _ em Bissau; • Djina B., filha de _ e de _, natural de _, Região de Bafatá, residente no Bairro de _ em Bissau; • Aissatu B. maior de idade, filha de _ e de _, residente no Bairro de _ em Bissau; • Fatumata B. maior de 25 anos de idade filha de _ e de _, residente no Bairro de _ em Bissau; • Cadidjatu B. maior de 24 anos de idade, filha de _ e de _, residente em Bissau _; • Suncar T., de 38 anos de idade, filha de _ e de _, natural de _, Região de Gabu, residente em Bissau no Bairro de _. Pela prática dos factos descritos na peça acusatória de fls. 89 a 91 dos autos, que aqui se dão integralmente produzidos, acusados como co-autores materiais de crime de excisão feminina previsto e punível nos termos do nº 1 do art.º 5º da lei 14/2011. Os suspeitos não ofereceram a contestação e nem rol de testemunhas e quais quer outras provas a produzir. De igual modo, não houve requerimento para constituição de assinantes. Apos o despacho que recebeu a acusação, e por via da qual foi designada data para o julgamento, não sobreveio qualquer nulidade, questões prévias ou incidentais que cumprem conhecer e que abstêm a apreciação do mérito da causa, a mantendo-se a regularidade da instância como de resto atesta a respetiva ata. II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA MATÉRIA DO FACTO PROVADO Produzida a prova e discutida a causa, resultou demonstrada, com relevância para a decisão a proferir, a seguinte factualidade: 1. No passado mês de Setembro do ano em curso, Aissatu B. e Fatumata B. combinaram por iniciativa da suspeita Aissatu B. submeter as crianças a excisão feminina; 2. Para o efeito, suspeita Aissatu B., através da suspeita Cadidjatu B. contactou a suspeita Suncar T., nora de suspeita Djina B., e esta deu o número de telemóvel, da suspeita Djina B. a fanateca; 3. Tudo acertado a suspeita Djina B. de manhã muito cedo, chegou a residência de suspeita Suncar T. para executar o acordo, ou seja, excisar as crianças, filhas das suspeitas Aissatu B. e Fatumata B.; 59 4. Com ajuda das mães Fatumata B., Aissatu B., a fanateca Djina B. excisou as crianças na casa de banho sita no interior da residência da suspeita Suncar T.; 5. A suspeita Suncar T. no ritual da sua reza diária disse que, ouvir Djina B. a dizer que ia excisar as crianças; 6. Depois de excisadas as crianças foram encaminhadas para a residência da suspeita Cadidjatu B., onde permaneceram durante todo o dia que foram excisadas; 7. A suspeita Cadidjatu B. foi quem facilitou e contribuiu para excisão das três crianças; 8. Suncar T. teve conhecimento da preparação da excisão, simplesmente não fez nada para impedir a sua realização; 9. Os suspeitos tinham plena consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei, por isso, para ocultar o facto, tiveram que submeter a excisão as crianças no interior de casa de banho; Mais se provou que: 10. Todos os suspeitos são casados SUC e a eles, não se conhece antecedentes criminais. FACTOS NÃO PROVADOS Inexistem. III. FUNDAMENTAÇÃO DA CONVICÇÃO DO TRIBUNAL Cumpre agora, em obediência ao disposto no artigo 242º do CPP, indicar provas que serviram para fundar a convicção do tribunal. Porém, a regra geral fixada pelo art.º 117.º, é de que, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal e livre de formar a sua convicção. Normalmente o que sucede é que face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras. Assim, tendo presente a matriz da livre apreciação probatória, acima aludido, “a prova é apreciada segundo a livre convicção da entidade que se formará a partir das regras de experiência e dos critérios da lógica”. Esta convicção, parte de um registo mínimo, mas credível, de provas, em detrimento de vastas referências probatórias. Por tudo isso, este princípio da livre apreciação das provas não tem caracter arbitrária, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espirito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e do critério da lógica comum, bem como as provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas. A convicção do Tribunal quanto aos factos provados, efetivamente alicerçou-se na inteligibilidade e análise crítica, conjugada com a globalidade da prova produzida, em sede de audiência de julgamento, e de outras que se encontram nos autos nomeadamente as fotografias das crianças excisadas, e das reportagens fotográficas encontradas juntos dos autos, num CD que foi analisada pormenorizadamente na audiência. 60 A convicção do tribunal alicerçou-se igualmente na confissão integral, livre e verdadeira pelas suspeitas Djina B., Aissatu B., Fatumata B., nos termos do art.º 244º nº3 do CPP. E nas declarações dos suspeitos Suncar T., Umaro B., Cadidjatu B… que de factos todos tinham conhecimento de que as crianças iam ser excisadas, não tomaram nenhuma medida para impedir a sua realização. O tribunal considerou bastante relevante as fotografias das crianças excisadas juntos dos autos a fl. 21. IV. ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL Uma vez fixada a matéria dos factos provados, cumpre agora proceder o seu devido enquadramento jurídico-penal. Encontra-se os suspeitos, acusados de prática do crime de excisão feminina nos termos do art.º 5º de lei nº 14/2011. Estipula o artigo 5º /1 da lei supra referida o seguinte: “A excisão sobre menor” 1. A excisão praticada sobre a menor de idade é punida com pena de prisão de 03 a 09 anos; 2. Os pais, tutor, encarregados de educação, ou qualquer pessoa a quem cabe a custódia da criança têm o dever de impedir a prática da excisão; 3. O não cumprimento do disposto no número anterior é punido com a pena de prisão de 01 a 05 anos; 4. Para o efeito da presente lei tanto o termo da menor de idade como o da criança se referem a pessoa abaixo da maioridade; E quanto que art.º 07 temos: (comparticipação) “Quem facilitar, incitar, incentivar, ou contribuir de alguma forma para a prática de excisão feminina é equiparado, para o efeito do presente diploma o autor principal, devendo ser punido nessa qualidade“. De acordo com os preceitos em análises, facilmente se compreende de que o bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a saúde, a vida e a integridade física. Entretanto, vimos que a excisão feminina é a mutilação dos órgãos genitais femininos de modo a que seja impossível às mulheres posteriormente obter prazer sexual. No acto de mutilação, são utilizados vários objetos cortantes, tais como lâminas (algumas delas em estado degradante), tesouras ou navalhas. Por outro lado, a mutilação genital feminina, termo que descreve esse ato com maior exatidão, e vulgarmente conhecida por excisão feminina. É uma prática realizada em vários países da África e da Asia, que consiste na amputação do clitóris da mulher de modo a que esta não possa sentir prazer durante o ato sexual. Ela pode ser a remoção parcial ou total da genitália externa da mulher. A mutilação pode ser realizada de diversas maneiras, como o corte apenas do clítoris e o corte completo dos lábios vaginais com a costura quase completa da cavidade vaginal, deixando apenas um espaço mínimo para a passagem da urina e do fluxo menstrual. 61 Esta prática não tem nada em comum com a circuncisão masculino. Segundo essa tradição, pais bem- intencionados providenciam a remoção do clítoris das suas filhas pré-adolescentes, e até mesmo lábios vaginais. Há ainda uma outra forma de mutilação genital chamada de infibulação, que consiste na costura dos lábios vaginais ou do clítoris. A circuncisão feminina é um termo que se associa a um determinado número de práticas incidentes sobre os genitais femininos e que tem uma origem de ordem cultural e não de ordem medicinal. A prática da circuncisão feminina é rejeitada pela lei nº 14/ 2011. É considerada uma forma inaceitável e ilegal da modificação do corpo, infligida àqueles que são demasiado novos ou inconscientes para ter uma escolha informada. É também chamada de mutilação genital feminina. A sua prática acarreta sérios riscos de saúde para a mulher, por vezes de forma permanente. A excisão feminina também e considerada como ofensa grave aos direitos humanos, na medida em que ela é um costume sócio-cultural que causa danos físicos e psicólogos irreversíveis, e ainda, é responsável por mortes das meninas. Pode variar de brandamento dolorosa a horripilante, e pode envolver a remoção com instrumentos de corte inapropriados (faca, caco de vidro ou navalha) não esterilizados e raramente com anestesia. Viola o direito de toda jovem de desenvolver-se psicossexualmente de um modo saudável e normal, por isso a mutilação de mulheres, tornou-se uma questão de saúde pública. Algo que não se deve desconsiderar são os custos do tratamento contínuo das complicações físicas resultantes e dos danos psicológicos permanentes. Têm-se promulgado leis para criminalizar esta prática costumeira. Embora muitos códigos penais não mencionem diretamente os termos Circuncisão Feminina ou Mutilação Genital Feminina é perfeitamente enquadrado como uma forma de “abuso grave de direito da Mulher e da criança, e ainda provoca, lesão corporal qualificada”. Várias organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) têm envidado esforços para desencorajar a prática da mutilação genital feminina. A Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Setembro de 1990, considera-a um ato de tortura e, com riscos à saúde muito grave se não vejamos: Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), mais de 125 milhões de mulheres e meninas que vivem atualmente passaram pela mutilação genital em todo mundo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) salienta que o procedimento não traz benefícios à saúde e que pode causar entre outros sangramento severo, problema urinária, cistos, infecções e infertilidade. Complicações durante o parto e risco maior de morte do recém-nascido também são mencionados pela OMS que considera a prática uma violação dos direitos humanos. Portanto, sem proteção nos moldes acima referidos, tornar-se-ia difícil ou mesmo impossível a consecução da finalidade da lei que o legislador guineense pretende ver realizada. Ora, como resulta dos autos e da matéria dada como provada, os suspeitos, Aissatu B., Fatumata B. quando, consentiram para que as suas filhas fossem submetidas a excisão estão sim preenchidos os requisitos do art.º 5º da lei 14/ 2011, assim como a suspeita Djina B. Por outro lado a suspeita Suncar T., Umaro B., e Cadidjatu B., tomaram conhecimento sem os quais impediram a sua realização neste caso foi realizada a requalificação jurídica de modo a conduzir o respetivo comportamento a previsão normativa do artigo 7º do mesmo diploma. V. DA MEDIDA DA PENA 62 Na determinação da medida concreta das penas deve atender-se à culpa e às necessidades de prevenção exigidos pelo artigo 71º do Código Penal. Importa, agora, concretizar a medida da pena aplicar no caso “sub Júdice”. Para tal, estipula o art.º 65º n 1º e o nº 2 do C. Penal que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa, e a pena não privativa da liberdade, o tribunal da preferência a segunda sempre que esta, se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição“. Por outro lado, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e, para essa operação, o Tribunal terá de atender todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo crime, deponham a favor do agente ou contra este. Assim importa assinalar, em primeiro lugar, as circunstâncias agravantes: o grau médio – superior da ilicitude do facto de os suspeitos terem organizados e submeterem a excisão estes menores. Na verdade, as condutas dos suspeitos são censuráveis, como já referimos. Como atenuantes temos, as mencionadas na audiência discussões e julgamento, de serem primários e todos têm a integração familiar. Ora, por um lado, são as necessidades de prevenção geral em crimes destes tipos, que se multiplica, e tem consequências bem graves na sociedade”. Porém, a determinação da pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais será o limite necessário à reintegração dos suspeitos na sociedade. Assim, mais uma vez o limite, aconselhado pelo grau de culpa e da prevenção geral, deve ser temperado pela prevenção especial que, em função da personalidade dos suspeitos, aconselha uma atenuação moderada. Ponderando o grau de ilicitude, traduzida na forma de atuação, Por isso a lei preconiza que, atendendo à personalidade dos agentes, as suas condutas anterior e posterior ao crime, o percurso criminal trilhado pelos mesmos, levam a um prognóstico de ressocialização da seguinte forma: • A suspeita Djina B. 03 (três) anos de prisão, nos termos do nº 1 do art.º 5º da 14/2011; • As suspeitas Aissatu B., Fatumata B., Cadidjatu B. na pena de três anos de prisão, nos termos do art.º 7º da lei supra referida; • Aos suspeitos, Suncar T., Umaro B. na pena de 12 meses de prisão, convertida em multas a razão diária de 500 fcfa, perfazendo assim 180.000 (cento e oitenta mil) fcfa, no termo do nº1 do art.º 114º da CP. Na verdade, a pena privativa da liberdade surge sempre como a última “ratio” do nosso sistema punitivo sem que isso pressuponha, e torna claro nos referidos preceitos, que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer todos os fins das penas. Tal define, claramente, a perspetiva valorativa que a mesma tem dos princípios que constituem a “consciência axiológico-jurídica” da nossa sociedade e que legitima todo o nosso sistema jurídico (não só penal), como sustenta o ilustre Prof. Castanheira Neves. Ora, tal atitude dos suspeitos, não se pode compaginar com uma perspetiva da vida comunitária, tal como a pretendemos, não obstante os constantes atropelos diários aos valores que se têm como inabaláveis. 63 Assim sendo, entendemos que uma pena de prisão efetiva a suspeita Djina B., Aissatu B., Fatumata B., e Cadidjato B., e a pena de prisão de 12 meses convertida em multa a razão diária de 500 fcfa, poderão ser suscetível de obrigar os mesmos, refletirem, e que reapreciem os valores essências da vida societária e que reformulem as suas prioridades valorativas. VI. DA INDEMNIZAÇÃO CIVIL O nº 1 do art.º 70º CPP determina que: “o pedido de indemnização por perdas e danos emergentes do crime é formulado no processo-crime Outrossim, o tribunal independentemente da formulação do pedido arbitrá-la-á oficiosamente em obediência ao preceituado no art.º 84º do CP. A competência deste tribunal para conhecer da indemnização conexa com accão penal decorre apenas da responsabilidade civil extra contratual do agente que pratica facto ilícito e culposo e, não de qualquer responsabilidade civil. Atento ao preceituado no art.º 483º do CC “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” Face aos factos, tidos por provados e tudo a que deixou já esplanadas quanto a sua fundamentação jurídica nenhuma duvida resta que os suspeitos com condutas acima descriminada violaram um direito fundamental, que é o direito a vida, saúde a integridade física. Da análise do preceito supra referida, decorre que o dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos depende de vários pressupostos: • A ilicitude deste facto; • Que se verifique um nexo de imputação de facto ao lesante; • Que a violação do direito subjectivo ou da lei derive de um dano; • Por último que haja um anexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder concluir-se que este resulta daquele. Segundo o art.º 564º do CC, o cálculo de indemnizar compreende não só o prejuízo causado com o benefício que o lesado, deixou de obter em consequência da lesão mas o cálculo da indemnização a este título é uma tarefa difícil não mesmo impossível, neste sentido estabelece o art.º 566º do CC, que: “A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa, sem prejuízo do preceituado noutras disposições, o que pode ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos, e se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. Atendendo a estes factos e ponderados os demais elementos, afigurasse adequado condenar a suspeita Djina B., Suncar T., e Cadidjatu B. a indemnizar as menores o valor de 500.000 fcfa (quinhentos mil) a cada criança, o que significa cada suspeita deve indemnizar 500.000 fcfa a cada criança no prazo máximo de 60 dias. (valor total de indemnização é de 1500.000 fcfa) um milhão e quinhentos mil fcfa. 64 Em relação a situações de menores Vara Crime do Tribunal Regional de Bissau é materialmente incompetente para apreciar e decidir. VII. DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes que compõem o tribunal coletivo em: a) Julgar provado e procedente a acusação do PM e consequentemente condenar a suspeita Djina B. a pena de 03 (três) anos de prisão efectiva; b) As suspeitas Aissatú B., Fatumata B., e Cadidjatu B. na pena de 03 (três) anos de prisão efectiva; c) A suspeita Suncar T., Umaro B. na pena de 12 (doze) meses de prisão convertida em multa a razão diária de 500 (quinhentos) fcfa, perfazendo assim 180.000 (cento e oitenta mil fcfa) no prazo máximo de 30 dias nos termos do art.º 45º CP; d) Condenar as suspeitas Djina B., Suncar T., e Cadidjatu B. a indemnização as menores no valor de 500.000 fcfa cada uma, no prazo máximo de 60 dias, no valor total de um milhão e quinhentos fcfa (1500.000 fcfa); e) Remeter o Boletim aos Serviços de Registo Criminal depois de trânsito da sentença condenatória; f) Custas no máximo a cargo dos suspeitos; O coletivo: (assinaturas) Bissau, 17 de Dezembro de 2014 65 TRIBUNAL REGIONAL DE BAFATÁ Tribunal Regional de Bafatá: Proc. n.º 26/2015, de 21 de Maio de 2015 Acórdão Acordam os Juízes que compõe o colectivo em processo comum com a intervenção do tribunal colectivo, no qual o MP acusa os suspeitos Usumane S., Assana B., Egué E., Penda C. e Fatumata S., todos com sinais nos autos fls (8,9,10,11,12,13 e 14); Imputando-lhes a prática de factos susceptíveis de integrarem em autoria moral, sob a forma consumada de um crime de ofensas corporais graves, previstos e punível nos termos do art.º 115º em referência do art.º 114º do CP ex vi da lei 14/2011 de 6 de Julho de 2011, nos seus art.º 2º,3º,4º,5º,6º,7º,8º e 9º. Os suspeitos não contestaram e nem apresentaram rol de testemunhas. Após o despacho que designou data de julgamento, não ocorreram nulidades mostrando-se válida a acusação e regular a instância. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todos os formalismos legais. Fundamentação O tribunal é competente em razão da matéria, da nacionalidade, do território e da hierarquia. O processo tem a forma adequada e não enferma de nulidade total. As partes têm personalidade e capacidade judiciária. As partes são legitimas acham-se bem representadas. Não existem nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpre conhecer, para apreciação e conhecimento do mérito de causa. Discutida a causa, resultaram-se provados seguintes factos: 1- Em Novembro de 2014, numa data não apurada, foi realizado na povoação de Gã-Mamudo, no sector de Ganadu, uma cerimónia de Fanado de mulheres; 2- Nessa cerimónia envolveram-se crianças com menos de (1) um ano de idade; 3- A excisão desses menores teve autorização e consentimento dos pais e encarregados de educação; 4- Os pais não impediram que as crianças fossem excisadas. 5- Que os filhos de Assana B. foram excisados há seis anos atrás, antes da existência da lei da excisão. Factos não provados - Não ficou provado que os pais e encarregados de educação dos menores se ausentaram no momento da excisão dos seus filhos. - Não ficou provado que as filhas de Assana B. foram excisadas nesta data. Motivação Importa salientar que entre nós, o julgador é livre na apreciação de prova, conquanto vinculado esteja aos princípios em que consubstancia o direito próprio. Temperando-se o sistema de livre apreciação de provas com a possibilidade de controlo imposta pela obrigatoriedade de uma motivação racional da convicção formada, evitar-se-ão as situações em que se impute ao julgador avaliação caprichosa ou arbitrária das provas e, sobretudo, justificar-se-á a confiança 66 no jugador ao ser lhe conferida a liberdade de apreciação da prova garantindo-se simultaneamente credibilidade na justiça. A luz das considerações supra expostas, temos que “in casu” a convicção do tribunal formou-se a partir das declarações dos suspeitos e dos exames directos efetuados pelos técnicos de saúde, fls (15 a 22) dos autos. Em conclusão, a convicção sobre estes factos foi determinada pela consideração de toda prova produzida, interpretada de acordo com os juízos de experiência. Enquadramento Jurídico-penal Os suspeitos vêm imputados a prática de crime de ofensas corporais graves nos termos do art.º 115º com referência ao art.º 114 do CP, ex vi da Lei 14/2011 nos seus artigos 2º. 3º,4º, 5º 6º,7º, 8º, 9º in totum. Reza o art.º 5 º da lei 14/2011 “A excisão praticada sobre menor de idade é punida com pena de prisão de 3 a 9 anos. Vem dizer o art.º 4º, nº 2 do mesmo diploma, que “os pais, o tutor, encarregados de educação ou qualquer outra pessoa a quem cabe a custódia da criança, tem dever de impedir a prática de excisão. O nº 3 vem dizer que “o não cumprimenta do disposto no número anterior é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. O nº 4º do mesmo preceito vem indicar que o termo menor de idade e criança referem ambos, a pessoa que não atinge a maioridade. Os suspeitos, são todas mães de crianças e entregaram-nas livremente a fanateca, isto é conformando-se com os resultados das suas acções, alegando ignorância da lei, que não aproveitando a ninguém por existir um princípio universal neste sentido. Sendo excisão feminina uma prática, com inúmeras consequências a saúde da mulher, o Estado, como forma de estancar esta prática, procedeu a criação de normas legislativas para punir essa prática. É o caso da lei 14/2011 de 6 de julho, verificando-se assim estarem presentes os elementos constitutivos desse tipo de ilícito. Decisão Com tudo exposto, o colectivo decide: a) Condenar os suspeitos Ussumane S., Penda C., Egué E. e Fatumata S. a três anos de prisão efectiva; b) Absolver o suspeito Assana B., por falta de provas. c) Custas para os réus. Notifique e registe. Bafatá, 21 de Maio de 2015 O colectivo Dr. João Flaqueia Nabunha (relator) Dr. Nelson M. do S. Carvalho Sr. Farim Sanhá 67 TRIBUNAL REGIONAL DE GABÚ Tribunal Regional de Gabú: Proc. n.º 071/2014, de 12 de Março de 2015 Acordão I - Relatório O Ministério Público acusou em processo comum, requerendo o julgamento pelo tribunal colectivo, os suspeitos: Braima C., de 41 anos de idade, emigrante, casado S.U.C, filho de Mamadu C. e de Bulo B., natural de Djambul, sector de Pitche, residente no bairro de Embalocunda; Tida D., de maior idade, Fanateca de profissão, casada S.U.C, filha de Gundo D. e de Salé G., natural de Carantaba, sector de Pitche, residente em Djambur; Bulu B., de 82 anos de idade, doméstica, filha de Talata B. e de Auau E., natural de Dor, sector de Pitche, região de Gabú, residente em Djambur. Imputando aos suspeitos, Braima C. e Bulu B. da prática, em comparticipação, do crime de Mutilação genital feminina, previstos e puníveis nos termos dos artigos 5° n° 1,2 e 7° da lei 14/2011 de 6 de Julho. E, em relação a suspeita Tida D. lhe é imputada da prática em autoria material, do crime de ofensas corporais graves, previsto e punido nos termos do art. 115° no 1, alíneas a) e b) do Código Penal, por força dos art° 4°, 5° n°1 e 6° da lei 14/2011 de 6 de Julho, que visa prevenir, combater, reprimir a excisão feminina. O suspeito Braima C. se em encontrava sob medida de coacção, a prisão preventiva (vide as fls.55). Enquanto, as suspeitas Bulu B. e Tida se encontravam em liberdade, aguardando o julgamento (vide as fls.55). Os suspeitos não apresentaram contestação (vide as fls.60). Fora marcada a audiência e discussão de julgamento dos presentes autos e por impossibilidade da localização dos referidos suspeitos foi ordenada a emissão de um edital conforme consta de fls.78 e 79 dos autos. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito. Destrate, o colectivo realizou o julgamento à revelia, em conformidade ao consignado no art.° 235° n° 1 e 2, do C.P.P E, relativamente, aos suspeitos, foi observada o disposto no art. ° 233° do C.P.P. II° - Matéria Fáctica FACTOS PROVADOS Do julgamento realizado conforme atesta os autos e as respectivas actas, se resultaram provados que: 1-Em data não apurada, mas do mês do Janeiro de 2012, os suspeitos Braima C., Bulu B. e Tida D. combinaram excisar as menores Dienabu C., Bulu C., Cadi C. e Binta C.; 2- O suspeito Braima autorizou que as menores fossem excisadas na sua própria casa como tinha combinado com a mãe Bulu B.; 68 3- A suspeita Bulu B. mandou chamar a suspeita Tida D. que posteriormente submeteu sozinha todas aquelas a excisão de forma clitoriectomia; 4- Na data do crime os suspeitos eram maiores idades e não padeciam de quaisquer anomalias psíquicas; 5- Os suspeitos agiram de forma livre e com propósito de molestarem o corpo e a saúde das menores, resultado este que representou. 2.2. FACTOS NÃO PROVADOS Inexistem factos não provados. III° Motivação Fáctica O tribunal colectivo formou a sua convicção a partir das factualidades consideradas como provadas tal como consta do libelo acusatório de fls. 54 e 55. Importar considerar que, em sede da matéria de fundamentação fáctica, face aos suspeitos revéis, pese embora, resulta da lei, para o efeito de formar a convicção do tribunal, não valem quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência conforme resulta do art.° 242° do C.P.P, mas atendendo o que dispõe o art.°. 235° N°s 1 e 2, do C.P.P, o colectivo em observância do referido preceito, deu-se por provadas os factos constantes de fls.54 e 55, pois, todas as diligências foram levadas ao cabo por este tribunal (vide as fls.68 e 76), mas os referidos suspeitos se encontram em parte incerta, colocando o tribunal colectivo numa impossibilidade de lhes encontrarem, e como consequência lógica seria o julgamento a revelia dos mesmos, com a observância do disposto no art°.42 n° 1, da C.R.G.B conjugado com o art.°. 75° n°2, do C.P.P, em matérias das garantias de defesa. Assim, dúvidas não resta ao colectivo, concluir que, os suspeitos Braima C., Bulu B. e Tida D. cometeram o crime contra a lei que visa prevenir, combater e reprimir a excisão feminina cuja regulamentação pela lei 14/2011 de 6 de Julho. IV° Fundamentação Jurídico- Penal Atento aos factos que resultaram provadas e que revelam para a decisão da causa, há que fazer o seu enquadramento jurídico-penal. Os suspeitos Braima C. e Bulu B. foram indiciariamente imputados da prática de factos susceptíveis de integrarem os tipos legais, previstos e puníveis nos termos dos artigos 5° n° 1,2 e 7° da Lei n°14/2011 de 6 de Julho. Quanto a suspeita Tida D. indiciada da prática do tipo legal, previsto e punível, nos termos do art.° 115° n°1, alíneas a) e b) do C.P conjugados com os artigos 4°, 5° n° 1, 6 n°1, da Lei 14/2011 de 6 de Julho Assim, vejamos a previsão e estatuição da lei 14/2011 de 6 de Julho: Do art.° 4° resulta que" Quem, por qualquer motivo, efectuar a excisão feminina numa das suas variadas formas (clitoriectomia, excisão, incisão, infibulação) com ou sem consentimento da vítima, é punido com pena de prisão de 2 a 6 anos". Do art.5° n°1, consta que “A excisão praticada sobre menor de idade é punida de prisão de 3 a 9 anos" N°2 "Os pais, tutor, encarregado de educação ou qualquer pessoa a quem cabe custódia da criança tem o dever de impedir da excisão". Do art.° 6° n°1,"Quem, com intenção apenas de praticar excisão sobre outrem lhe causar os efeitos previstos nas alíneas c, d e do art.°115° do C.P, a pena será de 2 a 8 anos de prisão" 69 Do art.° 7° da lei 14/2011, prevê que" Quem facilitar, incitar incentivar ou contribuir de alguma forma para a prática de excisão feminina é equiparado, para efeitos do presente diploma, ao autor principal, devendo ser punido nessa qualidade". Nestes tipos legais, estamos no âmbito da incriminação penal cuja natureza visa prevenir, combater, e reprimir a excisão feminina que se assentam contra o corpo e a saúde do género feminino. E, no caso em apreço, estão presentes a ofensa do corpo das menores, da qual se alicerça o bem jurídico protegido pela lei 14/2011 de 6 de Julho. Assim, atento os preceitos acima referenciadas, fica preenchido com a verificação dos elementos objectivos dos tipos legais acima, de um lado. Por outro lado, em termos subjectivos, o tipo exige o dolo, neste particular está patente o dolo directo (art.°22°n°1, do C.P.). Dai que, dúvidas não resta ao colectivo, quanto ao facto praticado pelos suspeitos: 1- Braima C. integra o crime previsto e punido pela lei n°14/2011, nos termos do art.° 5° n°1, por força do art.° 7° cuja moldura penal abstracta que vai com pena de prisão de três (3) a nove (9) anos; 2- Bulu B. integra também na prática do crime previsto e punido pela lei n° 14/2011, nos termos dos art.° 5° n°1, por força do art.° 7° do mesmo diploma cuja moldura penal abstracta que vai três (3) a nove (9) anos; 3- Tida D. que também integra na prática do crime da lei acima referenciada cuja moldura penal abstracta que vai de dois (2) a oito (8) anos de prisão, art.°6° n°1. V° Escolha E Determinação Da Pena Chegado aos factos relevantes ao enquadramento jurídico – penal do caso in sub judice, importa agora, fazer a respectiva subsunção dos mesmos factos a conduta dos suspeitos, a fim de se aferir quanto a possibilidade de atribuição de responsabilidade penal face aos suspeitos destes autos. Para o efeito, há que tomar em consideração as ideias base na determinação da pena concreta, das finalidades em que se residem as penas, primeiramente, na tutela do bem jurídico, na protecção do corpo e a saúde das menores, no abandono desta prática nefasta, violadora das mais elementares direitos fundamentais das meninas na comunidade, sua excisão e a de que a pena a ser aplicadas aos suspeitos não podem, em caso algum, ultrapassar as medidas das culpas. Assim sendo, em primeiro lugar, a medida da pena há-de ser aferida pela necessidade de tutela do bem jurídico violado, de forma a encontrarmos o ponto de referência, o limite mínimo abaixo do qual já não será comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a tutela de bem jurídico em causa, a ofensa ao corpo e a saúde das menores, respondendo as expectativas da comunidade na reposição contra fáctica da norma jurídica violada. Este ponto será o limite mínimo da moldura penal abstracta. Por outro lado, a culpa do suspeitos fornece-nos-á o limite absolutamente inultrapassável na medida da pena, mesmo tomando em conta a condições de carácter preventivo. Finalmente, considerando o ponto fundamental das necessidades de tutela do bem jurídico em causa e o limite inultrapassável fixado pela culpa dos suspeitos, dai que, há que encontrar a pena que melhor responde as necessidades da prevenção geral e especial. O que significa que, a medida da pena deve ser determinada, tendo em considerações a conduta do agente e das exigências de prevenção geral e especial, de acordo com os critérios fixados nos termos dos artigos 65°. 70 Considerando ainda que a culpa dos suspeitos em face das circunstâncias apuradas são de grau relativamente acentuada, de um lado, e por outro lado, a razão da prevenção geral é acentuada no elevado grau risco que esta prática nefasta cria para a corpo e saúde das meninas nas suas fases do desenvolvimento físico, psicológico assim como da sua reprodução em termos biológicos, sendo certo que a comunidade, mormente das fanatecas desta região que, ainda não se interiorizaram nas suas mentes, tendo em consideração as inúmeras campanhas de informação e sensibilização contra a prática de mutilação genital feminina, que não só constitui ou cria riscos sérios no desenvolvimento físico, psicológico, na procriação como também pode ocasionar a morte das meninas, de um lado. Por outro, tendo em consideração os factos cometidos pelos suspeitos, extraindo-se a gravidade do ilícito perpetrado, verifica-se que o crime de excisão feminina cometido, assenta na área de criminalidade contra a ofensa ao corpo e a saúde das meninas. Em face ao exposto, tendo em consideração a tutela do bem jurídico em causa, o colectivo considera que deve aplicar aos suspeitos: 1° Braima C., pela comparticipação na prática de crime de excisão feminina a pena de prisão efectiva de cinco (5) anos; 2° Bulu B., pela comparticipação na prática de crime de excisão feminina, a pena de prisão efectiva quatro (4) anos. 3o Em relação a suspeita Tida D., Fanateca, autora material pela prática do crime em apreço, a pena de prisão de seis (6) anos e cinco (5) meses. VI° Da Indeminização Civil Importa considerar que, dos autos nada ilustra da constituição da assistente. Assim sendo, impõe o art.° 70°, do C.P.P: N°1" O pedido de indemnização por perdas e danos emergentes da prática de um crime é formulada no processo-crime". N°2" Se as pessoas com legitimidade não formularem o pedido de indemnização, o tribunal, oficiosamente, arbitrá-la-á”. E, do art.° 483°, do C.C. resulta que: N°1" Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". N°2" Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei". Da análise deste preceito decorre que o dever de reparação adveniente da responsabilidade civil por factos ilícitos, depende da verificação de seguintes pressupostos: --- A ilicitude desse facto; --- Que se verifique um nexo de imputação do facto ao lesante; ---- Que da violação do direito subjectivo ou da lei derive um dano; Por fim, que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder concluir -se que este resulta daquele. 71 Em face ao exposto e por força do art.° 562° conjugado com os artigos 496° n°1 e 566° n°1 e 3 todos do C.C, o colectivo julga adequado fixar aos suspeitos abaixo, o pagamento de uma indemnização a favor das menores excisadas, Djenabu C., Bulu C., Cadi C. e Binta C. num montante total de Quatro milhões de francos cfa (Xof 4.000.000), dentro do prazo de noventa (90) dias, devendo: 1- Braima C. a pagar em dinheiro o montante de Dois milhões de franco cfa (Xof 2.000.000); 2- Bulu B., o montante de Quinhentos mil francos cfa (xof 500.000) dentro de igual prazo; 3- Tida D., o montante de Um milhão e quinhentos mil francos cfa (Xof 1.500.000) dentro de igual. VIIo - Deliberação Pelo exposto, tudo visto e ponderado, o colectivo delibera, o seguinte: a) Julgar provada e procedente a acção penal contra os suspeitos Braima C., Bulu B. e Tida D., previstos e punidos pelo tipo legal a que vem acusados do libelo de fls. 54 e 55 dos presentes autos; b) Condenar o suspeito Braima C. na pena de Cinco (5) anos de prisão efectiva; c) Condenar a suspeita Bulu B. na pena de Quatro (4) anos de prisão efectiva. d)Condenar ainda a suspeita Tida D. na pena de Seis (6) anos e Cinco (5) meses de prisão efectiva. e) Vai ainda condenando, aos suspeitos Braima C. no pagamento de uma indemnização no valor de Dois milhões de francos cfa (xof 2.000.000), a Bulu B. no valor de Quinhentos mil francos cfa (xof 500.000) e Tida D. no valor de Um milhão e quinhentos mil francos cfa (xof 1.500.000) perfazendo o montante total de Quatro Milhões de Francos cfa (4.000.000) a favores das menores Djenabu C., Bulu C., Cadi C. e Binta C., a pagarem dentro do prazo de Noventa (90) dias. j) Custas no máximo ao cargo dos suspeitos Braima C., Bulu B. e Tida D.. Fixar em Vinte e cinco mil francos cfa (Xof 25.000), o honorário devido ao ilustre defensor oficioso. h) Remeter o boletim ao registo criminal. Ordenar a emissão de um competente mandado de captura contra os suspeitos revéis, Braima C., Bulu B. e Tida D.. Notifique e Registe-se Gabu, 12.03.2015 O colectivo Dr. Abduramane Fati F (Relator) Dr. Bacar Sane Dr. António lé 72 Lista de Imagens e Tabelas Imagens Imagem 1 – Percentagem de raparigas e mulheres entre os 15 e os 49 anos que sofreram MGF, por país no continente africano. Fonte: (UNICEF 2013a) Imagem 2 – Prevalência de MGF no mundo. Fonte: (The European Post, 2018) (Com base no mapa Belga GAMS, dados da UNICEF, 2013) Imagem 3 – Números de MGF /RU (1 ano. Fonte: (Clinical Audit and Registries Management Service 2018) Imagem 4 - Números de MGF/EUA. Fonte: CDC (2013) Imagem 5 – Prevalência da MGF nas várias regiões da Guiné-Bissau. Fonte: (Bogado 2018) Imagem 6 – Gráfico sobre o conhecimento da Lei. Fonte: Gráfico 13 (INEP 2017) Imagem 7 – Representação das comunidades envolvidas no fanado. Fonte: (INEP 2017) (com adaptações) Imagem 8 – Resumo dos dados principais sobre a MGF na Guiné-Bissau Imagem 9 – Resumo do conflito de direitos, de acordo com o Preâmbulo da Lei da Excisão na Guiné- Bissau Imagem 10 – Resumo do conteúdo da lei e respetivas consequências penais para possíveis intervenientes em casos de MGF Imagem 11 – Resumo do conteúdo da lei e respetivas consequências penais para técnicos de saúde em casos de MGF Tabelas Tabela 1 - Justificações para não reagir perante a prática de MGF. Fonte: (INEP 2017) Tabela 2 - Formas através das quais as pessoas tiveram conhecimento sobre a lei MGF. Fonte: (INEP 2017) Tabela 3- Significado do fanado. Fonte: (INEP 2017) Tabela 4 - Resumo das consequências para a saúde das mulheres. Fonte: (Bogado 2018) referindo as fontes da (WHO 2016), (WHO 2017) e (Kimani, Muteshi, and Njue 2016) Tabela 5 - Medidas de prevenção e controlo da MGF. Fonte: (INEP 2017) 73 Bibliografia 28 Too Many. 2018. “Guinea Bissau: THE LAW AND FGM,” no. August. https://www.28toomany.org/static/media/uploads/Law Reports/guinea_bissau_law_report_v1_(august_2018).pdf. 28toomany. 2015. “FGM in Senegal,” no. June. African Development Bank Group. 2015. “Country Gender Profile: Guinea- Bissau,” no. October: 1–48. Alexy, Robert. 1997. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. Bagnol, Brigitte, and Esmeralda Mariano. 2012. Gender, Sexuality and Vaginal Practices. DAA, FLCS, UEM. Baldé, Fatumata Djau. n.d. “Master’s Thesis – Draft Provided by the Author.” ———. 2018. “Mutilação Genital Feminina,Uma Questão de Direitos Humanos Das Mulheres Na Guiné- Bissau.” In Corte/Mutilação Genital Feminina: Respostas Institucionais Integradas, edited by Clara Carvalho, Ricardo Falcão, and Marta Patrício, 97–106. Centro de Estudos Internacionais. 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