70081 DÍVIDA PÚBLICA A Experiência Brasileira DÍVIDA PÚBLICA: a experiência brasileira 1 2 Dívida Pública: a experiência brasileira Anderson Caputo Silva Lena Oliveira de Carvalho Otavio Ladeira de Medeiros (Organizadores) DÍVIDA PÚBLICA: a experiência brasileira Brasília, 2009 3 Ministro de Estado da Fazenda Guido Mantega Secretário-Executivo Nelson Machado Secretário do Tesouro Nacional Arno Hugo Augustin Filho Secretários-Adjuntos Cleber Ubiratan de Oliveira Eduardo Coutinho Guerra Líscio Fábio de Brasil Camargo Marcus Pereira Aucélio Paulo Fontoura Valle Organizadores Anderson Caputo Silva (Banco Mundial) Lena Oliveira de Carvalho (Tesouro Nacional) Otavio Ladeira de Medeiros (Tesouro Nacional) Coordenação Editorial: Banco Mundial e Tesouro Nacional Revisão de Texto: Yana Palankof, Rejane de Meneses, Tereza Vitale Diagramação e Impressão: Estação Gráfica Ltda. Tiragem: 2.000 exemplares Dívida Pública : a experiência brasileira / Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). – Brasília : Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009. 502 p. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-87841-34-6 1. Dívida pública – Brasil. 2. Dívida pública – Brasil – Planejamento estratégico. 3. Títulos públicos – Brasil. 4. Mercado financeiro – Brasil. I. Silva, Anderson Caputo. II. Carvalho, Lena Oliveira de. III. Medeiros, Otavio Ladeira de. IV. Brasil. Secretaria do Tesouro Nacional. V. Banco Mundial. Sustentabilidade. Conceitos e Estatísticas. Planejamento Estratégico Gerenciamento de Risco. Orçamento e Auditoria. Mercado Primário e Secundário. Tesouro Direto. Base de Investidores. I. Banco Mundial. II. Tesouro Nacional. III. Organizadores. Título. CDD 336.340981 CDU 336.3(81) Copyright © Tesouro Nacional, 2009 Todos os direitos reservados à Secretaria do Tesouro Nacional – Brasília-DF. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida sem prévia autorização por escrito da instituição. Para permissão de fotocópia ou reimpressão de qualquer parte deste livro, envie, por favor, uma solicitação para: Secretaria do Tesouro Nacional Coordenação-geral de Desenvolvimento Institucional (Codin) Esplanada dos Ministérios, Ministério da Fazenda (MF) Bloco P, ed. anexo do MF, ala A, Térreo CEP: 70.048-900 – Brasília, DF – Brasil Telefone: (55) 61 3412-3973 – Fax: (55) 61 3412-1623 e-mail: geifo.codin.df.stn@fazenda.gov.br Este livro foi elaborado por vários autores, dentre os quais servidores do Tesouro Nacional e do Banco Mundial. As opiniões, interpretações e conclusões expressas neste livro são exclusivamente dos autores e não refletem necessariamente as opiniões dessas instituições. O Tesouro Nacional e o Banco Mundial se isentam da responsabilidade sobre a exatidão dos dados incluídos no trabalho. 4 Dívida Pública: a experiência brasileira SUMÁRIO Carta de apresentação da Secretaria do Tesouro Nacional...................................................................... 07 Carta de apresentação do Banco Mundial.................................................................................................. 09 Agradecimentos......................................................................................................................................... 11 Prefácio .................................................................................................................................................. 13 Introdução ...........................................................................................................................................17 Parte 1 – ENTENDENDO A DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA Capítulo 1 Origem e história da dívida pública no Brasil até 1963............................................... 33 Anderson Caputo Silva Capítulo 2 História da dívida pública no Brasil: de 1964 até os dias atuais............................................ 57 Guilherme Binato Villela Pedras Capítulo 3 Sustentabilidade da dívida pública........................................................................ 81 Carlos Eugênio Ellery Lustosa da Costa Capítulo 4 Conceitos e estatísticas da dívida pública........................................................................ 101 Aline Dieguez B. de Meneses Silva e Otavio Ladeira de Medeiros Parte 2 – O GERENCIAMENTO DA DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA Capítulo 1 Estrutura institucional e eventos recentes na administração da Dívida Pública Federal.......................................................................................................131 Karla de Lima Rocha Capítulo 2 Planejamento estratégico da Dívida Pública Federal ..............................................149 Luiz Fernando Alves e Anderson Caputo Silva Capítulo 3 Gerenciamento de riscos da Dívida Pública Federal ...............................................173 Anderson Caputo Silva, Rodrigo Cabral e William Baghdassarian Capítulo 4 O Orçamento e a Dívida Pública Federal ............................................................... 219 Antônio de Pádua Ferreira Passos e Priscila de Souza Cavalcante Castro Capítulo 5 Marcos regulatórios e auditoria governamental da dívida pública ................................ 243 Laércio M. Vieira 5 Parte 3 – O MERCADO DE DÍVIDA PÚBLICA NO BRASIL Evolução recente do mercado de títulos da Dívida Pública Federal. ...................................... 281 Capítulo 1 Anderson Caputo Silva, Fernando Eurico de Paiva Garrido e Lena Oliveira de Carvalho Títulos públicos federais e suas formas de precificação .................................................. 307 Capítulo 2 Ronnie Gonzaga Tavares e Márcia Fernanda Tapajós Tavares Organização do mercado financeiro no Brasil ..................................................................339 Capítulo 3 Helena Mulim Venceslau e Guilherme Binato Villela Pedras Mercado primário da Dívida Pública Federal ..................................................................359 Capítulo 4 Lena Oliveira de Carvalho e José Franco Medeiros de Morais A base de investidores da Dívida Pública Federal no Brasil ...............................................383 Capítulo 5 Jeferson Luis Bittencourt Mercado secundário da Dívida Pública Federal ............................................................... 415 Capítulo 6 Fabiano Maia Pereira, Guilherme Binato Villela Pedras e José Antônio Gragnani Capítulo 7 Venda de títulos públicos pela internet: Programa Tesouro Direto.................................. 443 André Proite Anexo estatístico ...................................................................................................................................467 Índice remissivo ....................................................................................................................................485 Siglas .................................................................................................................................................491 Sobre os autores ................................................................................................................................. 499 6 Dívida Pública: a experiência brasileira Carta de apresentação da Secretaria do Tesouro Nacional É com satisfação que apresentamos esta obra, fruto de uma gratificante parceria entre a Secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Mundial. O livro, como poderá ser observado já em suas primeiras linhas, visa a proporcionar aos leitores uma melhor percepção quanto à experiência brasileira com a gestão de sua dívida pública. Nesse sentido, o trabalho não poderia deixar de destacar o papel que o bom gerenciamento da dívida tem tido na redução dos riscos e dos custos do passivo governamental, além de destacar a história da evolução institucional do Tesouro Nacional e do mercado de capitais brasileiro, tão importantes para que alcançássemos os resultados observados nos dias de hoje. Com a transparência requerida a um país comprometido com a adoção de boas práticas de gestão pública, como é o caso do Brasil, o Tesouro Nacional tem procurado, ao longo dos últimos anos, administrar a Dívida Pública Federal (DPF) a fim de minimizar seu custo de financiamento ao longo do tempo, sem perder o foco na manutenção de níveis prudentes de risco. Cabe destacar que esses objetivos somente são atingíveis com a manutenção permanente de uma política fiscal prudente, que elimina qualquer incerteza quanto à sustentabilidade da dívida ao longo do tempo. A evolução na gestão da dívida pública brasileira nos últimos dez anos é evidente para qualquer pes- soa que a estude. Não foi por acaso que, no início de 2008, as principais agências de classificação de risco concederam o grau de investimento para o país. Destaque-se também que, a despeito da gravidade da pior crise econômica mundial desde 1929, a qual temos vivenciado desde 2008, a credibilidade do Brasil perante os investidores domésticos e internacionais permanece em alta. Certamente, as vitórias alcançadas pelo país no gerenciamento eficiente de sua dívida pública contribuíram para que fosse atingida a estabilidade ma- croeconômica, o que nos permite vislumbrar um futuro melhor para todos os brasileiros. Os frutos colhidos na administração da dívida pública se devem, e muito, ao crescente esforço do corpo técnico da Secretaria do Tesouro Nacional, do qual fazemos parte hoje. Certamente, o alto grau de capacitação e comprometimento com o trabalho dos servidores desta Secretaria foram fundamentais para o Brasil ser reconhecido, em conjunto com um grupo de países selecionados, como referência internacional no gerenciamento de sua dívida pública. Acreditamos que o livro ajudará investidores, analistas financeiros, agências de classificação de risco, pes- quisadores, jornalistas e, principalmente, o cidadão e a cidadã de nosso país a compreenderem um pouco mais a dívida pública brasileira, de seus primórdios ao atual estado da arte. Do mesmo modo, esperamos que outros países possam encontrar na experiência brasileira elementos enriquecedores para auxiliar seus debates internos e que este livro agregue idéias interessantes às discussões entre os diversos gestores de dívida pública. É com experiências inovadoras como esta que a Secretaria do Tesouro Nacional colabora para o fortalecimento das instituições do Brasil e o aperfeiçoamento da gestão pública deste país. Contamos com isso ao construir esta obra, que traz a colaboração generosa de um amplo grupo de dedicados servidores, ex-funcionários e outros colaboradores, responsáveis pela redação de seus vários capítulos. Sem dúvida, trata- se de um material diversificado, profundo e rico que compreende o histórico da dívida desde o século XVI, seus conceitos, avanços institucionais e gerenciamento, além do desenvolvimento do mercado de capitais e do Programa Tesouro Direto. Tudo isso confere um caráter único e pioneiro a esta publicação, o que nos faz considerá-la uma significativa contribuição para a sociedade brasileira. Arno Hugo Augustin Paulo Fontoura Valle Secretário do Tesouro Nacional Secretário-Adjunto do Tesouro Nacional 7 8 Dívida Pública: a experiência brasileira Carta de apresentação do Banco Mundial O Banco Mundial muito se orgulha do lançamento desta obra em conjunto com a Secretaria do Tesouro Nacional. Trata-se de mais um exemplo da ampla cooperação entre o Banco Mundial e o governo brasileiro e, neste caso, em especial, com a Secretaria do Tesouro Nacional. Dívida pública, sua gestão e desenvolvimento do mercado de títulos governamentais são temas de destaque na agenda de trabalho do Banco Mundial, principalmente desde o final da década de 1990. Com a crise da Ásia e as turbulências que afetaram países emergentes, tornou-se ainda mais clara a relevância de uma boa gestão da dívida pública para apoiar a execução de políticas públicas eficientes e resguardar a qualidade do crédito de um país. Do mesmo modo, houve crescente atenção à importância do desenvolvimento de mercados de títulos públicos domésticos como forma de reduzir a vulnerabilidade da economia a choques, criar referência para emissões do setor privado e aumentar a estabilidade do sistema financeiro. Esses fatores são ingredientes essenciais ao crescimento sustentável de um país, ao estímulo do setor produtivo e ao combate à pobreza. Diante da relevância desses temas, o Banco Mundial vem exercendo liderança na formulação de princí- pios conceituais sólidos, no incentivo à produção científica e, fundamentalmente, na provisão de assistência técnica para facilitar o processo de reformas nas áreas de gestão da dívida pública e desenvolvimento do mercado. Nesse sentido, o Banco está sempre atento à disseminação de boas práticas e experiências inter- nacionais, como é o caso deste livro, que permitam ampliar o conhecimento global nesses temas e auxiliar os diversos países que estão à procura de maior profissionalização na gestão de suas dívidas. A parceria com a Secretaria do Tesouro Nacional é um exemplo exitoso do papel que o Banco Mundial pode exercer para facilitar maior capacitação e sofisticação no gerenciamento da dívida pública. O Banco acompanhou de perto o processo de profissionalização da gestão da dívida pública brasileira, inclusive por intermédio de um empréstimo de assistência técnica, em especial nas áreas de gestão de risco, governança, otimização do fluxo de procedimentos entre os departamentos responsáveis pela gestão da dívida e, mais recentemente, no desenvolvimento de um sistema tecnológico de informação integrado de administração da dívida. As lições descritas neste livro, além de serem importantes no contexto brasileiro, servem como estímulo ao Banco em sua atuação em outros países que passam por desafios semelhantes aos experimentados pelo Brasil. Conforme o leitor perceberá neste livro, os frutos do trabalho da Secretaria do Tesouro Nacional vêm sendo relevantes para o reconhecimento e o fortalecimento da posição do Brasil no contexto internacional. O Banco Mundial continuará seu compromisso de apoio ao processo em curso de aperfeiçoamento da gestão pública no Brasil, inclusive de entes subnacionais, e de desenvolvimento de seu mercado de capitais, tão importantes para o crescimento do país. Makhtar Diop Diretor do Banco Mundial para o Brasil 9 10 Dívida Pública: a experiência brasileira Agradecimentos Este livro é um projeto que vem sendo pensado, desenhado e estruturado há algum tempo pelos coordenadores do trabalho. A sua realização requereu o esforço e o apoio de várias frentes no Banco Mundial e no Tesouro Nacional. Os autores, cuidadosamente selecionados, dispuseram de seu tempo e dedicação para escrever capítulos ricos em informações, compartilhando suas experiências como gestores e conhecedores de dívida pública. Além deles, agradecemos: À Secretaria do Tesouro Nacional, especialmente ao secretário-adjunto Paulo Valle por seu empenho para que a elaboração do livro fosse possível. Adicionalmente, à Coordenação-Geral de Desenvolvimento Institucional, à Karla de Lima Rocha e ao Bruno Santos Ribeiro que auxiliaram na organização. Ao Banco Mundial, principalmente José Guilherme Reis e Deborah Wetzel, que apoiaram e viabi- lizaram este projeto, e à Zélia Brandt de Oliveira pelo essencial auxílio no processo de publicação. Além disso, agradecemos o fundamental apoio de John Briscoe, Makhtar Diop, Alexandre Abrantes, Fernando Blanco, Tito Cordella, Mauro Azeredo, Rodrigo Chaves e Marcelo Giugale. Por fim, gostaríamos de agradecer a Lisa Schineller, Murilo Portugal e novamente ao José Guilherme Reis que trabalharam como revisores do conteúdo do livro e contribuíram com seus comentários que foram essenciais para o aprimoramento e o entendimento dos capítulos e de sua estrutura. Os organizadores 11 12 Dívida Pública: a experiência brasileira Prefácio Murilo Portugal Filho1 Em razão de sua conturbada história, a dívida pública brasileira ficou com uma imagem negativa perante a opinião pública. A dívida pública é associada tanto ao pagamento de juros elevados como proporção da receita fiscal e do produto doméstico bruto quanto à periódica ocorrência de calotes explícitos, problemas que infelizmente têm sido recorrentes na nossa história. Esses eventos negativos, entretanto, não decorrem de um problema inerente à natureza essencial da dívida pública. O endividamento público é um instrumento apropriado para financiar o investimento público na construção de ativos de elevado custo e longa duração, como uma hidrelétrica, um porto ou uma estrada. Nesse caso, o endividamento público permite distribuir equitativamente entre os contribuintes do presente e do futuro o custeio e os riscos da construção de ativos que vão gerar benefícios e rendimentos supostamente superiores ao seu custo por um longo período para várias gerações de contribuintes. A dívida pública permite também que os compradores de títulos públicos poupem sua renda no presente e transfiram para o futuro um poder de consumo ampliado pelos rendimentos positivos do investimento, de forma mais segura do que é usualmente possível utilizando títulos privados. Quando utilizada para financiar o investimento público produ- tivo, a dívida pública pode funcionar tanto como um mecanismo de equidade intergeracional quanto como um sistema de baixo risco de transferência intertemporal de consumo, gerando resultados sociais positivos para todos. A dívida pública é também um instrumento muito útil para o financiamento de despesas emergenciais e extraordinárias, mesmo que não sejam despesas de investimento, como as que ocorrem quando há uma calamidade pública ou outro tipo de choque temporário, até mesmo guerras. Aliás, a dívida pública brasileira começou a se formar para financiar a guerra de independência. Os problemas de juros elevados e dos calotes ocorrem principalmente em razão do continuado mau uso da dívida pública para financiar o déficit público gerado por gastos com despesas correntes de consumo. O pagamento de despesas públicas correntes de consumo deve ser normalmente realizado com impostos e não com dívida pública, pagando juros. Financiar uma proporção grande e crescente do consumo público com dívidas sujeitas ao pagamento de juros significa destruir a riqueza pública. A lógica da taxa de juros composta leva à conclusão inexorável de que tal procedimento é insustentável no longo prazo. Com o passar do tempo, o peso crescente da despesa com juros no orçamento público e a necessidade de taxar mais a geração presente para pagá-la torna o calote cada vez mais atraente para o sistema político, que usualmente gosta de gastar e não gosta de tributar. Essa tentação é maior quando os credores são estrangeiros e não votam. Os problemas dos juros altos e dos calotes explícitos são principalmente o resultado de se abandonar os princípios clássicos de utilizar a dívida pública apenas para o financiamento do investimento público ou para despesas emergenciais e extraordinárias, em vez de usar endividamento para simplesmente satisfazer a proclividade de gastar sem tributar. Há, evidentemente, outros tipos de erros que podem contribuir para dificultar a gestão da dívida pública. A má escolha e a ineficiente execução de projetos de investimento público certamente têm sido um problema 1 Murilo Portugal Filho foi Secretário do Tesouro Nacional entre 1992 e 1996 e Diretor Executivo do Banco Mundial entre 1996 e 2000. Além disso, ocupou outros cargos relevantes no Ministério da Fazenda e no FMI, instituição na qual atualmente exerce o cargo de Vice-Diretor Gerente. 13 sério no Brasil, que tem diminuído as taxas de retorno esperadas ex ante do investimento público, aumentando, com isso, o peso do seu financiamento nas receitas tributárias futuras. É possível também ocorrer má adminis- tração da dívida, ainda que esta tenha sido originalmente emitida seguindo princípios prudentes, embora esse tipo de problema tenha diminuído bastante com a crescente profissionalização da gestão da dívida pública, como é convincentemente demonstrado neste livro. Penso, portanto, que foi o abuso da dívida pública criado pela proclividade do sistema político de gastar sem tributar que gerou sua má reputação. Trata-se de problema semelhante ao abuso também ocorrido no Brasil com a aplicação da teoria keynesiana de financiamento monetário. Em períodos de recessão, nos quais a capacidade produtiva existente está claramente subutilizada e há uma carência inquestionável da demanda privada, não só é possível como também recomendável financiar déficits públicos para elevar a demanda agregada, utilizando a terceira forma de financiamento público (além da taxação e do endividamento) de que dispõem os países com regimes monetários independentes – a criação de moeda. Entretanto, o financiamento de déficits com a criação de moeda só é recomendável em um número muito restrito de circunstâncias, e o abuso da capacidade de emis- são resultou historicamente em inflação, que é uma forma de calote e tributação implícitos. A instabilidade macroeconômica sob a forma de inflação alta e volátil gera, por sua vez, problemas de difícil superação para a administração da dívida pública. Com inflação elevada e volátil, os compradores de títulos públicos procuram se proteger seja da incerteza seja da probabilidade crescente de calote futuro, exigindo juros reais cada vez mais elevados, encurtando os prazos e indexando a dívida pública às variáveis sujeitas à elevada incerteza macroeconômica, como o câmbio e os juros futuros. Isso gera uma estrutura de dívida pública altamente vulnerável a choques e expõe as finanças públicas a elevados custos. Cabe ao governo o dever de prover a estabilidade macroeconômica e, se o governo não o faz, tem infelizmente de assumir os resultantes altos custos da dívida pública, em vez de tentar repassá-los aos pou- padores privados. As tentativas de repassar aos poupadores os elevados custos de financiamento resultantes da inflação e da instabilidade macroeconômica levam à queda da poupança nacional, com a fuga de capitais para poupar no exterior, ou à fuga da moeda nacional, com a dolarização da economia, como ocorreu em muitos países latino-americanos. Esses não são problemas que possam ser resolvidos com gestão da dívida pública, por melhor que ela seja. Requerem mudança na gestão macroeconômica. Felizmente, essas dificuldades passaram a ser gradualmente superadas no Brasil a partir de 1994, quando a inflação foi controlada pelo Plano Real, o que permitiu já alguma melhora da estrutura da dívida pública, com prazos crescentes de maturação e redução da dívida indexada. O caminho é, entretanto, lento e difícil, e o controle da inflação é apenas o primeiro passo. Como evidenciado neste livro, os pequenos avanços alcançados na melhoria da estrutura da dívida pública após 1995 tiveram de ser revertidos a partir de 1997 com a crise da Ásia e a crise cambial brasileira de 1998, que provocaram uma elevação no estoque da dívida pública e uma deterioração na sua composição. A maior institucionalização da responsabilidade monetária, com a adoção de um regime de câmbio flexível e de metas de inflação a partir de 1999, bem como a renegociação das dívidas estaduais e a adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovadas em 1997 e 2000, foram outros passos importantes no processo de melhoria da gestão macroeconômica. Creio que a importância da manutenção de uma gestão macroeconômica saudável vem deitando raízes gradualmente na opinião pública e no eleitorado brasileiros, que se têm mostrado menos tolerantes com a irresponsabilidade monetária ou fiscal, o que repercutiu positivamente no sistema político. A manutenção da responsabilidade monetária e fiscal, como evidenciado pela maturidade demonstrada a partir de 2002, permitiu uma queda significativa do risco da dívida pública. Essa oportunidade foi excelentemente aproveitada pelos 14 Dívida Pública: a experiência brasileira gestores da dívida pública, que, a partir de 2003, implementaram uma profunda e significativa melhoria na composição da dívida pública brasileira, com significativa redução da dívida indexada e elevação de prazos, como descrito neste volume, a qual perdura a despeito de novos choques. Com a estabilidade macroeconômica, a responsabilidade dos gestores da dívida pública será crescente. Mas como este livro escrito de forma competente por profissionais da gestão da dívida pública brasileira bem demonstra, os gestores de dívida pública no Brasil estão preparados para esse desafio. O presente volume é uma contribuição importante para o entendimento dos problemas e das limitações referentes à gestão da dívida pública no Brasil. O livro apresenta o tema de forma abrangente e consolidada, cobrindo eficientemente seus vários aspectos e reunindo informações disponíveis até então apenas em fontes esparsas. Preenche assim uma importante lacuna no conhecimento empírico do tema no Brasil. Os autores apresentam inicialmente um quadro histórico, teórico e conceitual necessário ao entendimento do tema. A história da dívida pública brasileira dos seus primórdios aos dias atuais é apresentada resumida- mente, porém destacando-se seus marcos mais importantes. Os diferentes modelos teóricos que definem a sustentabilidade fiscal e intertemporal da dívida são apresentados e discutidos de forma competente, e os conceitos e as definições estatísticos utilizados no Brasil são descritos e comparados com as boas práticas internacionais. A contribuição original do volume encontra-se na descrição detalhada apresentada pelos autores de como a dívida pública é tratada pelos dois grandes atores desse tema: o governo e o mercado. O livro apresenta os mecanismos de gestão da dívida existentes no do governo e os grandes avanços obtidos nessa estrutura institucional, bem como a organização dos mercados de dívida no Brasil. No que se refere à parte governamental, são descritos os mecanismos para o planejamento estratégico, a gestão de risco, o orçamento, o controle e a auditoria da dívida pública brasileira. As descrições de como ocorrem na prática a coordenação das políticas fiscal e monetária, a definição de uma estrutura ótima de endividamento, a utilização dos sistemas de informática e os modelos probabilísticos para a gestão do risco fornecem fonte original importante para os estudiosos do tema de como funciona o sistema de gestão. Trata- se, em muitos casos, de informação até então não disponível publicamente de forma organizada, consolidada e acessível. Da mesma forma, o livro apresenta valiosas informações sobre a formação de preços, o funcionamento dos mercados primário e secundário, a composição da base de investidores, o papel das principais instituições que atuam na manutenção do mercado e o desenvolvimento do mercado de varejo por meio do Tesouro Direto. O presente livro é um valioso esforço de organizar e sistematizar informações sobre o tema. Tem a grande vantagem de ser escrito por autores não só com conhecimento teórico, mas também com experiência prática no trato do tema, o que enriquece a apresentação. Permite avaliar o grande progresso alcançado no Brasil na gestão da dívida pública. Estou convicto de que, ao trazer o tema ao conhecimento público de forma competente e profissional, os autores muito contribuirão para um melhor entendimento e melhor imagem da dívida pública brasileira tanto em nosso país quanto no exterior. 15 16 Dívida Pública: a experiência brasileira Introdução Dívida pública é um tema muitas vezes mal compreendido e pouco amigável que, no entanto, em vir- tude de sua relevância para a sociedade, merece ser bem explorado. Este livro busca atender a este objetivo. Preparado por profissionais com amplo conhecimento do tema, em sua maioria gestores da dívida pública, o livro cobre em detalhes vários aspectos do cotidiano da sua administração. Procura-se descrever o tema de forma evolutiva, destacando a rica sequência de eventos que proporcionaram maior profissionalização da gestão da Dívida Pública Federal brasileira e seu reconhecimento em nível internacional. Uma visão geral das funções da dívida pública Assim como o bom uso do crédito por um cidadão facilita o alcance de grandes conquistas (a compra de sua casa própria, por exemplo), o endividamento público, se bem administrado, permite ampliar o bem-estar da sociedade e o bom funcionamento da economia. Especialistas costumam destacar a importante função que o endividamento público exerce em garantir níveis equilibrados de investimento e serviços prestados pelo governo à sociedade, propiciando maior equidade entre gerações. As receitas e as despesas de um governo passam por ciclos e sofrem choques frequentes. Na ausência do crédito público, estes teriam de ser absorvidos por aumentos inesperados nos impostos do governo ou em cortes excessivos de gastos, penalizando, demasiadamente, em ambos os casos, a geração atual. Além da suavização intertemporal do padrão de serviços à sociedade, o acesso ao endividamento público permite atender a despesas emergenciais (tais como as relacionadas a calamidades públicas, desastres naturais e guerras) e assegurar o financiamento tempestivo de grandes projetos com horizonte de retorno no médio e no longo prazos (na área de infraestrutura, por exemplo). A história está repleta de exemplos nesse sentido, não sendo surpreendente o uso disseminado do endividamento por praticamente todos os países do mundo. O endividamento público pode exercer funções ainda mais amplas para o bom funcionamento da economia, auxiliando a condução da política monetária e favorecendo a consolidação do sistema financeiro. Títulos públicos são instrumentos essenciais na atuação diária do Banco Central para o controle da liquidez de mercado e para o alcance de seu objetivo de garantir a estabilidade da moeda, além de representarem referencial importante para emissões de títulos privados. O desenvolvimento do mercado de títulos, público e privado, pode ampliar a eficiência do sistema financeiro na alocação de recursos e fortalecer a estabilidade financeira e macroeconômica de um país.1 A lição fundamental dessa discussão recai na relevância de se zelar pela qualidade do crédito público. Só assim se pode valer do endividamento e de suas funções de forma eficiente. Aqui, mais uma vez, a ana- logia ao cidadão comum se faz válida, o qual deve manter um bom crédito para garantir permanentemente melhores condições de financiamento (por exemplo, via menores custos e maiores prazos para pagamento). No caso do governo, o mesmo ocorre. Suas condições de financiamento estão intimamente relacionadas à sua credibilidade, à sua capacidade de pagamento e à qualidade de gestão da dívida. Quanto à credibilidade e à capacidade de pagamento, estas são fortalecidas por intermédio de bons fundamentos econômicos, associados a políticas fiscal, monetária e cambial prudentes. É por intermédio de uma política fiscal equilibrada que se garante a confiança de uma trajetória sustentável de endividamento. 1 EICHENGREEN, Barry. Rationale and obstacles to the development of bond markets in emerging economies. Gemloc Advisory Services Guest Commentary, 2006. Disponível em: www.gemloc.org. 17 Similarmente, políticas monetária e cambial sólidas contribuem para maior estabilidade econômica, diminuindo os custos e os riscos da dívida pública. Bons fundamentos são, contudo, condição necessária, mas não suficiente, para a qualidade do crédito público. A gestão eficiente e profissional da dívida cumpre papel fundamental sobre a capacidade de um país absorver choques adversos que podem colocar em risco a estabilidade econômica e a solidez de suas políti- cas públicas. Decisões quanto às características dos instrumentos de financiamento e à composição ótima da dívida, incluindo seus prazos, indexação e tipos de credor, constituem algumas das decisões importantes tomadas por gestores da dívida. Soluções para essas questões exigem critério e preparo técnico elevado. Essa constatação explica o esforço concentrado de diversos países, industrializados e em desenvolvimento, em prol da profissionalização da gestão da dívida pública. O processo global de profissionalização da gestão da dívida pública Embora a função de gestor da dívida pública não seja de fato nova, sua profissionalização ganhou ímpeto somente após o final da década de 1980, quando se iniciou um processo global de aperfeiçoamento de sua gestão. Diversos países experimentaram, desde então, mudanças institucionais importantes nessa área e ampliaram o foco na capacitação dos gestores para que estes pudessem efetivamente traçar e implementar estratégias de endividamento que minimizassem o custo da dívida do governo no médio e no longo prazos, observando níveis prudentes de riscos. Conforme descreve Wheeler (2004),2 não foi por acaso que os primeiros países a desenvolverem substancialmente suas capacidades de gerenciamento da dívida – dentre eles a Bélgica, a Irlanda e a Nova Zelândia – foram justamente aqueles com histórias de problemas fiscais, alto nível de endividamento com relação ao produto interno bruto (PIB) e elevada proporção de dívida em moeda estrangeira em seus portfólios. Segundo o autor, a necessidade de maior profissionalismo ganhava força à medida que se tornava consenso que a estrutura da dívida, e não apenas seu nível, era importante e que a baixa qualidade de decisões na gestão da dívida ampliava o risco do balanço patrimonial do governo. Países emergentes, inclusive o Brasil, seguiram o mesmo caminho de profissionalização no final dos anos 1990 e princípio do século atual, fundamentalmente após a crise da Ásia e outras que vieram a abalar economias em desenvolvimento. Ficava claro àquela altura os ganhos potenciais de uma maior qualidade na gestão da dívida, dentre outros, para melhor monitoramento de riscos e maior capacidade de absorção dos choques econômicos domésticos e internacionais. Como resultado, além de uma onda de reformas institu- cionais nos departamentos de administração de dívida por todo o mundo, houve significativo progresso no desenvolvimento de técnicas e ferramentas para o planejamento e a gestão de risco da dívida pública. Estreitamente ligado ao processo de profissionalização da gestão da dívida, e quase ao mesmo tempo, veio o ímpeto para o desenvolvimento do mercado doméstico de dívida pública. Longe de ser um tema inex- plorado historicamente, a importância de ampliar a capacidade de endividamento por intermédio dos mercados de capitais domésticos, como alternativa a empréstimos diretos do setor bancário e redução da dependência de mercados internacionais, foi reforçada após a crise da Ásia, em 1997. Enquanto gestores de dívida desenvolviam capacidade técnica e modelos para auxiliar decisões sob o lado da oferta – ou seja, quanto à composição ótima da dívida pública, incluindo tipos de instrumento de financiamento, suas indexações, prazos e moedas –, tornava-se claro que a implementação de tais 2 WHEELER, Graeme. Sound practice in government debt management. World Bank, 2004. 18 Dívida Pública: a experiência brasileira decisões dependia diretamente do desenvolvimento do mercado de dívida doméstico. Conhecer a fundo as oportunidades e as limitações quanto à demanda passou a ser um requisito a mais para uma boa gestão da dívida. Não surpreendentemente, vários países, inclusive o Brasil, o Canadá, a Coreia e a Tailândia, incluem o desenvolvimento ou a manutenção de um mercado eficiente de títulos domésticos entre seus objetivos de administração da dívida pública. Organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, cumpriram papel importante nesse processo de profissionalização e coordenaram o debate internacional, com participação de gestores de vários países. Além de consolidar o resultado desse debate no documento Guidelines for public debt management, essas instituições prepararam o livro Developing government bond markets: a handbook, dentre outras publicações mais recentes que se tornaram referência para administradores de dívida.3 Essas organizações também vêm contribuindo por intermédio de assistência técnica, treinamento e organização de seminários nos quais gestores internacionais compartilham experiências e discutem seus principais desafios.4 O Brasil acompanhou de perto e participou ativamente de todo esse processo. Reformas institucionais importantes foram implementadas e investiu-se na capacitação dos gestores da dívida. Como resultado, os procedimentos de administração da dívida foram aprimorados, ferramentas sofisticadas para a tomada de decisão foram desenvolvidas e a transparência da administração da dívida foi ampliada por intermédio, por exemplo, da explicitação dos objetivos e das metas anuais para o perfil da dívida no Plano Anual de Financia- mento (PAF). Também foram alcançadas conquistas significativas no desenvolvimento do mercado doméstico de dívida e no aperfeiçoamento da estrutura das dívidas doméstica e externa. Melhora dos fundamentos econômicos e gestão da dívida pública no Brasil A ausência de bons fundamentos limita o escopo da gestão pública, que se torna incapaz de alcançar melhorias consistentes e sustentáveis na estrutura da dívida sob sua responsabilidade. Longe de ser um ar- gumento puramente teórico, a experiência brasileira comprova essa estreita dependência. O aprimoramento da gestão da dívida pública no Brasil coincidiu com seguidos avanços institucionais e macroeconômicos no país. Essa combinação – melhores fundamentos e gestão qualificada da dívida – forma o pano de fundo para os avanços positivos obtidos pelo crédito público brasileiro nos últimos anos. Uma breve revisão da evolução da estrutura da dívida pública nos últimos anos e sua inter-relação com avanços no campo das políticas macroeconômicas ilustram essa importante lição, explorada em maiores detalhes no decorrer deste livro.5 Os Gráficos 1 e 2 demonstram a evolução da composição e do estoque da Dívida Pública Federal6 brasileira desde dezembro de 1994. 3 Ver, por exemplo: World Bank e IMF, Guidelines for public debt management, 2001a; Developing Government bond markets: a handbook, 2001b; World Bank, Managing public debt: from diagnostics to reform implementation, 2007a; Developing the domes- tic government debt market: from diagnostics to reform implementation, 2007b. 4 Alguns exemplos de eventos são o Sovereign Debt Management Forum, organizado pelo Banco Mundial, e o Global OECD-WB- IMF Bond Market Forum, organizado pelas três instituições. O Brasil é um participante assíduo desses eventos, sendo frequente- mente convidado para expor a experiência brasileira para outros países. 5 Ver especialmente o Capítulo 2 da Parte 1: História da dívida pública no Brasil: de 1964 até os dias atuais; e o Capítulo 1 da Parte 3: Evolução recente do mercado de Dívida Pública Federal. 6 A DPF, tema central de diversos capítulos deste livro, inclui as dívidas interna e externa, mobiliária e contratual, de responsabilida- de do Tesouro Nacional e do Banco Central em mercado. Por força da Lei de Responsabilidade Fiscal, após 2002 o Tesouro Nacional passou a ser o único emissor de títulos da DPF. Para termos ideia da importância para o país de sua eficiente gestão, em dezembro de 2008 a DPF representava cerca de 70% dos passivos do setor público brasileiro, nele incluídos, além desta dívida, os passivos dos estados, dos municípios e das empresas estatais. 19 Gráfico 1. Composição da DPF por indexador Fonte: Tesouro Nacional Gráfico 2. Composição da DPF por indexador – % PIB Fonte: Tesouro Nacional Esse período é relevante, pois descreve a série de avanços (e às vezes retrocessos) observados desde a quebra estrutural nos níveis históricos de inflação ocorrida em 1994 com o advento do Plano Real (ver Gráfico 3). Avaliando a composição da DPF, podemos notar que esta era essencialmente composta por dívida cambial e remunerada por taxas de juros. A participação de títulos prefixados era praticamente inexistente, e os poucos títulos emitidos com essas características tinham prazos muito curtos, que usualmente não pas- savam de dois meses. 20 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 3. Evolução da inflação – IPC (Fipe) – mensal (%) Fonte: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) Com a queda da inflação, foi possível iniciar processo de desindexação da dívida, permitindo aumento expressivo e contínuo da dívida prefixada, que alcançou o pico de 36% em agosto de 1997. Sob forte con- sequência da turbulência iniciada na Ásia durante o segundo semestre daquele ano e da crescente crise de confiança que alcançava as economias emergentes, veio o primeiro grande teste à solidez dos fundamentos econômicos brasileiros. Houve forte pressão sobre a moeda e temores quanto ao descontrole da inflação, tornando difícil e custoso seguir no processo de desindexação da dívida. Esses eventos traduziram-se em acréscimo da dívida indexada ao câmbio, bem como da parcela indexada à taxa de juros de curto prazo, conhecida por taxa Selic. Em dezembro de 1998, a parcela de títulos prefixados já se havia reduzido para menos de 5% do total da DPF. Na verdade, parte do retrocesso no processo de desindexação da dívida foi administrada em uma es- tratégia de redução do risco de refinanciamento. Embora os gestores da dívida continuassem a emitir títulos prefixados por alguns meses, mesmo que mais curtos, as sinalizações de que a crise era grave e de duração incerta indicavam a necessidade de modificação temporária da estratégia. Àquela altura, temia-se que o prazo da dívida se tornasse demasiado curto,7 com concentrações de vencimento que poderiam suscitar dúvidas quanto à capacidade de pagamento do governo e agravar ainda mais os efeitos da crise. O forte recuo da dívida prefixada, com consequente aumento da dívida vinculada à taxa Selic e à varia- ção cambial, demonstrou a dependência da estratégia da dívida aos fundamentos macroeconômicos. Ficava mais uma vez clara a importância de se ancorar a economia a políticas fiscais sólidas e de se promover ajuste das contas externas do país. Tais fundamentos fortaleceriam a resistência da economia a choques externos, aumentariam a credibilidade quanto à capacidade de pagamento da dívida e permitiriam maior estabilidade à melhoria de seu perfil, como pôde ser observado a partir de então. 7 O prazo médio da Dívida Pública Federal, que havia permanecido abaixo de 12 meses por mais de uma década, alcançou final- mente, em 1997, níveis superiores a um ano. Para os gestores, tal avanço na estrutura da dívida não poderia ser perdido, ainda que para isso fosse necessário “sacrificar” a composição da dívida naquele momento para recuperá-la posteriormente. Para maiores detalhes sobre a evolução dos indicadores da dívida pública, ver Anexo Estatístico ao final deste livro. 21 Em um longo e consistente caminho de aprimoramento dos fundamentos econômicos, a política fiscal começou a ganhar credibilidade com os seguidos superávits primários a partir de 1999 (ver Gráfico 4) e com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, a qual trouxe maior disciplina para a gestão das finanças públicas nas diversas esferas do setor público.8 As contas externas, por sua vez, passaram por ajustes significativos, permitindo redução expressiva nos indicadores de vulnerabilidade externa do país. A razão entre a dívida externa e as reservas internacionais, por exemplo, caiu de 557% para 96% entre 2002 e 20089 (ver Gráfico 5). Gráfico 4. Resultado fiscal do setor público Fonte: Banco Central do Brasil 8 Maiores detalhes sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser encontrados nos capítulos sobre orçamento e auditoria, respectivamente Capítulo 4 da Parte 2 (item 4.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal no contexto da dívida pública) e Capítulo 5 da Parte 2 (item 2.4.1 Condições, vedações, limites e penalidades). 9 Esse indicador é emblemático, pois indica que os recursos em moeda estrangeira depositados no Banco Central seriam suficientes para pagar a totalidade da dívida externa pública e privada do país. Para termos uma melhor idéia da relevância do atual nível, a série histórica da relação entre a dívida externa (pública e privada) e as reservas internacionais (de 1952 a 2008) inicia-se com 1, 3, atinge 20 na crise do início dos anos 1980, e vai se reduzindo paulatinamente, até atingir 0,96 em dezembro de 2008, o menor valor da série. Para maiores detalhes, ver Anexo Estatístico ao final deste livro. 22 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 5. Indicadores de vulnerabilidade externa Fonte: Banco Central do Brasil As conquistas no campo econômico propiciaram ambiente favorável para a gestão da dívida. Sob as diretrizes de uma estratégia cuidadosamente elaborada e disseminada por intermédio de seus planos anuais de financiamento, o Tesouro Nacional vem obtendo avanços consistentes na melhoria da estrutura da dívida pública, com destaque para a acentuada redução do passivo cambial e o aumento gradual e contínuo das parcelas das dívidas prefixada e indexada a índices de preços.10 Essas melhorias devem-se ainda à atuação proativa do Tesouro no gerenciamento da dívida, inclusive por meio de operações de troca e compra antecipadas, que permitiram acelerar o processo de aprimoramento do perfil da dívida, reduzindo a exposição da economia brasileira a choques. A combinação de bons fundamentos macroeconômicos e de uma gestão eficiente da Dívida Pública Federal permitiu ao país colher frutos, conforme demonstram os indicadores de risco da economia brasileira (ver Gráfico 6) e o almejado grau de investimento, auferido pela agência Standard & Poor´s em 30 de abril de 2008. Conforme o anúncio da agência naquela data, o pragmatismo das políticas fiscal e de gestão da dívida11 foi determinante para que o Brasil fosse promovido, pela primeira vez em sua história, ao grau de investimento. 10 Segundo estudos realizados, esses títulos são ideais para compor a maior parte do estoque da dívida, observados os critérios de custo e risco. Para maiores detalhes, ver Capítulo 3 da Parte 2 (Gerenciamento de riscos da Dívida Pública Federal). 11 Ver relatório da Standard & Poor´s, Brazil long-term foreign currency rating raised to investment grade BBB. Outlook stable, april 30 2008. 23 Gráfico 6. Spread performance – Brasil e emergentes Fonte: Bloomberg Organização e sumário do livro Com o objetivo de ampliar o entendimento sobre a dívida pública brasileira, incluindo sua gestão e características de seu mercado, o livro está organizado em três partes: a Parte 1. Entendendo a dívida pública brasileira; a Parte 2. O gerenciamento da dívida pública brasileira; e a Parte 3. O mercado de dívida pública no Brasil. Um breve sumário do conteúdo de cada parte e dos capítulos que as compõem será exposto a seguir. Na Parte 1 buscou-se fazer uma análise histórica e conceitual da dívida pública, explicando os principais conceitos de dívida, as informações disponíveis sobre o tema, os documentos publicados regularmente sobre o assunto, além de uma análise histórica da dívida pública, desde seu surgimento no Brasil até os dias atuais. Também são discutidos os principais pontos que permitem avaliar a sustentabilidade de uma dívida pública. Para isso, a parte está dividida em quatro capítulos, a seguir discriminados. Capítulo 1 – Origem e história da dívida pública no Brasil até 1963 Busca-se resgatar, compilar e analisar aspectos marcantes da história da dívida pública brasileira. Para isso, buscou-se dividir cada seção do capítulo por período (Colônia, Império e República) e por tipo de dívida (interna e externa), tendo sido usadas, como referências, obras que tratam desses temas em detalhes. Portanto, mais que procurar analisar a fundo a evolução da dívida em algum período em particular, o capítulo fornece uma visão global da rica sequência de eventos e desafios enfrentados na história da dívida pública brasileira. A análise do processo de endividamento brasileiro, tanto interno quanto externo, auxilia-nos a en- tender os desafios herdados desse longo período, que em muito impactaram a gestão da dívida pública brasileira recente. Capítulo 2 – História da dívida pública no Brasil: de 1964 até os dias atuais Neste capítulo procura-se traçar a evolução das dívidas pública interna e externa a partir de 1964, buscando mostrar sua evolução não só pelo aspecto quantitativo, mas também ilustrando os avanços obtidos sob o ponto de vista institucional e os desafios encontrados no percurso até os dias atuais. 24 Dívida Pública: a experiência brasileira Quanto à evolução da dívida interna, são mostradas as razões do aumento do estoque no período, relacionando o fato com os eventos macroeconômicos que o acompanharam. Ainda, procura-se ilustrar os aspectos institucionais mais relevantes, ao se buscar melhor entender os eventos correlatos à dívida pública federal interna. A leitura desta parte é particularmente interessante, ao se observar que algumas decisões de política tomadas no passado podem ter contribuído para justificar restrições à evolução da política macro- econômica no período mais recente. Com respeito à evolução e aos eventos relacionados à dívida externa, o capítulo mostra as diversas etapas experimentadas pelo país, explicando as causas da crise da dívida nos anos 1980, sua superação e a retomada das emissões voluntárias até culminar com o ambiente de relativa tranquilidade experimentado atualmente na administração da dívida externa, com destaque para as emissões qualitativas, o programa de recompras e a construção da curva em reais. Capítulo 3 – Sustentabilidade da dívida pública Levando-se em consideração que o endividamento público deve cumprir de forma adequada suas fun- ções, como destacado no início desta Introdução, faz-se necessário que o emissor adote uma política crível, em que os valores contratualmente estipulados sejam honrados. Em outras palavras, a política fiscal tem de ser sustentável. Nesse sentido, este capítulo tem por objetivo a formalização da idéia de sustentabilidade, com a apresentação de várias medidas ou metodologias de avaliação que oferecem uma maneira disciplinada de avaliar se uma política é sustentável ou não. Por fim, e não menos importante, procura-se aqui mostrar como a administração da dívida pública pode desempenhar um papel fundamental na determinação de sua sustentabilidade intertemporal. Capítulo 4 – Conceitos e estatísticas da dívida pública Neste capítulo são apresentados, de forma bastante didática e completa, os principais conceitos, es- tatísticas e relatórios referentes à dívida pública divulgados atualmente pelo governo brasileiro com o intuito de facilitar a compreensão dos temas abordados no livro. Um aspecto interessante trazido pelo capítulo diz respeito às recomendações dos organismos internacionais quanto à forma e à abrangência das estatísticas de dívida pública conforme disposto em seus documentos oficiais. Também é feita uma comparação dessas recomendações com os dados divulgados pelo Brasil, sugerindo aperfeiçoamentos que permitiriam avançar em relação aos progressos já conquistados. A Parte 2 descreve o gerenciamento da Dívida Pública Federal em todos os seus principais aspectos, em particular a estrutura institucional e seus avanços recentes, o processo para desenvolver uma estratégia eficiente de financiamento da dívida, o gerenciamento de riscos, o orçamento público como ferramenta de auxílio à administração da dívida pública e, por fim, a estrutura regulatória e de auditoria na dívida. Para isso, a Parte 2 foi dividida em cinco capítulos, cujos sumários são descritos a seguir: Capítulo 1 – Estrutura institucional e eventos recentes na administração da Dívida Pública Federal Este capítulo foi elaborado com o objetivo de oferecer uma leitura introdutória para os demais capítulos desta parte. Assim, procura-se, de uma maneira clara e amigável, descrever a experiência brasileira, ilustrando a forma como a administração da Dívida Pública Federal no Brasil se adequou às melhores práticas internacionais. 25 Dentre os principais aspectos abordados, explora-se a importância da coordenação da gestão dessa dívida com as políticas fiscal e monetária; mostra-se o processo de desenvolvimento de uma governança sólida e eficaz; avalia-se a importância do desenvolvimento de uma estratégia prudente e consistente de dívida pública, tendo por base o gerenciamento permanente de seus riscos; e descrevem-se as medidas que têm sido toma- das para aprimorar a capacidade técnica da equipe e os sistemas tecnológicos de informação. Além desses pontos, uma contribuição importante do capítulo é mostrar a fase de transição do país, que passou da etapa de implementação de reformas e desenvolvimento da capacidade de gestão da dívida pública para a fase de disseminação para outros países das boas práticas em administração da dívida. Capítulo 2 – Planejamento estratégico da Dívida Pública Federal Considerando a importância de se desenhar estratégias adequadas para a administração da dívida pública que levem em conta, dentre outros elementos, a composição ótima dessa dívida no longo prazo, os riscos inerentes a tais estratégias e o compromisso com o desenvolvimento do mercado de títulos públicos, este trabalho procura discutir os principais aspectos envolvidos no processo de planejamento estratégico do endividamento público à luz da experiência brasileira. A esse respeito, ressaltam-se os antecedentes econômicos e as mudanças no arcabouço institucional do Tesouro Nacional, os quais influenciaram consideravelmente o desenho do planejamento estratégico da Dívida Pública Federal, a definição dos objetivos de sua administração, a estrutura ótima da dívida no longo prazo (benchmark) e as diversas etapas do desenho de uma estratégia de transição do curto para o longo prazo. Capítulo 3 – Gerenciamento de riscos da Dívida Pública Federal Acompanhando a tendência do gerenciamento de riscos que se consolidou como atividade essencial no mercado financeiro, principalmente em função da expansão do mercado de derivativos, da maior disponibili- dade de ferramentas amigáveis para cálculo desses riscos e de regras prudenciais para a gestão de riscos específicos, determinadas por reguladores dos mercados de capitais e bancos centrais, o Tesouro Nacional iniciou em 2001 um programa para desenvolvimento de capacidade técnica e construção de ferramentas e sistemas de gerenciamento de riscos, arcabouço este construído e mais tarde apresentado e validado em seminário do qual participaram especialistas de diversos países e organizações internacionais. Nesse sentido, o objetivo do capítulo é descrever o escopo das atividades e os principais desafios no gerenciamento dos riscos que permeiam a dívida pública brasileira. Além de prover uma visão geral de como o Tesouro Nacional lida com o gerenciamento de tais riscos, o capítulo tem também a (ambiciosa) intenção de atender às demandas de pesquisadores e países em estágio inicial de capacitação sobre o tema, disponibilizando um mapa consistente de ferramentas e responsabilidades que essa atividade engloba. Ademais, a visão das ferramentas que precisam ser desenvolvidas e das habilidades específicas requeridas para tal função pode ser um guia útil para aqueles dispostos a aprimorar suas práticas de gerenciamento de riscos. Capítulo 4 – O orçamento da Dívida Pública Federal Neste capítulo procura-se propiciar um entendimento sobre o orçamento brasileiro como ferramenta essencial na administração financeira dos recursos públicos e, especificamente, no que se refere à Dívida Pública Federal, trazendo os principais conceitos de orçamento público, bem como os processos 26 Dívida Pública: a experiência brasileira e as entidades envolvidas, além de apresentar a estrutura institucional da administração financeira e orçamentária brasileira. Um aspecto interessante abordado no capítulo em uma de suas seções, é o foco no orçamento sob a ótica da Dívida Pública Federal, que além de estar subordinado às regras gerais às quais toda gestão de recursos públicos está, possui um tratamento especial, já que é impactado, por um lado, pelos controles legais sobre o endividamento público e pela transparência das informações, e por outro, pela busca da flexibilidade necessária para uma gestão eficiente dessa dívida, minimizando o risco orçamentário. Capítulo 5 – Marcos regulatórios e auditoria governamental da dívida pública Em perspectiva geral, este capítulo descreve os marcos regulatórios e o processo de auditoria governamental sobre a dívida pública no Brasil. A importância da estrutura regulatória e da auditoria em um processo eficiente de gestão da dívida pública é destacável, pois tal processo não é completo se não houver marcos regulatórios consistentes e instituições fortes. Nesse sentido, ao longo do texto é possível observar que diversos mecanismos de enforcement asseguram o cumprimento desses marcos legais, seja por disposições das próprias normas seja por avaliação de uma instituição independente de auditoria governamental, o que demonstra o alinhamento do país com as melhores práticas difundidas pelos organismos internacionais de referência (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e International Organization of Supreme Audit Institutions – INTOSAI). A Parte 3 procura mostrar o funcionamento do mercado de dívida pública no Brasil, iniciando pela descrição da evolução recente desse mercado, seguindo com a apresentação das características dos títulos públicos tradicionalmente utilizados para financiamento da dívida e de sua forma de precificação, descrevendo a organização do mercado financeiro brasileiro e o funcionamento dos mercados primário e secundário de dívida, e terminando com um análise sobre os principais investidores em títulos do governo e sobre o desen- volvimento dessa base de investidores ao longo do tempo. Adicionalmente, a Parte 3, em seu último capítulo, descreve o programa de vendas de títulos públicos a pessoas físicas pela internet – o Programa Tesouro Direto, desenvolvido e gerenciado pelo Tesouro Nacional. Mostra-se, a seguir, o sumário para cada um dos sete capítulos que compõem a referida parte. Capítulo 1 – Evolução recente do mercado de títulos da Dívida Pública Federal Este capítulo busca ser introdutório e dar sequência aos capítulos seguintes, procurando trazer uma visão geral do mercado de títulos da Dívida Pública Federal, bem como destacar os principais avanços recentes nesse mercado, tendo como pano de fundo as melhores experiências relatadas por organismos internacionais. Para isso, apresenta na primeira parte um panorama da dívida pública brasileira, considerando os avanços macroeconômicos, as melhorias no gerenciamento de dívida pública e a evolução dos mercados internacionais, os quais têm auxiliado sobremaneira o desenvolvimento dos mercados de dívida tanto interno quanto externo. Por fim, aborda sucintamente as principais medidas para o desenvolvimento do mercado e os aperfeiçoamentos conquistados à luz do que se observa para as melhores práticas internacionais. Capítulo 2 – Títulos públicos federais e suas formas de precificação O objetivo deste capítulo é descrever, de forma clara e didática, os principais títulos utilizados pelo Tesouro Nacional para financiamento da Dívida Pública Federal, suas características e metodologias de cálculo, bem como os insumos que servem de base para a formação de seus preços, levando-se em conta que o Tesouro 27 Nacional, como gestor da dívida pública, se preocupa com o impacto que a precificação de seus títulos pode ter no sucesso das emissões. Não por outra razão, destaca-se o esforço empreendido pela instituição ao longo dos últimos anos, com a colaboração de diversos participantes do mercado, para adotar medidas que visam a simplificar seus títulos e a facilitar sua correta avaliação pelos investidores. Capítulo 3 – Organização do mercado financeiro no Brasil Ao considerar a importância do relacionamento periódico com diversos segmentos do mercado financeiro, tais como associações de classe, câmaras de custódia e bolsas de valores, para que a administração da dívida trabalhe em um ambiente propício, a fim de atingir seus objetivos, o capítulo analisa cada um dos principais participantes do mercado financeiro doméstico, mostrando sua relevância para o desenvolvimento do mercado de títulos públicos. Trata-se aqui, dentre outros aspectos, dos órgãos reguladores dos principais participantes do sistema financeiro, dos participantes do mercado de títulos públicos que desempenham a função de inter- mediários e, também, dos investidores, que são os detentores finais dos títulos. Por fim, avalia-se a relevância da atuação das entidades de classe, do papel das centrais de custódia e das câmaras de liquidação, assim como dos sistemas e do ambiente de negociação de títulos. Capítulo 4 – Mercado primário da Dívida Pública Federal O objetivo primordial deste capítulo é apresentar um panorama geral do mercado primário dos títulos emitidos pelo governo federal por intermédio do Tesouro Nacional, seu único emissor. Para tal, são descritas as modalidades de emissão nos mercados doméstico e internacional, apresentando, em linhas gerais, a estratégia adotada e os mecanismos de emissão utilizados pelo Tesouro Nacional em cada um desses mercados, além de tratar das operações de gerenciamento do passivo sob sua responsabilidade, executadas com objetivos diversos. Adicionalmente, o capítulo mostra o alinhamento da atuação do Tesouro Nacional aos princípios de transparência e previsibilidade, de acordo com as melhores práticas internacionais. Capítulo 5 – A base de investidores da Dívida Pública Federal no Brasil Como destaca o Banco Mundial (2007 e 2001),12 promover uma base de investidores diversificada, em termos de horizontes de investimento, preferências ao risco e motivações para comercialização dos ativos, é vital para estimular os negócios e a alta liquidez dos títulos públicos. Além disso, tal diversificação é fundamental também para viabilizar o financiamento dos governos em diferentes cenários econômicos. Nesse sentido, a gestão da Dívida Pública Federal no Brasil tem buscado, ao longo dos últimos anos, ampliar e diversificar sua base de investidores, bem como aprimorar cada vez mais sua relação com os grupos representativos. Este capítulo busca dar uma visão geral dessa evolução e dos aspectos referentes à base de investidores em títulos públicos no Brasil, da gestão da Dívida Pública Federal nesse campo e de suas principais tendências. Para isso, são identificadas a composição da base de investidores brasileira e o perfil dos grupos em termos de suas preferências por títulos, revelando como esse tema entrou definitivamente no planejamento estratégico da dívida e como, no seu gerenciamento cotidiano, o trabalho com a base de investidores tem sido conduzido. Também são mostradas as principais medidas implantadas, as práticas adotadas, as tendências e os desafios para os próximos anos. 12 Ver Referências do capítulo. 28 Dívida Pública: a experiência brasileira Capítulo 6 – Mercado secundário da Dívida Pública Federal Uma das principais precondições para a existência de um mecanismo eficiente de financiamento público é a existência de um mercado secundário desenvolvido de títulos públicos. É nas negociações em mercado secundário que se formam, de maneira eficiente, as referências de preços dos diversos ativos, as quais, por sua vez, vão determinar o custo de financiamento dos títulos do governo. Assim, a facilidade com que investidores entram e saem desse mercado sem custos elevados de transação, ou seja, a liquidez, representa variável relevante na determinação do interesse das diversas classes de investidores pelos ativos financeiros. Dentre as tarefas de gerenciamento de dívida deve-se incluir a busca por um contínuo aperfeiçoamento do mercado secundário. Este capítulo pretende mostrar o estágio atual de desenvolvimento do mercado secundário de títulos públicos no Brasil, as características desse mercado e os esforços envidados ao longo dos últimos anos no sentido de dar-lhe maior liquidez e transparência. Capítulo 7 – Venda de títulos públicos pela internet: Programa Tesouro Direto O objetivo deste capítulo é apresentar ao leitor o Tesouro Direto – programa de venda de títulos públicos federais diretamente a pessoas físicas por meio da internet, desenvolvido e gerenciado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Para tal, o capítulo descreve, com riqueza de detalhes, as características do programa, suas principais estatísticas, sua evolução desde o lançamento, em 2002, e suas perspectivas, incluindo uma análise comparativa com programas semelhantes desenvolvidos por outros países. Os organizadores 29 30 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 1 Entendendo a Dívida Pública Brasileira 31 32 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 1 Capítulo 1 Origem e história da dívida pública no Brasil até 1963 Anderson Caputo Silva 1 Introdução A história da dívida brasileira encontra-se documentada em várias obras, com enfoques e nível de agre- gação diversos. Pode-se encontrar, por exemplo, referências excelentes sobre a dívida no período imperial, como a obra de Carreira (1980), ou sobre a dívida externa desde sua origem até 1937, conforme Bouças (1950). Este capítulo busca resgatar, compilar e analisar aspectos marcantes da história da dívida pública brasileira. Faz-se uso frequente de citações à literatura que trata esses temas em detalhe. Para uma melhor compreensão, as seções foram divididas por períodos históricos (Colônia, Império e República) e por tipos de dívida (interna ou externa). Portanto, mais que analisar a fundo a evolução da dívida em algum período em particular, o capítulo fornece uma visão global da rica sequência de eventos e desafios enfrentados na história da dívida pública brasileira. Discorremos sobre o início do processo de endividamento brasileiro interno e externo, a instituciona- lização da dívida e a formação de seu arcabouço legal, a criação do primeiro órgão de gestão, as caracterís- ticas dos principais empréstimos e as dificuldades enfrentadas para fazer face ao pagamento da dívida. Em seguida, descrevemos operações de reestruturação e consolidação à luz do contexto político-econômico de cada período. Essa análise ajuda-nos a entender os desafios herdados desse longo período para a gestão da dívida pública brasileira. A partir desta breve introdução, o capítulo está organizado em mais três seções. A segunda seção trata da dívida pública no Brasil Colônia (1500-1822). A terceira seção apresenta a história da dívida no período imperial (1822-1889) por meio de duas subseções que abordam as dívidas interna e externa. Com igual subdivisão, a quarta seção resume pouco mais de 73 anos iniciais da história da dívida interna e externa no período republicano (1889-1963). A história da dívida a partir de 1964 será assunto do próximo capítulo. 2 A dívida pública no Brasil Colônia (1500-1822)1 A história da dívida interna brasileira tem origem ainda no período colonial, no qual, desde os séculos XVI e XVII, alguns governadores da Colônia faziam empréstimos. A exemplo do processo de endividamento em outras partes do mundo (Box 1), os empréstimos da época confundiam-se com empréstimos pessoais dos governantes. Além disso, no período colonial “tudo era desconhecido: o tamanho da dívida, a finalidade do empréstimo, as condições em que esse era feito etc.” (NETO, 1980). 1 Referência principal: Bouças (1950). 33 Box 1. Origem da dívida pública Embora seja difícil identificar a origem do endividamento público, há evidências da existência do crédito público já nos tempos da Grécia Antiga. Baleeiro (1976) cita um estudo de Xenofonte sobre as rendas de Atenas em que são mencionados empréstimos para barcos de guerra de propriedade pública. Com o renascimento comercial dos séculos XI e XII, foram introduzidos novos hábitos de consumo de artigos de luxo influenciando o comportamento da nobreza, dos príncipes e dos reis. Os superávits financeiros, bastante comuns à época, foram sendo substituídos por seguidos déficits, por conta do aumento de despesas sem correspondente aumento de receitas. Como o aumento de impostos e a emissão de moeda eram considerados soluções difíceis ou indesejadas naquele período,* passou-se a contar com empréstimos junto aos mercadores ricos da época para o financiamento de despesas ordinárias e emergenciais, tais como aquelas associadas a guerras. Os empréstimos da época, no entanto, eram bastante distintos do atual crédito público. Isso porque eram geralmente empréstimos pessoais do príncipe, muitas vezes representando obrigações do monarca devedor e não se transferiam a seus herdeiros ou sucessores. As taxas de juros exigidas eram consequentemente exorbitantes e, de acordo com Baleeiro (1976), as garantias exigidas chegavam a ser humilhantes. O autor cita como exemplo de garantias “desde o fio da barba sacratíssima de Sua Majestade, príncipes tomados como reféns, relíquias de santos, até o penhor da Coroa, jóias ou a vinculação de certas rendas ao serviço de juros e amortizações da dívida”. A desvinculação entre o patrimônio do monarca e o Tesouro Público ocorreu a partir do século XVII, constituindo marco importante para a maior utilização do crédito público como meio de financiamento de despesas do governo. * Hicks (1972) argumenta que, em função de a base tributária à época ser estreita e de a arrecadação ser ineficiente e injusta, a elevação de impostos tinha reflexo popular bastante negativo. Já a emissão de moedas era desestimulada pela restrita oferta de metais preciosos e pela situação inflacionária que criou onde foi adotada. Fonte: Neto (1980) e Baleeiro (1976) Elaboração: Anderson Caputo Silva Conforme Bouças (1950), o primeiro a mandar ordenar a escrituração das finanças da Colônia foi Luiz de Vasconcelos e Souza, o “vice-rei da idade de ouro do Brasil colonial”. Apurou-se que, de 1761 a 1780, “ao invés de saldos, a escrituração oficial acusava déficits anuais superiores a 100 contos, tendo-se elevado a dívida pública, naquele último ano, a mais de 1.200 contos, provenientes de soldos e fardamentos às tropas, fornecimentos de gêneros, salários e até dinheiro de que o governo, sob promessa formal de futura restituição, se apoderara em tempos de guerra”. Apesar desse levantamento, os compromissos devidos pela Colônia não foram liquidados até que, em 1799, “procurando atenuar já então a ameaça dum colapso econômico, D. João VI determinou o pagamento da dívida apurada, e de outras, ainda não relacionadas, por meio de apólices que vencessem juros de 5%”. Essa iniciativa marcou a fundação da dívida de Portugal no Brasil. Na mesma linha, a Carta Régia de 24 de outubro de 1800, o Alvará de 9 de maio de 1810 e o Decreto de 12 de outubro de 1811 contribuíram respectivamente para classificar todas as dívidas em legais e ilegais, considerar dívidas antigas todas aquelas contraídas até 17972 e estabelecer um mecanismo de amortização dessas dívidas.3 Bouças (1950) argumenta 2 Requerendo que todas as dívidas fossem habilitadas no Conselho da Fazenda, com prazo de três anos para a prescrição das que não se legalizassem. Segundo Leão (2003), “verifica-se, assim, que, desde 1810, os títulos de dívidas prescreviam desde que não apresentados para habilitação em um prazo determinado (no caso, três anos) nas consolidações da dívida interna, tradição esta que irá se repetir nas consolidações de 1956, 1962, 1967”. 3 Todos os anos, entregar-se-ia aos credores 6% do valor dos seus créditos, a metade como prêmio e gratificação pela demora e o 34 Dívida Pública: a experiência brasileira que esse procedimento beneficiou superiormente a Colônia e serviu, “mais tarde, para provar que, no passivo dela herdado pelo Brasil independente, aquelas antigas dívidas orçavam, apenas, em 42 contos”.4 A despeito desses avanços, os déficits intensificaram-se entre 1808 e 1821, período no qual D. João VI se estabeleceu no Brasil com sua Corte, enquanto tropas de Napoleão ocupavam Portugal. As despesas, dentre outras, para manutenção de seus súditos e, principalmente, para subsidiar o exército português eram vultosas e os recursos para financiá-las bastante limitados, já que não se podia contar com auxílio financeiro de Portugal. Fatos e ações marcantes para a história política, econômica e financeira do Brasil ocorreram nesse período. Destacam-se, por exemplo, a abertura dos portos em 1808 (iniciando a independência econômica), a criação do primeiro Banco do Brasil e a implantação do papel-moeda (Box 2). Box 2. Criação do primeiro Banco do Brasil Uma das iniciativas de D. João VI durante seu período no Brasil foi a criação do primeiro Banco do Brasil, por meio da assinatura do Alvará de 12 de outubro de 1808, seguindo sugestão do então ministro da Fazenda e da Marinha portuguesa – D. Rodrigo de Souza Coutinho. Com autorização inicial de funcionamento por vinte anos, o Banco do Brasil entrou efetivamente em operação apenas em 11 de dezembro de 1809 – após ter seu capital mínimo subscrito (cem ações). O fundo de capital era de 1.200 contos, divididos em 1.200 ações de um conto de réis cada uma. “O início das operações do primeiro Banco do Brasil, em 1809, pode ser considerado um marco fundamental na história monetária do Brasil e de Portugal, tanto por ter sido a primeira instituição bancária portuguesa quanto pelo fato de representar uma significativa mudança no meio circulante do Brasil através da emissão de notas bancárias” (MÜLLER; LIMA, 2007). A criação do Banco do Brasil está intimamente ligada à necessidade da Coroa de levantar o numerário que carecia para financiar os gastos públicos crescentes. O Banco do Brasil foi o quarto banco emissor do mundo, depois do Banco da Suécia (1668), do Banco da Inglaterra (1694) e do Banco da França (1800). (WIKIPÉDIA, http://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil). De 1810 a 1828, segundo Müller e Lima (2007), foi emitido um total de 28.866.450$000 réis. Não sur- preendentemente, verificava-se já em 23 de março de 1821 a insolvabilidade do banco ao se avaliar o balanço organizado por sua Diretoria – situação que ficaria ainda mais crítica após a partida de D. João VI com sua comitiva para Portugal, já que assim as garantias representadas pela maior parte das alfaias e das jóias da Coroa perdiam seu efeito (BOUÇAS, 1950). Com forte oposição no Parlamento para a renovação de sua autorização de funcionamento, foi decidido em 23 de setembro de 1829 que o primeiro Banco do Brasil seria extinto em 11 de dezembro daquele ano, quando a instituição completaria vinte anos de existência. Fonte: Müller e Lima (2007), Bouças (1950) e Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil) Elaboração: Anderson Caputo Silva A situação financeira deixada por D. João VI quando de seu regresso a Portugal era, no entanto, realmente preocupante. Bouças (1950) fornece uma boa descrição das dificuldades enfrentadas no período restante como amortização do capital, sem que se levasse em conta a época em que o débito fora contraído. 4 “Contos” ou “contos de réis” era a expressão utilizada para indicar 1 milhão de unidades de reais (ou réis), a moeda em circu- lação naquela época, que foi substituída pelo cruzeiro somente em 1942. Sua expressão financeira era 1:000$000. Para maiores detalhes sobre os padrões monetários brasileiros, ver Anexo. 35 em que D. Pedro (filho de D. João VI) assumiu o papel de príncipe regente (Regência 1821-1822) e, posterior- mente, como o primeiro imperador do Brasil independente (1822-1831). Segundo o autor: A situação tornou-se mais crítica ao retirar-se ele (D. João VI) com sua comitiva para o Reino, pois a maior parte da moeda de ouro e de prata existente foi transferida para Lisboa na frota que conduziu o rei, ficando o Tesouro Público, na fiel expressão do ministro da Fazenda, o conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada, “sem real em seus cofres”. Conforme o autor, até mesmo D. Pedro demonstrava sua amargura em cartas enviadas a seu pai no período anterior à Independência. Em uma, com data de 21 de setembro de 1821, mencionava: “Se V. M. me permite eu passo a expor o triste e lamentável estado a que está reduzida esta província, para que V. M. me dê as suas ordens e instruções que achar convenientes para eu com dignidade me poder desembrulhar da rede em que me vejo envolvido”. D. Pedro relata as dificuldades para fazer face às despesas desordenadas, diante de recursos limita- dos: “[...] o numerário do Tesouro é só o das rendas da Província, e estas mesmas são pagas em papel; é necessário pagar tudo quanto ficou estabelecido, [...] não há dinheiro, como já ficou exposto; não sei o que hei de fazer”. Segundo palavras de D. Pedro na mesma carta, ele havia ficado “no meio de ruínas”. Uma comissão nomeada pelo príncipe regente para avaliar o estado da Fazenda Pública determinava que a dívida passiva de D. João VI chegava a 9.870:918$092. Houve ainda tempo para se tomar um empréstimo, com garantia das rendas da Província do Rio de Janeiro, durante os meses que antecederam a Independência. O chamado empréstimo da Independência foi autorizado pelo Decreto de 30 de julho de 1822, no montante de 400:000$, prazo de dez anos e juros de 6%. A destinação principal era para a “aquisição de vasos de guerra”. Com uma subscrição rápida e superior ao necessário, a demanda excedente foi subscrita posteriormente, em 27 de outubro, “para atender às despesas também maiores com a consolidação da Independência”. 3 A dívida pública no Brasil Império (1822-1889)5 As dificuldades financeiras enfrentadas pelo Brasil no período que antecedeu à sua independência, aliadas às demandas naturais para a consolidação de um país em seus primeiros anos de independência, formavam um contexto desafiador. Diante desses problemas, a história da dívida pública brasileira no Império tornou-se rica em vários aspectos: criou-se a primeira agência de administração da dívida pública, institucionalizou-se a dívida interna, os mecanismos e os instrumentos de financiamento foram ampliados e realizaram-se operações de reestruturação de dívida (as chamadas operações de gestão de passivo), que em muito se assemelham a operações feitas nos tempos atuais. Além disso, conforme mencionaremos em vários pontos nesta seção, a evolução da dívida (interna e externa) no Brasil Imperial guarda estreita relação com uma série de fatores político-econômicos que caracterizam a história financeira no Império. De forma ampla, essa história poderia ser dividida em dois períodos: o primeiro, 5 O período imperial brasileiro constituiu-se de dois reinados: i) o de D. Pedro I (1822-1831); e o de D. Pedro II (1831-1889). Este último deu início ao período regencial, que perdurou até a proclamação da maioridade de D. Pedro II pelo Poder Legislativo em 23 de julho de 1840, quando este tinha 15 anos incompletos. O reinado pessoal de D. Pedro II se estendeu, portanto, de 1840 até o advento da República, em 15 de novembro de 1889. 36 Dívida Pública: a experiência brasileira de 1822 a 1850 – um período áspero “de embates e consolidação”; e o segundo, que se estende de 1850 a 1889 (República) – um período “sobretudo de construção” (BOUÇAS, 1950). A despeito das dificuldades, as finanças públicas brasileiras ocuparam posição de destaque entre as nações latino-americanas no século XIX, pelo sucesso com o qual o país foi capaz de emitir dívidas6 e de consistentemente honrar seus compromissos externos, enquanto seus vizinhos não o faziam (SUMMERHILL, 2008).7 O mesmo autor destaca, ainda, o não menos expressivo sucesso brasileiro na emissão de montantes elevados de dívida interna de longo prazo em moeda local em uma mesma época em que os demais países latino-americanos se encontravam em default com seus credores domésticos.8 3.1 A dívida pública interna no Império9 A história da dívida pública interna no Brasil Imperial ganha proeminência a partir da iniciativa do imperador D. Pedro I de designar, em 20 de setembro de 1825, por meio de decreto, uma comissão para pro- mover a apuração e a institucionalização da dívida pública interna no Brasil. “Pela primeira vez na história do país executava-se uma medida com a finalidade de institucionalizar a dívida pública interna, dar-lhe caráter de dívida nacional, pela qual toda a Nação é responsável, desvinculando-a do caráter de dívida pessoal do governante” (NETO, 1980). 3.1.1 “A pedra fundamental do crédito público no Brasil” (Lei de 15 de novembro de 1827) Com base no trabalho dessa comissão, foi expedida a Lei de 15 de novembro de 1827, que estabele- ceu, de forma abrangente, o arcabouço legal básico para a política de endividamento no Brasil. Esta lei,10 considerada por muitos a pedra fundamental do crédito público no Brasil,11 sofreu poucas alterações até a criação do Banco Central, quase 140 anos depois. A nova lei, em seus 75 artigos, distribuídos em quatro Títulos, dentre outros: i) reconhece dívidas passadas até 1826 (à exceção daquelas que se achavam prescritas pelo Alvará de 9 de maio de 1810); ii) estabelece regras para a inscrição de todas as dívidas reconhecidas, via registro no Grande Livro da Dívida do Brasil, e, no caso de dívidas provinciais, no respectivo Livro Auxiliar do Grande Livro, “rubricado e encerrado pelo presidente da província respectiva” (art. 5º) – estes livros foram instituídos e criados também por esta lei; iii) trata da “fundação” da dívida pública – já lançando os primeiros títulos da dívida interna 6 Segundo Cardoso e Dornbusch (1989), a história do Império brasileiro é de déficits financiados por empréstimos domésticos e externos. Os autores mencionam o relatório do ministro Ouro Preto sobre a situação do orçamento no momento da Proclamação da República, o qual demonstrava que apenas 30% dos gastos totais do Império haviam, de fato, sido cobertos por impostos e outras receitas. Todo o resto foi financiado via emissão de dívidas. 7 De fato, já em 1825, à exceção do Brasil, todas as nações recém-independentes da América Latina já haviam aplicado default, eventos que se repetiram seguidas vezes no século XIX (DAWSON, 1990; MARICHAL, 1989). 8 Summerhill (2008) destaca em sua obra que esta história de sucesso no período imperial brasileiro esteve ligada a mudanças ins- titucionais (notadamente pela Constituição de 1824). A divisão de poderes com o Parlamento, por exemplo, eliminou a habilidade de o imperador unilateralmente tributar, gastar, adquirir empréstimos ou fazer um default. 9 Referências principais desta subseção: Carreira (1980), Leão (2003) e Neto (1980). 10 Conforme Leão (2003), a Lei de 1827 “segue a tradição da história financeira inglesa”. Em 1715, o rei Jorge III mandou consolidar a dívida pública inglesa e determinou que as dívidas deveriam ser inscritas em um livro (Great Ledger) no Banco da Inglaterra. 11 Neto (1980) menciona como exemplo o analista C. J. de Assis Ribeiro. 37 fundada, no montante de 12 mil contos de réis (inscrita automaticamente no Grande Livro); e iv) cria o primeiro órgão responsável pela administração da dívida pública interna e externa (Box 3). Box 3. Caixa de Amortização – a primeira instituição para administração da dívida pública A criação da Caixa de Amortização representou um dos principais avanços históricos trazidos pela Lei de 15 de novembro de 1827. É interessante notar o nível de detalhamento dispensado pela lei com relação ao arranjo institu- cional e aos procedimentos de funcionamento do novo órgão. A lei estipulou até mesmo os ordenados anuais de seus membros e destinou praticamente metade de seus artigos (36 dos 75) ao seu Título IV – Da Caixa de Amortização. Dois aspectos merecem destaque: i) a independência da caixa do Tesouro Público; e ii) os procedimentos de controle, prestação de contas e transparência da gestão do órgão. A administração da caixa era feita por uma junta independente do Tesouro Público e composta do ministro e do secretário dos negócios da Fazenda, como presidente, de cinco capitalistas nacionais e da Inspetoria-Geral da caixa (art. 41).* O arranjo institucional previsto na lei em direção a uma estrutura de gestão de dívida mais autô- noma antecipa um debate que ressurgiria bem além do seu tempo. Nesse sentido, embora atualmente já possamos considerar como consolidada a separação entre a gestão das políticas monetária e fiscal, ainda não é frequente a desvinculação entre a gestão da dívida pública e esta última, sendo diversas as práticas internacionais.** A lei chega a estabelecer aspectos de controle bastante restritos (tais como a determinação de que “o cofre da Caixa de Amortização terá três chaves, uma das quais será guardada pelo inspetor-geral e as outras pelo contador e pelo tesoureiro [...] igual número de chaves terá o cofre de cada uma caixa filial [...] Nunca se abrirá cofre algum sem que estejam presentes os três claviculários”. A lei também incluía exigências de transparência e prestação de contas em linha com melhores práticas internacionais atuais. Destacam-se a obrigação de apresen- tação anual pela junta do balanço geral da Caixa à Câmara dos Deputados e a publicação de seis em seis meses pela imprensa de todas as operações da Caixa e de suas filiais. A Caixa de Amortização deixou de ser responsável pela administração do meio circulante em 1945, com a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), embrião do futuro Banco Central. Em 1967, todas as atribuições da Caixa de Amortização da Dívida foram transferidas para o Banco Central do Brasil. Extingue-se, assim, uma instituição que administrou a dívida interna e externa federal por 140 anos, sem que, nas pesquisas efetuadas, tenha sido encontrado qualquer registro de escândalo (LEÃO, 2003). * Caixas filiais eram criadas nas províncias do Império em que houvesse emissão de apólices. Essas filiais eram administradas por uma junta composta do presidente da província, do tesoureiro-geral e do escrivão da junta da Fazenda (arts. 52 e 53). **Ver Wheeler (2004). Fonte: Lei de 15 de novembro de 1827; Carreira (1980); Neto (1980) e Leão (2003) Elaboração: Anderson Caputo Silva 3.1.2 Origem e evolução da dívida interna fundada no Brasil Império É por intermédio da Lei de 15 de novembro de 1827 que os pilares básicos para o registro e o controle de novas dívidas, bem como de sua administração, são estabelecidos. E é também a partir dessa lei que se inicia a história da dívida interna fundada – via emissão de 12 mil contos de réis (art. 19). A evolução da dívida interna fundada no Brazil Imperial e seu impacto no orçamento são bem retratados por Leão (2003), conforme Tabelas 1 e 2. A Tabela 1 subdivide o processo de endividamento interno em quatro 38 Dívida Pública: a experiência brasileira subperíodos que se seguem à primeira emissão de 1827. A Tabela 2 permite analisar a evolução do serviço da dívida interna, bem como seu peso relativo, por vezes superior, ao serviço da dívida externa. Esses dados ilustram a importância do endividamento interno no período imperial. Tabela 1. Evolução da dívida interna fundada no Império (em contos de réis) Período Emissão Resgate Saldo 1827 12.000 - 12.000 1828-1840 23.500 3.800 31.700 1841-1860 32.000 - 63.700 1861-1880 340.000 - 403.700 1881-1889 46.000 11.300 435.500 Fonte: Leis do Império do Brasil – Rio de Janeiro: Tipographia Nacional (reproduzida de Leão (2003)) Tabela 2. Serviços da dívida interna e externa nos orçamentos brasileiros 1828-1889 (em contos de réis) Serviço da dívida Lei nº Data Orçamento Externa Interna 08/10/1828 1829 1.178 381 15/12/1830 1831/32 856 1.003 15/11/1831 1832/33 2.988 1.046 24/10/1832 1833/34 2.425 1.241 58 08/10/1833 1834/35 1.640 1.529 38 03/10/1834 1835/36 480 1.348 99 31/10/1835 1836/37 2.125 1.500 70 22/10/1836 1837/38 2.111 1.490 106 11/10/1837 1838/39 2.069 1.600 60 20/10/1838 1839/40 2.055 1.970 108 26/10/1840 1840/41 2.168 2.170 243 30/11/1841 1842/43 3.020 3.120 317 21/10/1843 1843/44 3.088 2.449 39 Serviço da dívida Lei nº Data Orçamento Externa Interna 369 18/09/1845 1845/46 3.026 3.909 396 02/09/1846 1847/47 e 47/48 3.026 3.473 514 28/10/1848 1849/50 2.797 3.391 555 15/06/1850 1850/51 2.798 3.479 668 11/09/1852 1853/54 4.213 3.447 719 28/09/1853 1854/55 3.823 3.447 779 06/09/1854 1855/56 3.823 3.462 840 15/09/1855 1856/57 3.823 3.461 884 01/10/1856 1857/58 3.787 3.461 939 26/09/1857 1858/59 3.787 3.460 1.040 14/09/1859 159/60 3.787 3.460 1.114 27/09/1860 1861/62 3.648 3.460 1.177 09/09/1862 1863/64 3.683 4.174 1245 28/06/1865 1865/66 3.646 4.817 1507 26/09/1867 1867/68 e 68/69 8.277 6.338 1836 27/09/70 1871/72 8.056 15.785 2670 20/10/1875 1876/77 12.535 17.551 2940 31/10/1879 1879/80 e 80/81 14.374 24.904 3017 05/11/1880 1881/82 12.499 26.338 3141 30/10/1882 1882/83 e 83/84 20.887 20.276 3349 20/10/1887 1888 22.383 19.090 Fonte: Coleção das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipographia Nacional (reproduzida de Leão, 2003) Os períodos apresentados na Tabela 1 demonstram uma dinâmica de endividamento intrinsecamente ligada à evolução socioeconômica do Brasil Imperial. Observa-se, por exemplo, o grande aumento da dívida nas décadas de 1860 e 1870 (mais detalhadas a seguir), bem como longos períodos de resgates suspensos da dívida, indicando as dificuldades financeiras vividas pelo Império. O período entre 1827 e 1839 foi marcado por emissões de títulos com destinação quase exclusiva à cobertura de déficits e de despesas com pacificações de províncias. Porém, as primeiras dificuldades financeiras para sustentar o serviço de amortizações começaram a surgir e em 23 de outubro de 1839, por intermédio da Lei nº 91, o resgate dos títulos em circulação foi suspenso. A interrupção das amortizações não impediu, contudo, que novos títulos fossem emitidos. É bem verdade que as dificuldades para a colocação de papéis aumentou, especialmente entre 1840 e 1860, o que se refletiu 40 Dívida Pública: a experiência brasileira no aumento dos deságios, que passaram a ser de 35%. Apesar disso, as emissões nesse período alcançaram 32 mil contos de réis, e os recursos delas provenientes foram utilizados para finalidades diversas, desde a cobertura de déficits até o pagamento do dote e do enxoval da princesa de Joinville.12 As condições de financiamento começaram a melhorar a partir da década de 1860, e as emissões no período entre 1861-1880 cresceram de forma nunca antes vista. Não surpreendentemente, o serviço da dívida interna no orçamento também aumentou abruptamente nessas duas décadas (Tabela 2). Embora as despesas a serem financiadas permanecessem diversas, incluindo o casamento das princesas D. Isabel e D. Leopoldina, o maior peso (mais de 80% dos 340 mil contos de réis emitidos) vinha definitivamente das despesas de guerra e daquelas para a cobertura de déficits que acumularam, respectivamente, 150 mil e 130 mil contos de réis. Já no período entre 1881-1889, destaca-se uma expressiva operação de administração de passivo. Embora as amortizações continuassem suspensas, o elevado montante de emissões tornou bastante sig- nificativas as despesas anuais com o pagamento de juros da dívida interna, alcançando, em 1884, 21% da receita orçamentária. Uma solução para reduzir tais despesas foi permitir que, de forma facultativa, fossem convertidos títulos que pagavam juros de 6% a.a. por outros que pagassem juros de 5% a.a. (Lei nº 3.229, de 3 de setembro de 1884). Essa estratégia foi realizada com sucesso em 1886, propiciando uma economia anual de juros de 3.294 contos de réis.13 O Brasil terminava assim o período imperial com uma dívida interna relativamente elevada. Conforme Leão (2003), ao final do Império a dívida interna fundada federal era de 435.500 contos de réis, contra uma dívida externa de 270 mil contos de réis. A evolução do endividamento externo no Brasil Imperial é o tópico da próxima subseção. 3.2 A dívida pública externa no Império14 A história da dívida externa brasileira remonta aos primeiros anos do Império.15 Ao todo, foram contraídos 15 empréstimos entre 1824 e 1888. Além disso, por conta da Convenção Secreta Adicional ao Tratado de 29 de agosto de 1825, o Brasil assumiu a responsabilidade pelo empréstimo contraído por Portugal em 1823 no valor de £ 1.400.000 (BOUÇAS, 1950), e, em outubro de 1889, já próximo à Proclamação da República, houve uma vultosa operação de conversão, descrita em maiores detalhes a seguir. A Tabela 3 ilustra as características dos 15 empréstimos mencionados. 12 D. Francisca de Bragança, quarta filha do imperador D. Pedro I e da imperatriz D. Maria Leopoldina. 13 Segundo Leão (2003), Belisário Soares de Souza, então ministro da Fazenda, “apesar das agressões, insultos e intimidações, conduziu a operação com a máxima cautela, discrição e eficiência [...] Em primeiro lugar, autorizou o fundo de amortização a comprar todos os títulos que fossem oferecidos ao par, o que fez a cotação dos títulos subir. Quando estes se firmaram acima do par, o que fez o rendimento deles se aproximar de 5%, utilizou-se da faculdade legislativa e fez a conversão em 1886 (Decreto nº 9.581, de 17/04/1886)”. 14 Referências principais desta subseção: Bouças (1950) e Carreira (1980). 15 Conforme Abreu (1999), “a dívida externa brasileira caracteriza-se pela ocorrência de dois longos ciclos de endividamento, seguidos, nos dois casos, de moratórias, renegociações temporárias e acordos permanentes”. Os anos do Império se enquadram no que o autor denomina primeiro ciclo, que se estende de 1824 até o acordo permanente de 1943 (enquanto o segundo se inicia em meados da década de 1960, indo até a conclusão das negociações do Plano Brady em 1994). 41 Tabela 3. História financeira do Brasil Tabela das diversas condições dos empréstimos levantados pelo Brasil em Londres, desde o ano de 1824 Comissão e outras das prestações Desconto pelo Valor nominal adiantamento Taxa de juros contratos** Empréstimos despesas da Número de prestações prestações Valor geral negociação Datas dos Preço de Prazo de emissão em £ em £ De 1824 13 de agosto 75% 1% 1.000.000 1.333.300 12 12 meses - 5% 12 de janeiro/25 85% 1% 2.000.000 2.352.000 12 12 meses - 5% De 1829 3 de julho 52% 2% 400.000 739.500 12 12 meses - 5% De 1839 5 de fevereiro 76% - 312.500 411.200 - - - 5% De 1843 11 de janeiro 85% - 622.702 732.000 1 - - 5% De 1852 27 de julho 95% 3% 954.250 1.010.000 1 - - 4 ½% De 1858 19 de maio 95 ½% 2 ¼% 1.425.000 1.523.500 4 6 meses - 4 ½% De 1859 23 de fevereiro 100% 2% 508.000 508.000 1 - - 5% De 1860 16 de marco 90% 2 1/8% 1.210.000 1.373.000 4 5 meses - 4 ½% De 1863 7 de outubro 88% 2 5/8 3.300.000 3.855.300 5 5 meses - 4 ½% De 1865 12 de setembro 74% 21 1/16% 5.000.000 6.963.600 7 12 meses 5% 5% De 1871 23 de fevereiro 89% 2 ½% 3.000.000 3.459.000 5 6 meses 5% 5% De 1875 18 de janeiro 96 ½% 2 ¼% 5.000.000 5.301.200 7 10 meses 5% 5% De 1883 23 de janeiro 89% 2 ¼% 4.000.000 4.599.600 5 10 meses 4 ½% 4 ½% De 1886 26 de fevereiro 95% 1 ¼% 6.000.000 6.431.000 5 6 meses 5% 5% De 1888 - 97% 1 ¼% 6.000.000 6.297.300 - - 5% 4 ½% pagamento da Comissão pelo amortização amortização amortização pagamento Por compra pagamento Por sorteio Sistema de dos juros dos juros Prazo de primeiro extinção Data do primeiro Taxa do Taxa de 1% 1 de outubro de 1824 1 de janeiro de 1825 1% - 1/8 % Compra ou sorteio 30 anos 1% 1 de outubro de 1824 1 de janeiro de 1825 1% - 1/8 % Idem 30 anos 1% 1 de outubro de 1829 1 de janeiro de 1830 1% - 1/8 % Idem 30 anos 1% 1 de obril de 1839 1 de janeiro de 1840 1% ½% 1/8 % Idem 30 anos Nao fixada 1 de junho de 1843 1 de janeiro de 1844 1% ½% 1/8 % Idem 20 anos 1% 1 de julho de 1853 1 de dezembro de 1853 1% ½% - Idem 30 anos 1.19.0% 1 de dezembro de 1858 1 de dezembro de 1858 1% ½% 1/8 % Idem 20 anos 42 Dívida Pública: a experiência brasileira pagamento da Comissão pelo amortização amortização amortização pagamento Por compra pagamento Por sorteio Sistema de dos juros dos juros Prazo de primeiro extinção Data do primeiro Taxa do Taxa de 1% 1 de outubro de 1859 1 de outubro de 1859 1% ½% 1/8 % Idem 30 anos 1.13.0% 1 de junho de 1860 1 de outubro de 1860 1% ½% 1/8 % Idem 30 anos 1.13.0% 1 de abril de 1864 1 de outubro de 1864 1% ½% 1/8% Idem 30 anos 1% 1 de marco de 1866 1 de marcode 1867 1% ½% 1/8 % Sorteio ao par 37 anos 1% 1 de agosto de 1871 1 de fevereiro de 1873 1% ½% 1/8 % Compra ou sorteio 38 anos 1 de julho de 1875 (cálculo) 1% 1 de junho de 1883 1 de julho de 1877 1% ½% 1/8 % Idem 38 anos 1% 1 de julho de 1886 1 de junho de 1884 1% ½% 1/8 % Idem 38 anos 1% - 1 de julho de 1887 1% ½% 1/8 % Idem - 1% - - 1% ½% 1/8% Idem - Fonte: Carreira (1980) Obs.: a data da segunda etapa do empréstimo de 1824 foi ajustada. na tabela original constava 7 de setembro de 1824. De acordo com o estudo de Carreira (1980) e de Bouças (1950), a data seria 12 de janeiro de 1825. (Qualquer erro é de responsabilidade do autor deste capítulo.) Nota-se que o empréstimo de 1824 foi realizado em duas etapas e com banqueiros diferentes. 16 É interes- sante observar também que todos os empréstimos foram contraídos em libras, sendo a grande maioria por intermédio da casa dos Srs. Rothschild & Sons ou de seus representantes. Empréstimos em outras moedas só viriam a se tornar mais comuns na época da República, começando por empréstimos em francos franceses em 1905 e ganhando força com outros em dólares norte-americanos a partir da década de 1930.17 A evolução do endividamento externo guarda estreita semelhança com a da dívida interna, apresentada anteriormente. Intimamente ligadas ao cenário socioeconômico do país no período, ambas exibem, por exemplo, crescimento expressivo nas décadas de 1860 e 1870. Uma forma de descrever essa evolução seria subdividi-la entre os dois períodos da história financeira brasileira no Império, já destacados por Bouças (1950), quais sejam: i) período áspero (1822-1850); e ii) período de construção (1850-1889).18 O Gráfico 1 ilustra essa evolução, destacando os volumes e os preços de emissão dos empréstimos em cada um desses períodos. 16 A primeira parte de £ 1.000.000 foi contraída com os banqueiros Bazeth, Farqhuar, Crawford & Co., Fletcher, Alexander & Co., Thomas Wilson & Co.; enquanto a segunda parte, de £ 2.000.000, foi contratada com a casa Nathan Mayer Rothschild. 17 Abreu (1988) apresenta uma descrição dos empréstimos por moedas, classificando-os em três categorias: libras, dólares ameri- canos e outras. Também classifica empréstimos em nível federal, estadual e municipal. A dívida pública externa no período imperial era composta quase exclusivamente por empréstimos federais. Estados e municípios começam a se endividar somente a partir de meados da década de 1880. 18 Nota-se também que, dentre os 15 empréstimos, dois (além da assunção da dívida portuguesa pela Convenção Secreta de 1825) foram no Primeiro Reinado; um durante o período da Regência no Segundo Reinado; e os 12 restantes no governo de D. Pedro II, no Segundo Reinado. 43 Gráfico 1. Empréstimos externos no Império Fonte: Carreira (1980). Dados da Tabela 3 Elaboração: Anderson Caputo Silva Em termos gerais, verifica-se melhoria nas condições contratuais a partir do período de crescimento, ou de “construção”, iniciado em 1850 (o preço da emissão de 1852 alcançou 95%). Observa-se, também, aumento expressivo no volume de emissões na década de 1860 (influenciado sobremaneira pelas despesas com a Guerra do Paraguai19 e pela percepção mais favorável do crédito brasileiro no exterior). Os empréstimos realizados durante o período áspero “de embates e consolidação” (1822-1850) iniciaram-se com o chamado “primeiro empréstimo externo da Independência” em 1824-1825, sob o pretexto de acudir a crítica situação na qual se encontravam as finanças do Império, impossibilitadas de fazer face às despesas urgentes e extraordinárias com defesa, segurança e estabilidade (BOUÇAS, 1950). A crise financeira continuou, e veio o empréstimo de 1829. Influenciado pelas condições precárias do Tesouro Público20 e pela bancarrota de países sul-americanos que haviam contraído empréstimos externos, esse empréstimo passou à história com o nome de ruinoso, devido a suas condições significativamente desfavoráveis (BOUÇAS, 1950). De fato, esse talvez seja o primeiro exemplo histórico de “efeito contágio” sobre as condições de financiamento da dívida brasileira, algo que se tornou bastante comum em vários períodos de nossa história, sobretudo para o lançamento de bônus soberanos de economias emergentes no mercado internacional. Os empréstimos de 1839 (o único durante a Regência) e de 1843 (nos primeiros anos de governo de D. Pedro II) completam a lista daqueles contraídos antes do período de “construção”, iniciado em 1850. Enquanto o primeiro foi realizado para satisfazer os déficits dos Ministérios da Fazenda, Marinha e Guerra,21 19 Com efeito temporário negativo sobre as cotações dos títulos brasileiros. 20 D. Pedro I, na fala do trono de 2 de abril de 1829, dizia: “Claro é a todas as luzes o estado miserável, a que se acha o tesouro público e muito sinto prognosticar que, se nesta sessão extraordinária e no decurso da ordinária, a assembléia, a despeito das minhas tão reiteradas recomendações, não arranja um negócio de tanta monta, desastroso deve ser o futuro que nos aguarda” (BOUÇAS, 1950). 21 O período da Regência foi marcado por diversos conflitos políticos em diversas províncias (Pará, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Sul), abalando profundamente as finanças do país. 44 Dívida Pública: a experiência brasileira o segundo foi motivado pela Convenção de 22 de julho de 1842, que ratificou ajustes de contas entre Brasil e Portugal, em conformidade ao Tratado de 29 de agosto de 1825 (CARREIRA, 1980). O chamado período de “construção” (1850-1889) comporta, portanto, a maioria dos empréstimos da época imperial brasileira, ou seja: 11 do total de 15 empréstimos externos. Cumpre destacar aqueles contraí- dos em 1852, 1859 e 1865. O primeiro empréstimo (1852) marca o início dessa nova fase, sendo o primeiro de nossa história com juros inferiores a 5%. O segundo (1859) representou uma operação de troca, ao par, justamente dos papéis remanescentes daquele empréstimo de 1829, caracterizado como ruinoso. Aos inves- tidores foi dada a opção de receber o pagamento em dinheiro ou em novos títulos. A percepção do país era tão positiva naquele momento que mais de 90% dos papéis foram trocados. Finalmente, o terceiro (1865) foi marcante por seu elevado volume (£ 6.963.600) para financiar “serviços extraordinários do Império”, sobretudo aqueles por conta da Guerra do Paraguai. Observa-se que as condições desse empréstimo são inferiores às que vinham sendo alcançadas (preço de emissão a 74% e juros de 5%), não só em virtude da guerra, mas também por conta de uma crise internacional que afetava os mercados financeiros.22 Em outubro de 1889, diante de uma situação favorável das finanças e sob o comando do visconde de Ouro Preto como ministro da Fazenda, o governo lançou uma megaoperação no valor de £ 19.837.000 de conversão de débitos antigos com juros de 5% por um novo e único empréstimo com juros de 4% e prazos mais dilatados (56 anos). Essa operação de reestruturação de passivos, negociada com os banqueiros Rothschild, foi considerada um grande sucesso. Além de uniformizar quase toda a dívida em um único nível de juros e cronograma de pagamentos, a operação conduziu a uma economia anual de £ 437.985 em quotas de juros e amortização. Chegava o Brasil ao período republicano “com a longa lista de empréstimos externos realizados no regime passado já quase resgatada [...]”. Deles, a República achou em circulação os de 1883, 1888 e 1889, nos valores respectivos de £ 4.248.600, £ 6.265.900 e £ 19.837.000. O capital inicial dos empréstimos externos do Império, resgatados ou não, elevou-se a £ 68.191.900, ou 640.913 contos de réis em dinheiro brasileiro, segundo a taxa cambial média dos anos em que foram realizados. A soma dos empréstimos resgatados foi de £ 37.458.00023 (BOUÇAS, 1950). 4 A dívida pública no Brasil República (1889-1963) Os 74 anos iniciais de história da dívida pública brasileira no período republicano descritos nesta seção são marcados por vários eventos que nos ajudam a entender as características dessa dívida nos dias atuais. Enquanto, sob o aspecto institucional, a gestão da dívida pública, ainda sob a tutela da Caixa de Administração, gozou de relativa estabilidade, o período foi marcado por dificuldades de financiamento interno e externo e reestruturações. 22 “A depressão no mercado de títulos era geral: os egípcios de 7% estavam cotados a 95; os italianos e os turcos de 5% perma- neciam a 65 e 70, enquanto os títulos norte-americanos, do mesmo juro, ainda não haviam conseguido cotação superior a 68” (BOUÇAS, 1950). Para maior compreensão do relato, quando o autor cita “estavam cotados a 95”, quer dizer que os títulos eram negociados em mercado a 95% do seu valor de face, ou seja, exigindo retorno superior à taxa de juros contratualmente acordada. Nesse sentido, quanto menor o percentual, maior o desconto. 23 Segundo Carreira (1980), a receita arrecadada pelo Tesouro Nacional durante o antigo regime, nela incluídas a ordinária e a extraordinária, não passou de 3.738.383 contos, tendo sido realizada a despesa de 4.496.565 contos, de onde resultou o déficit total de 758.182 contos. 45 4.1 A dívida pública interna na República (até 1963)24 Apesar da expressiva operação de administração de passivo ao final do período imperial, em que foram convertidos títulos que pagavam 6% a.a. de juros por outros de 5% (subseção 3.1), a gestão da dívida interna nos primeiros anos da República passava por grandes dificuldades. Em primeiro lugar, o longo período de suspensão do resgate dos títulos em circulação (1839-1889) afetava sua credibilidade. Um segundo problema era a elevada fragmentação da dívida, devido à grande diversidade de instrumentos com prazos e taxas de juros distintos. Por fim, todos os títulos em circulação ainda eram nominativos, e suas transferências, burocrati- camente complicadas. Estes dois últimos pontos dificultavam a negociação e a liquidez da dívida interna. Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda da República, tentou regularizar o resgate dos títulos e instituir a emissão de títulos ao portador. Contudo, essa regularização durou pouco, sendo interrompida logo após sua saída, em janeiro de 1891. Quanto à emissão de títulos ao portador, o primeiro lançamento do tipo só foi possível em 1903,25 ou seja, após a consolidação de 1902 descrita a seguir. Mesmo assim, esse mecanismo só viria a ser utilizado novamente a partir de 1917.26 A consolidação de 1902 tentou resolver o problema de alta fragmentação da dívida – e foi bem- sucedida, ao menos inicialmente. A quase totalidade dos títulos em circulação foi trocada por novos títulos, todos nominativos, no valor de 529.750 contos de réis, que renderiam juros de 5% a.a.27 Contudo, o efeito dessa uniformização também não durou muito. Entre 1902 e 1956 (ano de nova consolidação), 145 au- torizações para emissão de títulos foram expedidas com elevada falta de padronização nas características desses empréstimos. As taxas de juros, por exemplo, variavam de 3% a 7% a.a. Esses novos empréstimos possuíam finalidades diversas: cobertura de déficits orçamentários; recolhimento de papel-moeda; financiamento de obras específicas; aquisição de ativos fixos ou empresas; e pagamento de empréstimos compulsórios, dentre outras. Esta última finalidade cumpriu papel fundamental na política de financiamento da República, especialmente por intermédio do lançamento das obrigações de guerra,28 a partir de 1942, que influenciaram sobremaneira a evolução do estoque da Dívida Interna Fundada (Gráfico 2). 24 Referências principais desta subseção: Andima (1994), Leão (2003) e Neto (1980). 25 Este lançamento foi realizado para atender a obras no porto do Rio de Janeiro. 26 Neste mesmo ano, regulamentou-se também a possibilidade de substitutir títulos nominativos por títulos ao portador (Lei nº 3.232, de 15/01/1917). 27 “Os poucos títulos que não foram trocados (menos de 1%) perderam sua validade legal e prescreveram em cinco anos, ou seja, em 31 de dezembro de 1907, conforme dispunha o Decreto nº 857, de 12 de novembro de 1851” (LEÃO, 2003). 28 “As obrigações de guerra foram subscritas por empréstimo compulsório incidente sobre 3% do salário das pessoas físicas a ser recolhido pelo empregador e de importância igual ao imposto de renda a pagar dos contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, para subscrição de obrigações de guerra, até o limite global de 3 milhões de contos de réis. Os comprovantes do recolhimento seriam trocados por obrigações de guerra. Estas também poderiam ser subscritas voluntariamente, o que foi feito por muitas pessoas para escaparem da pecha de serem considerados simpatizantes do eixo” (LEÃO, 2003). 46 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 2. Saldo em circulação de apólices e obrigações, 1889-1963 Fonte: Andima (1994)29 Observa-se que o total de títulos públicos em circulação cresceu praticamente 100% no período de 1942-1949, principalmente por conta de emissões de subscrição compulsória, e manteve-se relativamente constante até o final de 1963. De fato, a taxa de crescimento nominal no período 1950-1963 foi de apenas 1% a.a. (ANDIMA, 1994). Algumas tentativas de lançamento de títulos de forma voluntária a partir de meados da década de 1940 foram frustradas,30 e a única emissão relevante no período foram as subscrições compulsórias de Obrigações de Reaparelhamento Econômico, a partir de 1958.31 O recurso do governo à colocação de títulos de forma compulsória representava prova da situação difícil do crédito público no Brasil, após anos seguidos sem pagar os juros e resgatar os títulos em circulação. Além disso, a inflação crescente tornava insuficientes os juros pagos sobre as apólices da dívida (normalmente entre 5% e 7%), gerando rendimentos reais negativos e reduzindo a demanda por esses títulos. A estagnação da emissão voluntária de títulos públicos tornava mais complicado o financiamento dos déficits orçamentários crescentes, especialmente a partir de meados da década de 1950. Não dispondo do crédito público e nem sendo capaz de aumentar a carga tributária, o governo financiou a quase totalidade de seus déficits via emissão de moeda, aumentando as pressões inflacionárias (NETO, 1980). 29 Valores demonstrados em Cr$ milhões (padrão monetário vigente de 01/11/1942 a 12/02/1967), conforme Leão (2003). O Anexo 1 apresenta um sumário dos padrões monetários brasileiros. 30 Por exemplo, o governo tentou, sem êxito, emitir 6 bilhões de títulos em 1959 e 140 bilhões em 1962 para financiar o déficit público (LEÃO, 2003). 31 A Lei nº 1.474, de 26/11/1951, criou um empréstimo compulsório, sob a forma de adicional do imposto de renda, a ser recolhido nos exercíos de 1952 a 1956 (a seguir prorrogada por mais dez exercícios pela Lei nº 2.973, de 26/11/1956), para formar um Fundo de Reaparelhamento Econômico, a ser administrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, até o limite de 10 bilhões de cruzeiros. A restituição do empréstimo seria feita, seis anos após seu recolhimento, em Obrigações do Reaparelhamento Econômico. Em consequência, os títulos só começaram a ser emitidos no final de 1958 (LEÃO, 2003). 47 Tabela 4. Brasil – financiamento dos déficits orçamentários do governo federal, 1954-1963 (Cr$ milhões correntes) Financiamento do déficit Colocação líq. de Emissão Anos Déficit letras e obrig. junto Outros* de moeda ao público 1954 4,0 3,8 -2,5 2,7 1955 5,7 7,7 0,0 -2,0 1956 23,9 24,4 0,2 -0,7 1957 41,2 38,4 0,0 2,8 1958 30,7 19,0 9,4 2,3 1959 40,5 31,9 8,9 -0,3 1960 76,6 75,4 7,2 -6,0 1961 137,5 128,9 1,5 7,1 1962 280,9 223,8 22,8 34,3 1963 504,7 424,4 55,5 24,8 Fonte: Neto (1980). Banco Central do Brasil – Relatório de 1965, p. 222. * Engloba os seguintes itens: Caixa do Tesouro Nacional junto ao Banco do Brasil S. A., empréstimos compulsórios e empréstimos de emergência. Se, por um lado, o governo não encontrava êxito em suas emissões primárias, por outro, podem ser destaca- das duas grandes operações de administração de passivo (ou consolidações) realizadas em 1956 e em 1962. Em 1956, o governo lançou uma lei de reestruturação do serviço da Dívida Interna Federal com o obje- tivo de padronizar a dívida e melhorar seu controle. Tal consolidação também foi influenciada por uma forte pressão de instituições financeiras que enfrentavam dificuldades em adquirir títulos em quantidade suficiente para atender a recolhimentos compulsórios. Um dos principais problemas era a grande fragmentação da dívida (existiam em circulação mais de 130 tipos de títulos, com impressões diversas e prazos longos). Assim, a consolidação de 1956 agrupou todos os empréstimos em circulação em quatro graus, uni- formizando o prazo de resgate para cada grau e estabelecendo novos prazos mínimos de amortização (21, 32, 36 e 68 anos, respectivamente para os graus de 1 a 4). Houve, no entanto, ao menos uma falha importante: os juros não foram uniformizados, mantendo-se vários títulos e com taxas de juros diferentes. Além disso, o prazo dos novos títulos era considerado muito longo pelo mercado financeiro. Em 1962, houve uma nova e mais completa consolidação. O governo lançou os chamados Títulos de Recuperação Financeira para unificar a dívida interna da União, substituindo todos os títulos da Dívida Interna Fundada Federal, excetuadas as obrigações de Reaparelhamento Econômico. Estes títulos também poderiam ser emitidos para cobrir déficits orçamentários, porém o governo não obteve êxito para esse fim. Já a troca foi bem-sucedida, e os juros foram unificados em 7% anuais. Em virtude da troca, a Dívida Interna Fundada Federal ao final de 1963 era composta exclusivamente desses novos títulos (Recuperação Financeira), das Obrigações de Reaparelhamento Econômico e dos comprovantes de empréstimos compulsórios, a serem trocados no futuro por títulos. 48 Dívida Pública: a experiência brasileira Um dos principais marcos da operação de consolidação de 1962 foi a introdução de uma nova forma de resgate, que passou a ser efetuado a partir do exercício seguinte ao de sua emissão, em vinte prestações anuais iguais, cada uma equivalente a 5% do valor nominal do título. Rompia-se, assim, uma tradição que vinha desde 1827, do resgate dos títulos públicos ser feito por compra, quando cotado abaixo do par, ou por sorteio de percentual do total da emissão, sendo os títulos adquiridos ou sorteados integralmente amortizados (LEÃO, 2003). 4.2 A dívida pública externa na República (até 1963)32 “Muito terá feito pela República o governo que não fizer outra coisa senão cuidar das suas finanças.” Este trecho do Manifesto Eleitoral de Campos Salles33 retrata a situação crítica das finanças nos primeiros anos da República (GUANABARA, 1902). De fato, o longo período de estabilidade e gradativo endividamento externo, vivido principalmente a partir da década de 1840 (conforme descrito na seção 3.2), foi interrompido temporariamente no início da República. Seguidas crises de balanço de pagamentos a partir da década de 1890 foram determinantes nesse período da história da dívida externa brasileira, marcado por uma sucessão de empréstimos de consolidação (funding loans), em 1898, 1914 e 1931. Embora as portas para a retomada do endividamento externo no médio prazo tenham sido abertas após os dois primeiros empréstimos de consolidação, o último significou apenas o início de uma longa sequência de negociações até o acordo permanente da dívida externa de 1943. O Brasil ficaria, a partir daí, ausente dos mercados financeiros privados por um longo período, ou seja, até o início do segundo ciclo do endividamento, em meados da década de 1960.34 Nesta seção examina-se a evolução da dívida externa brasileira, destacando-se esses eventos (em- préstimos de consolidação e acordo permanente). As Tabelas 5 e 6 servem de referência a essa análise, ilus- trando, respectivamente, os saldos do endividamento externo do setor público brasileiro (incluindo estados e municípios)35 e o impacto das seguidas crises de balanço de pagamentos em alguns dos principais indicadores de solvência externa. Destacam-se, por exemplo, a queda da razão dívida externa pública/exportações a partir do período de estabilidade no Brasil Imperial (reduzindo-se de 168% para 57% entre finais da década de 1830 até 1880-1881), e a rápida elevação dessa relação antes da virada do século, chegando a seu pico em 1930 (404%). 32 Esta subseção é baseada, principalmente, em Abreu (1999). 33 Campos Sales foi o quarto presidente da República (1898-1902) e o segundo eleito de forma direta (logo após Prudente de Morais, 1894-1898). 34 Sobre a definição dos ciclos de endividamento segundo Abreu (1999), ver nota de rodapé n. 14. 35 Os empréstimos estaduais e municipais correspondiam em 1895 a cerca de 4% do total; em 1930 essa proporção havia aumen- tado para cerca de 30% do endividamento externo total (ABREU, 1999). 49 Tabela 5. Saldos em circulação de empréstimos públicos externos brasileiros lançados antes de 1931, em milhões das respectivas moedas, 1825-1955 Libras* Francos* Dólares* Florins* Total em libras* 1825 4,1 0 0 0 4,1 1840 5,6 0 0 0 5,6 1865 13,0 0 0 0 13,0 1875 20,4 0 0 0 20,4 1885 23,2 0 0 0 23,2 1895 37,5 1,5 0 0 39,0 1900 42,4 1,5 0 0 43,9 1905 83,3 5,0 0 0 88,3 1913 129,1 902** 0 0 166,0 1920 135,2 900** 0 0 172,1 1930 163,0 1850*** 371,2 0 254,4 1940 152,6 748,8** 334,7 6,5 241,0 1950 51,9 1708**** 154,3 6,4 114,4 1955 28,4 411***** 99,2 3,6 64,7 Fonte: Abreu (1985); Abreu (1994), Brasil (1955) e Anuário Estatístico do Brasi,1952 e 1956. * Saldos em 31/12. ** Reestimativa provisória. Empréstimos em francos em 1920, considerados constantes desde 1913. *** Reavaliação para levar em conta a conversão francesa de 1928 e a sentença de Haia contra o Brasil (ABREU,1994). **** 1951. ***** 1956. Tabela 6. Dívida externa, 1830-1940* Dívida externa Exporta- Razão Serviço Razão Receita**** Razão Ano em contos de çõesFOB em dívida-ex- da dívida serviço-ex- serviço- réis** contos de portações externa em portações receita réis contos de total réis*** 1830 59013 35135 1,68 3289 0,0936 16779 0,1960 1840/1841 40995 57727 0,71 2087 0,0361 16311 0,1280 1850/1851 38181 67788 0,56 3547 0,0523 32697 0,1084 1860/1861 52281 123171 0,42 5151 0,0418 50052 0,1029 1870/1871 130660 168000 0,78 11044 0,0657 95885 0,1152 1880/1881 130995 230963 0,57 19696 0,0854 128364 0,1534 1890 328431 280665 1,17 16077 0,0573 195253 0,0823 1900 1471359 850339 1,73 37128 0,0436 307915 0,1206 1910 1929746 939413 2,05 149867 0,1595 882189 0,1699 50 Dívida Pública: a experiência brasileira Dívida externa Exporta- Razão Serviço Razão Receita**** Razão Ano em contos de çõesFOB em dívida-ex- da dívida serviço-ex- serviço- réis** contos de portações externa em portações receita réis contos de total réis*** 1920 3506408 1752411 2,00 231155 0,1319 1548168 0,1493 1930 11753476 2907354 4,04 857432 0,2929 3276171 0,2617 1940 16288024 4960538 3,28 205401 0,0414 4664813 0,0440 Fonte: Abreu (1999), dados básicos de Brasil em números 1960 * Até 1930, valor nominal dos títulos resgatados. Depois de 1930, valor de mercado. ** Fim do ano calendário. *** Ano calendário. **** Federal até 1900. União, estados e municípios a partir de 1910. A razão serviço da dívida-receita da União em 1910 era de 28,56%. A dívida externa até 1880 era exclusivamente federal. 4.2.1 1898 – o primeiro funding loan Conforme exposto, a economia brasileira enfrentou fortes dificuldades em seu balanço de pagamentos nos últimos anos antes da virada do século. Caiu o saldo da balança comercial, aumentou o serviço da dívida, diminuiu a entrada de novos empréstimos. O resultado foi uma vertiginosa queda da taxa de câmbio, de um nível por volta de 27 pences por mil réis em 1889 para 7 pences em 1898. A crise financeira do Brasil havia estimulado a busca de soluções que atenuassem a crise cambial (ABREU, 1999). Diante desse cenário, a suspensão de pagamentos do serviço da dívida já era de certa forma esperada internacionalmente.36 Além da sinalização expressa no Manifesto Eleitoral de Campos Salles (citada no início desta seção) em prol do saneamento financeiro da República, havia ainda a experiência argentina com a negociação de seu funding loan em 1891, que servia de inspiração para uma iniciativa semelhante do governo brasileiro. O funding loan de 1898 consistiu da emissão gradual de £ 8,6 milhões para fazer face ao serviço de juros dos empréstimos externos federais, do empréstimo interno em ouro de 1879 e de todas as garantias ferroviárias. Além disso, suspendiam-se as amortizações de todas as dívidas incluídas na transação (inclusive as provenientes dos novos títulos) por um período de 13 anos, ou seja, até 1911. Os novos títulos foram lançados ao par, com taxas de juros de 5% e amortização em cinquenta anos, iniciados após o período de suspensão descrito. Essas características explicam o comportamento do saldo em circulação do funding loan de 1898 apresentado na tabela a seguir. 36 “Diplomatas britânicos esperavam a suspensão de pagamentos relativos ao serviço da dívida desde o início de 1898. Em feverei- ro de 1898, N. M. Rothschild & Sons Limited foram visitados pelo delegado do Tesouro em Londres e sondados quanto à sua reação no caso de suspensão temporária dos fundos de amortização da dívida externa brasileira” (ABREU, 1999). 51 Tabela 7. Saldos em circulação de funding loans em libras e dólares, em milhões, 1898-1945 Funding loan Funding loan Funding loan Funding loan Funding loan 1898 libras 1914 libras 1931 libras 1931 libras 1931 dólares 20 anos 40 anos 20 anos 1898 1,4 0 0 0 0 1899 4,3 0 0 0 0 1900 7,2 0 0 0 0 1901 8,6 0 0 0 0 1913 8,5 0 0 0 0 1914 8,4 0 0 0 0 1915 8,4 6,2 0 0 0 1916 8,3 10,0 0 0 0 1917 8,2 13,1 0 0 0 1918 8,2 13,2 0 0 0 1919 8,1 13,8 0 0 0 1920 8,0 14,5 0 0 0 1930 6,9 14,2 0 0 0 1931 6,8 14,0 n.d. n.d. n.d. 1932 6,5 13,9 n.d. n.d. n.d. 1933 6,3 13,7 1,9 6,6 21,8 1934 6,2 13,6 2,6 7,9 29,5 1943 5,0 12,3 1,8 6,6 18,6 1944 4,7 11,2 1,5 5,1 16,4 1945 4,4 10,7 1,4 6,8 15,5 Fonte: Abreu (1999) e Brasil (1955) 4.2.2 1914 – o segundo funding loan Uma informação marcante, presente na Tabela 5, refere-se ao rápido crescimento do endividamento externo brasileiro nos primeiros 13 anos do século XX. A dívida quadruplicou nesse período, saltando de £43,9 milhões para £166 milhões. Esse aumento expressivo do saldo da dívida e a retomada do pagamento do seu serviço somavam-se a outros fatores que deterioravam o balanço de pagamentos a partir de 1912.37 Assim, uma série de negociações foram iniciadas em 1913. As dificuldades na negociação com diversos bancos e de nacionalidades diversas tornaram o processo moroso, sendo as negociações suspensas em 27 de junho de 1914, apenas um dia antes que a Áustria-Hungria declarasse guerra à Sérvia, e rapidamente se generalizasse a guerra na Europa (ABREU, 1999). 37 Exemplos apresentados por Abreu (1999) incluem: a redução das exportações de café (devido à queda de preços nos EUA) e de borracha (em virtude de competição com a produção asiática); e a dificuldade de lançamento de novos empréstimos internacionais com a deterioração política na Europa, especialmente nos Bálcãs. 52 Dívida Pública: a experiência brasileira O Brasil suspendeu o pagamento do serviço da dívida externa devido a partir de 1º de agosto de 1914 e passou a estudar condições para um novo empréstimo de consolidação. O segundo funding loan teria um capital nominal máximo de £ 15 milhões e, conforme o primeiro, novos títulos foram emitidos gradualmente ao par, com taxa de juros de 5% e 63 anos de prazo de amortização, com início de resgate em 1927. Também ficavam suspensas as amortizações de todos os empréstimos federais denominados em libras ou francos franceses até 01/08/1927 e os juros destes empréstimos que vencessem entre 01/08/1914 e 31/07/1917. 4.2.3 1931 – o terceiro funding loan A história que levou ao terceiro funding loan guarda semelhanças com a do funding loan anterior: rápido crescimento do endividamento externo a partir de 192538 (ainda que em proporções menores às observadas até 1913), seguido de fatores que deterioraram o balanço de pagamentos a partir de meados de 1928. O funding foi lançado em duas séries, ambas com taxa de juros de 5%, que previam resgate em vinte e quarenta anos, dependendo da garantia de cada empréstimo, cujos juros estavam sendo refinanciados. Para os empréstimos em dólares, foram lançados apenas títulos de 20 anos. O total do lançamento estava limitado a cerca de £ 18 milhões para refinanciar os juros dos empréstimos federais que vencessem a partir de outubro de 1931 por três anos (ABREU, 1999). 4.2.4 O acordo permanente de 1943 Conforme mencionado, o terceiro funding loan representou o primeiro passo de uma longa sequência de negociações até o acordo permanente da dívida externa de 1943. Nesse caminho, destacam-se os seguintes eventos: i) um acordo temporário em 1934 batizado de “esquema Aranha”, com vigência prevista de quatro anos, pelo qual o pagamento do serviço da dívida externa seria retomado a partir daquele ano; ii) o default de 1937, que teve como pretexto o golpe de novembro de 1937,39 interrompendo o “esquema Aranha” antes do previsto40; iii) outro acordo temporário (“esquema Souza Costa”) em 1940, também interrompido antes de sua duração prevista de quatro anos; e iv) a concretização do acordo permanente de 1943, que equacionou o pagamento do serviço da dívida externa contraída até 1931. A pressa em se buscar uma solução permanente, antes mesmo do término da vigência do “esquema Souza Costa”, partiu da constatação (pelo próprio Souza Costa) de que o Brasil estava mais uma vez exposto a dificuldades no financiamento do balanço de pagamentos.41 Conforme descrevem Cardoso e Dornbusch (1989), o acordo permanente consolidou toda a dívida externa brasileira, alongando seu prazo por quarenta a sessenta anos e reduzindo ambos, principal e juros. O plano ofereceu aos detentores de títulos duas opções:42 a opção A, que não incluía redução de principal, 38 “A peculiaridade da nova onda de endividamento foi a participação dos empréstimos em dólares, que corresponderam na década a 75% das entradas de recursos externos relativos a empréstimos no Brasil” (Tabela 5) (ABREU, 1999). 39 Em 20 de novembro de 1937, inicia-se o período ditatorial de Getúlio Vargas, que já era presidente da República desde 1930. Por intermédio de um golpe de Estado, Getúlio governou até 29 de outubro de 1945. Esse período republicano ficou conhecido por Estado Novo. Getúlio voltaria a ser presidente, então eleito, de 1951 a 1954 (quando se suicidou, interrompendo o mandato que iria até 1956). 40 Este é também o único episódio de default completo por parte do governo central brasileiro antes de 1987. 41 “Souza Costa percebeu no início de 1943 que, depois da guerra, as exportações brasileiras teriam problemas para se ajustar à competição em um mercado mundial normalizado, e que haveria pressões intensas sobre as reservas cambiais existentes para a importação de bens de capital essenciais, pelos quais havia uma forte demanda reprimida” (ABREU, 1999). 42 Esta proposta de troca, no início de 1946, havia sido consentida por 78% dos detentores – 22% escolheram a opção A, enquan- to os 56% restantes escolheram a opção B (CARDOSO e DORNBUSCH, 1989). 53 envolveria redução de juros com uma provisão para um sinking fund. Com isso, o serviço da dívida (juros mais o sinking fund) alcançaria de 2,9% a 5,9% do principal anualmente. A opção B envolveria redução de principal e de juros. Para cada $ 1,000 do título original, novos títulos com valor de face de $ 800 (ou $ 500 em alguns casos) e cupom de 3,75% eram emitidos. Além disso, os detentores receberiam pagamento em dinheiro de $ 75 a $ 175. Esses títulos não possuíam prazo fixo, mas um sinking fund. O serviço da dívida nesta opção (juros mais o sinking fund) somava 6,4% do principal. Essas condições implicaram redução de 50% do saldo da dívida externa em circulação (Tabela 5). Apesar da expressiva redução da dívida com a consolidação de 1943, o Brasil voltou a sofrer dese- quilíbrios em suas contas externas no início dos anos 1950 provocados por déficits comerciais elevados após o relaxamento de controles sobre importação durante a Guerra da Coréia. O crescimento explosivo do déficit em conta corrente secou as reservas internacionais, causando uma crise no balanço de pagamentos em 1952 (ABREU; FRITSCH, 1987). Como essas importações eram, em grande parte, financiadas por créditos comerciais, posteriormente rolados por empréstimos de curto e médio prazos, a dívida total externa (pública e privada) dobrou entre 1946 e 1953, alcançando mais de US$ 1 bilhão.43 A política de expansão de serviços de infraestrutura e industrialização, comandada pelo presidente Jus- celino Kubitschek em seu Programa de Metas (1957-1960), ampliou a demanda por importação de bens de capital, que foram financiados em grande parte via empréstimos de fornecedores com garantias do governo. Ao final de 1961, a dívida externa total já alcançava o dobro dos níveis de 1955, e a situação do balanço de pagamentos seguia crítica.44 Jânio Quadros, sucessor de Kubitschek, tentou restaurar o equilíbrio das contas externas. Porém, sua renúncia poucos meses após tomar posse renovou as pressões sobre a conta corrente em 1962. Os problemas econômicos (inflação, baixo crescimento econômico e crise no balanço de pagamentos) intensificaram-se durante a curta gestão do presidente Goulart, interrompida pelo golpe militar de 1964. Como veremos no capítulo a seguir, a gestão e as características das dívidas públicas interna e externa sofreram forte influência das reformas institucionais lançadas a partir de 1964. Inicia-se o segundo ciclo de endividamento externo brasileiro e um processo de desenvolvimento do mercado da dívida interna, o que nos ajuda a compreender a estrutura atual da dívida pública e sua evolução institucional. Referências ABREU, M de P. A dívida pública externa do Brasil, 1824-1931, Estudos Econômicos, 15 (2), 1985. ______. On the memory of bankers: Brazilian foreign debt, 1824-1943. 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Não só o estoque dessas dívidas sofreu considerável aumento, como suas estruturas passaram por grandes avanços, cujo entendimento é fundamental para se ter uma perfeita avaliação da situação do endividamento público brasileiro. A história da dívida pública é ainda particularmente interessante para melhor conhecer os diversos ambientes econômicos – internos e externos – enfrentados pelo país nos últimos anos, na medida em que tais eventos têm impacto direto sobre seu tamanho e sua composição. Este capítulo traça a evolução da dívida pública brasileira, não somente sob o aspecto quantitativo, mas também ilustrando os avanços obtidos sob o ponto de vista institucional. Embora do ponto de vista macroeconômico haja um claro inter-relacionamento entre os comportamentos observados nas dívidas interna e externa, ao se olhar para os eventos ocorridos percebe-se que ambas experi- mentam dinâmicas e fatos motivadores próprios. Por exemplo, as origens da crise da dívida externa no início dos anos 1980 estão concentradas eminentemente nos fatores externos, da mesma forma que a substancial elevação no estoque da dívida interna na segunda metade dos anos 1990 está intrinsecamente relacionada a fatores domésticos. Por esse motivo, e a despeito da óbvia conexão entre ambas as dívidas, para maior clareza de exposição optou-se por separar este capítulo em duas seções distintas, além desta Introdução. A segunda seção deste capítulo descreve a evolução da dívida interna, relacionando-a com os eventos macroeconômicos ocorridos no período. Ilustra, ainda, alguns aspectos institucionais relevantes ao se buscar melhor entender os fatos relacionados à Dívida Pública Federal interna (DPFi). A leitura desta seção é par- ticularmente interessante quando observamos que algumas decisões tomadas no passado possuem estreita relação com restrições atuais na política econômica. A terceira seção trata da evolução e dos eventos relacionados à dívida externa, mostrando as diversas etapas experimentadas pelo país e buscando explicar as razões da crise da dívida nos anos 1980, bem como sua superação e a retomada das emissões voluntárias, até culminar com o ambiente de relativa tranquilidade experimentado atualmente na administração da dívida externa.1 1 Séries históricas para os diversos indicadores da Dívida Pública Federal citados neste capítulo, bem como para os principais agre- gados econômicos do país encontram-se no Anexo Estatístico, ao final deste livro. Nele se pode encontrar uma excelente referência de dados para trabalhos futuros. 57 2 Dívida Pública Federal interna (DPFi) Segundo a literatura econômica, existem quatro objetivos básicos pelos quais é economicamente justificável a existência de dívida pública: (i) financiar o déficit público; (ii) propiciar instrumentos adequados à realização da política monetária (no caso específico da dívida interna); (iii) criar referencial de longo prazo para financiamento do setor privado, uma vez que as emissões públicas, dados seu alto volume e menor risco de crédito, servem como referência para a precificação de dívida privada; e (iv) propiciar a alocação de recursos entre gerações, na medida em que (a depender do prazo dos instrumentos de financiamento) à geração futura caberá o pagamento das despesas realizadas no presente com recursos oriundos do endividamento. Como será visto adiante, a história da administração da DPFi no Brasil representa uma evolução desses objetivos listados anteriormente, do primeiro ao último. O primeiro objetivo, ainda nos anos 1960, foi a criação de instrumentos que permitissem o financia- mento dos investimentos públicos sem que fossem geradas pressões inflacionárias. Ultrapassada essa fase, os esforços concentraram-se no sentido da criação de um instrumento mais adequado à realização da política monetária. A padronização e a colocação sistemática de títulos, já na década de 1990, criaram condições para o atendimento da terceira função da dívida pública e, no caso do Brasil, tendo em vista as turbulências por que passou a economia e as estratégias adotadas para se acessar o mercado, essa função nem sempre foi atingida. No que se refere ao quarto objetivo, apenas em 2000 foram dados passos mais efetivos nessa direção, com a emissão de títulos de vinte e trinta anos. Um ponto de inflexão marcante na história do endividamento público interno deu-se com a posse de Castello Branco na Presidência da República. Até 1964, as emissões tinham como objetivo o financiamento de projetos específicos. A partir daquele ano, o governo empreendeu uma série de reformas que vieram a alterar profundamente o mercado de capitais no Brasil e que buscavam assegurar os objetivos antes mencionados. Tais mudanças apresentaram, de fato, impactos significativos sobre a dívida pública, na medida em que, pela primeira vez, se buscou montar um mercado de títulos públicos de forma estruturada. Esta seção explica as razões históricas que levaram a Dívida Pública Federal interna a ter o padrão atual, tanto em termos de volume quanto de composição, e mostra que a evolução da DPFi no Brasil a partir de 1965 refletiu não somente as decisões de governo, mas foi profundamente influenciada pelos ambientes macroeconômicos de cada período. Esta seção será ainda subdividida em três subseções. A primeira, abrangendo o período que se inicia em 1964, contempla as medidas tomadas para desenvolver o mercado de capitais no Brasil, no intuito de permitir que a dívida pública pudesse atingir os objetivos antes elencados. A segunda se inicia em meados da década de 1980, quando a deterioração das contas públicas trouxe a necessidade de dar maior importância à questão fiscal, motivando novas mudanças institucionais. A terceira engloba os anos mais recentes e mostra os esforços da administração da dívida no sentido de aprimorar sua composição. 2.1 1964-1986: a construção de um mercado de dívida O ano de 1964 representou um marco na história brasileira, tanto do ponto de vista político quanto econômico. O governo Castello Branco estava determinado a gerar um padrão de desenvolvimento sustentável para o país, empreendendo, para isso, diversas políticas de modernização da economia. Para viabilizar essas intenções, em 1965 foi estabelecido o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), o qual tinha como um de seus objetivos a redução das taxas de inflação verificadas nos anos anteriores, redução esta a ser viabilizada por meio de política monetária restritiva e de ajuste fiscal. A amplitude das mudanças contempladas no Paeg 58 Dívida Pública: a experiência brasileira trazia a necessidade de reformas no sistema financeiro nacional e, dentro destas, o desenvolvimento de um mercado eficiente de títulos públicos. Entre os objetivos do Paeg, poderiam ser citados:2 (i) a obtenção de recursos adicionais para a cobertura dos déficits da União; (ii) o estímulo à poupança individual; e (iii) a criação de um mercado voluntário para os títulos públicos. Esses motivos deixam clara a importância que deveria ser dada à formação de um eficiente mercado de títulos públicos. Nesse contexto, foram introduzidas diversas modificações na economia brasileira, em particular em áreas que se relacionam diretamente com a dívida pública, como as reformas do sistema fiscal e do sistema financeiro. Cabe destacar a edição das Leis nº 4.357, de 16/07/1964, que criou a correção monetária, e nº 4.595, de 31/12/1964, que instituiu a reforma bancária, criou o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional (CMN).3 Conforme pudemos ler no capítulo anterior, até o advento dessas reformas, a dívida pública apresentava- se sob a forma de uma grande diversidade de títulos públicos, nominativos, emitidos para as mais diversas finalidades e com reduzida credibilidade junto ao público. Além disso, em meados da década de 1960, as taxas de inflação encontravam-se já na casa dos 30% anuais. A conjugação desses fatores veio contribuir para a necessidade de uma completa reformulação da política de endividamento público no Brasil. É interessante aqui observar que, na origem das medidas que buscavam o desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil, em especial quando da criação do Banco Central do Brasil, havia objetivos duplos no que se refere às políticas voltadas para a administração da dívida pública. As medidas tomadas tinham como meta básica a constituição de um mercado eficiente de títulos públicos para propiciar tanto a demanda para o financiamento dos déficits públicos quanto a viabilização das operações de política monetária. Entre as atribuições definidas para o Banco Central pela Lei nº 4.595 estava, em seu art. 10, “efetuar, como instrumento de política monetária”, operações de compra e venda de títulos públicos federais. De fato, ao final dos anos 1960, foram tomadas as principais medidas que propiciaram o desenvolvimento de um amplo mercado de títulos federais no país e que visavam, explicitamente:4 l à obtenção de recursos não inflacionários para a cobertura dos déficits orçamentários da União, assim como para a realização de investimentos específicos, não contemplados no orçamento;5 l à consolidação das operações de mercado aberto; l ao giro da Dívida Pública Mobiliária Interna da União. Dessa forma, cabia ao Banco Central a utilização de títulos públicos tanto para a realização de política monetária como para o financiamento da dívida pública. Uma das medidas destinadas a aprimorar o mercado de títulos públicos foi a instituição da correção monetária, a qual buscava evitar para o investidor as perdas advindas da crescente inflação. De fato, para atingir o objetivo de criar um mercado desenvolvido e líquido de títulos públicos, estes deveriam oferecer proteção contra a perda do poder aquisitivo da moeda, fazendo com que a escolha, pelo investidor, de um 2 Campos, 1994. 3 Vale mencionar que, a despeito da criação do Banco Central como autoridade monetária, o Banco do Brasil, já existente, também realizava funções típicas de política monetária, uma vez que tinha, na prática, poderes para criar moeda. 4 Banco Central – Gerência da Dívida Pública, Relatório de Atividades, 1972. 5 É interessante mencionar que essa época correspondeu a um grande crescimento da economia, de forma que obter recursos para investimento público era uma prioridade do governo. 59 título indexado à inflação fosse a solução natural. Assim, o primeiro instrumento padronizado de dívida pública foi a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), instituída legalmente pela Lei nº 4.357/64 e pelo Decreto nº 54.252/64. A criação dos títulos com correção monetária, na medida em que protegia os investidores das perdas representadas pela inflação, representou um grande impulso ao desenvolvimento do mercado de títulos públi- cos no Brasil. Conforme argumenta Garcia,6 The existence of indexed public debt held by private savers on a voluntary basis defined a bedrock for the development of financial markets in Brazil in the following years. Tendo em vista esse ambiente, a dívida pública apresentou, nesses anos, elevadas taxas de crescimento, tanto em volume absoluto quanto em percentual do PIB. Enquanto a DPFi representava cerca de 0,5% do PIB em 1965, terminou o ano de 1969 com participação próxima a 4%.7 Esse fato é ainda mais marcante ao se observar que a economia cresceu a taxas extremamente elevadas no mesmo período. A despeito do grande crescimento da dívida pública nesses anos, as emissões ainda não eram realiza- das em volume suficiente para atender às necessidades de cobertura dos déficits orçamentários. Conforme mostra a tabela a seguir, até 1968 o Banco Central era um importante financiador das necessidades fiscais do governo. (Em percentual do PIB) Fonte: Relatório de Atividades Bacen/Gedip, 1972 Apenas a partir de 1969 o financiamento para o público já era tal que excedia as necessidades fiscais do governo, cabendo ao crescente endividamento basicamente a tarefa de criar um eficiente mercado de títulos públicos para viabilizar a condução da política monetária. Vale ressaltar que a parcela do déficit não financiada por meio de emissão de títulos em mercado o era pela colocação de títulos para a carteira do Banco Central, que, dessa forma, funcionava como um financiador do governo. Como será argumentado adiante, esse aspecto particular no relacionamento entre as autoridades fiscal e monetária tem apresentado considerável evolução até os dias atuais. Percebe-se, então, que essa fase terminou com o primeiro dos quatro objetivos da dívida pública (finan- ciamento do déficit público) já tendo sido atingido, restando a criação de políticas que viabilizassem a obtenção do segundo objetivo, qual seja, propiciar instrumentos adequados para a realização da política monetária. 6 Garcia, 1998. 7 Andima, Séries históricas – dívida pública, 1993. 60 Dívida Pública: a experiência brasileira Àquela época, as ORTNs representavam o único instrumento disponível ao governo para execução tanto da política monetária quanto da política de dívida. Na medida em que o mercado ganhou volume suficiente no início da década de 1970, o Banco Central julgou importante a criação de outro título mais apropriado às funções de política monetária. Assim, foram editados o Decreto-Lei nº 1.079, de 29/01/1970, e a Resolução nº 150 do CMN, de 22/07/1970, que criava as Letras do Tesouro Nacional (LTNs) para fins de política monetária. Tais mudanças representaram um considerável avanço no mercado de títulos públicos no país. Segundo Edésio Ferreira: Nevertheless, there was still a need for complementary measures for the public debt security market to attain the objectives stipulated within the scope of monetary policy. There was therefore a need to establish a short- term security, not to make up for deficits on the handling of the debtor financing budgetary unbalances, but with necessary requisites to absorb possible surplus liquidity in the system, and even transforming it into a second-line reserve for the commercial banks through the mechanism of reserves exchange.8 Os anos do final da década de 1960 e início da década de 1970 foram particularmente positivos para o país. As taxas de crescimento da economia apresentavam níveis bastante elevados, seja para os padrões históricos brasileiros seja para os padrões internacionais,9 e a inflação apresentava níveis ainda inferiores aos observados na segunda metade da década anterior. Nesse contexto, fica fácil perceber o sucesso experimen- tado pela política de endividamento nos primeiros anos da década de 1970, o que fez do período um ponto singular na história da Dívida Pública Federal interna. Nesses anos, iniciou-se a emissão regular de títulos prefixados, inaugurando-se, inclusive, processo de colocação desses títulos por meio de oferta pública a preços competitivos (leilão). Ainda, nos primeiros anos da década de 1970, a participação das LTNs experimentou um vigoroso aumento no total da dívida, reflexo do maior uso desse instrumento na execução da política monetária, associado ao fato de que ele passou a ser mais ativamente usado por meio de operações de mercado aberto. De fato, enquanto ao final de 1970 as LTNs representavam apenas 5% do estoque da dívida, em 1972 já representariam 33,6% (e sua participação continuaria a crescer até a segunda metade da década). Nesse período, agora sim, a dívida pública passou a ser não somente um instrumento de financiamento do governo, como também uma importante aliada na condução da política monetária. Entretanto, a partir de meados da década de 1970, o país começou a sentir os efeitos do primeiro choque do petróleo. Em 1974, as taxas de inflação foram duplicadas em relação ao ano anterior, assim como as taxas de crescimento interromperam o padrão até então verificado para algo em torno de 5% a.a. À medida que a inflação ia aumentando, os investidores voltavam a preferir as ORTNs, que possuíam correção monetária, em detrimento das LTNs. Esse comportamento verificou-se durante todo o restante da década. Dessa forma, a participação dos instrumentos prefixados, que havia chegado a 52% em 1977, ao terminar a década encontrava-se em 41%, e cairia ainda mais nos anos seguintes. Na década de 1980, a situação agravou-se com a eclosão do segundo choque do petróleo em 1979. Nesse momento, a inflação atingiu patamares sem precedentes, alcançando a barreira dos três dígitos, e as taxas de crescimento da economia começaram a enveredar para o terreno negativo.10 Iniciava-se a chamada “década perdida”. Do ponto de vista da DPFi, a consequência foi a manutenção, durante toda a primeira metade dos anos 1980, da preferência dos investidores por ORTNs, dadas as expectativas com relação à inflação. Em paralelo, iniciou-se o processo de redução do prazo dos títulos prefixados ofertados ao mercado. 8 Ferreira, 1974. 9 No período de 1968 a 1974, a economia brasileira cresceu a uma taxa anual média de 10,8%. 10 Em 1981, auge da recessão, a economia chegou a cair 4%. 61 Ao final de 1983, as ORTNs já representavam novamente o principal instrumento de dívida pública em poder do público, constituindo 96% desta, ou seja, voltando aos mesmos níveis da década de 1960. Como efeito positivo desse movimento, pela troca de títulos prefixados (LTNs), mais curtos, por indexados à inflação (ORTNs), mais longos, verificou-se o aumento do prazo médio da dívida, que passou de 15 meses em 1972 para 26 meses ao final de 1983. As soluções encontradas àquela época para lidar com a dificuldade de refinanciamento dos títulos em mercado foram, concomitantemente, a redução dos seus prazos e a maior colocação de instrumentos pós- fixados, sem contemplar, ainda, soluções alternativas às tradicionalmente utilizadas, o que viria a acontecer em 1986. Os anos de 1984 e 1985 apresentaram crescimento mais acentuado, com o país se expandindo a 5,4% e 7,8%, respectivamente. Apesar disso, o déficit público não foi controlado, e o recrudescimento da inflação obrigou o governo a implementar uma política monetária restritiva, levando as taxas reais de juros a pata- mares historicamente altos (em torno de 10% a.a.). O insucesso no combate à inflação pelas vias ortodoxas começava a estimular o desenvolvimento de alternativas para se lidar não só com a inflação, mas também com o endividamento público. Ainda, a situação fiscal implicava a necessidade de se reforçar a estrutura institucional, com o intuito de conter os elevados déficits públicos. Cabe destacar que, em 1985, embora os instrumentos ofertados em mercado continuassem sendo os mesmos leiloados no início da década (LTN e ORTN), seus prazos apresentaram redução e suas taxas passaram a refletir a crescente inflação. Ainda mais relevante, os dados de composição da dívida indicaram uma sensível alteração, de forma que, ao final daquele ano, as ORTNs representavam 96,6% do total da dívida em poder do público, ante 58,8% em 1979. Da mesma forma, o prazo médio, que chegou a atingir 31,2 meses em abril de 1983, passou para 10,4 meses ao final de 1985, o menor valor observado até então. Vale mencionar que essa política só foi possível tendo em vista o relativamente reduzido estoque de dívida.11 Caso o nível de endividamento fosse elevado, uma redução em seu prazo poderia levar à percepção de insolvência por parte dos demandantes de títulos públicos, agravado pelo fato de que o país estava vivendo uma crise cujas dimensão e duração não eram ainda conhecidas. 2.2 A dívida pública interna após 1986 e as mudanças institucionais As dificuldades fiscais existentes em meados da década de 1980 acarretaram a necessidade de mudan- ças na estrutura institucional da área fiscal. O ano de 1986 representou um marco fundamental no aspecto institucional da administração da dívida pública brasileira, com a adoção de medidas profundas visando a um maior controle fiscal, como a extinção da Conta Movimento12 – utilizada para o suprimento dos desequilíbrios de fundos do Banco do Brasil pelo Banco Central. Decidiu-se ainda pela criação da Secretaria do Tesouro Nacional, por meio do Decreto nº 92.452, de 10/08/1986, visando a centralizar o controle dos gastos públicos e, especialmente, a viabilizar seu controle mais efetivo. A maior preocupação com a necessidade de controle e monitoramento da dívida interna, a qual vinha apresentando elevado crescimento nos anos anteriores em virtude da precária situação fiscal, aliada à percepção de que se fazia necessária uma distinção institucional entre as políticas monetária e de dívida 11 Naquele momento, a relação dívida/PIB era inferior a 10%. 12 A “Conta Movimento” possibilitava criação de moeda por parte do Banco do Brasil e, portanto, tornava esta instituição, na prática, uma autoridade monetária paralela ao Banco Central. 62 Dívida Pública: a experiência brasileira acarretaram a transferência da administração da dívida pública do Banco Central para o Ministério da Fa- zenda. O Decreto nº 94.443, de 12/06/1987 determinou a transferência das atividades relativas à colocação e ao resgate da dívida pública para o Ministério da Fazenda, onde essa função ficou a cargo da Secretaria do Tesouro Nacional. Entre as funções dessa secretaria, regulamentadas pela Portaria MF nº 430, de 22/12/1987, estava explicitamente: [...] efetuar o controle físico/financeiro da dívida emitida [...] determinar os títulos e os volumes das Ofertas Públicas, inclusive elaborando e publicando os editais, em estreito relacionamento com o Banco Central do Brasil [...] e [...] administrar o limite de colocação dos títulos [...] Nesse contexto, e visando a separar ainda mais as atribuições de autoridade monetária e fiscal, foi elaborado o Decreto-Lei nº 2.376, de 25/11/1987, que estabelecia medidas de controle sobre a dívida pública, a qual só poderia ser elevada para cobrir déficit no Orçamento Geral da União (OGU), mediante autorização legislativa, e para atender à parcela do serviço da dívida não incluída no referido OGU. A despeito da separação de funções e da criação da Secretaria do Tesouro Nacional, este mesmo Decreto-Lei nº 2.376 estabeleceu que: “[...] se o Tesouro Nacional não fizer colocação de títulos junto ao público, em valor equivalente ao montante dos que forem resgatados, o Banco Central do Brasil poderá subscrever a parcela não colocada”. Em outras palavras, embora fosse um avanço institucional em relação à prática anterior, qualquer que fosse a necessidade de rolagem, esta seria passível de financiamento via Banco Central, bastando para isso que o mercado se recusasse a dar o financiamento. O insucesso das políticas levadas a cabo pelo governo até então para o combate à inflação conduziu o governo a tentativas mais “heterodoxas”, que acabaram por influenciar as estratégias de administração da dívida nos anos seguintes. Logo no início de 1986, o país viveu a primeira experiência heterodoxa de combate à inflação. No início daquele ano, a elevação das taxas de inflação e do endividamento público eram motivo de preocupação para o governo, levando-o a adotar, em 28 de fevereiro, o Plano Cruzado, o qual congelou preços, decretou o fim da correção monetária e reduziu as taxas reais de juros. Essas medidas, aliadas à necessidade de reduzir os déficits fiscais, levaram o Banco Central, e não o mercado, a absorver as novas emissões de dívida, conforme permitido pela legislação em vigor, antes descrita.13 Tendo em vista a dificuldade na colocação de LTNs e a impossibilidade de colocação de ORTNs (agora denominadas OTNs) em mercado, dada a desindexação da economia por conta da extinção da correção monetária, o Banco Central optou por criar um título de sua responsabilidade. Assim, em maio de 1986, a falta de opções de instrumento levou o Conselho Monetário Nacional a autorizar a autoridade monetária a emitir títulos próprios para fins de política monetária. Foi então criada a Letra do Banco Central (LBC), a qual tinha como característica ímpar o fato de ser remunerada pela taxa Selic, com indexação diária.14 A ideia era limitar as emissões de LBCs ao volume de títulos de responsabilidade do Tesouro Nacional existente na carteira do Banco Central. Naturalmente, dadas as características do novo título e a conjuntura econômica da época, sua aceitação pelo mercado foi enorme. Considerando o sucesso na colocação das LBCs, aliado à referida falta de opção de instrumentos de financiamento, e considerando a nova diretriz de separação das atividades fiscais e monetárias, o governo aproveitou a edição do já citado Decreto-Lei nº 2.376/87 e criou as Letras Financeiras do Tesouro (LFTs). Tais títulos possuíam características idênticas às da LBC, sendo de responsabilidade do Tesouro Nacional e destinados especificamente para financiamento dos déficits orçamentários. 13 Nos anos de 1986 e 1987, a dívida na carteira do Banco Central atingiu respectivamente 68% e 72% do seu estoque total. 14 A taxa Selic é a taxa média ponderada das operações compromissadas por um dia, lastreadas em títulos públicos federais. 63 É importante avaliar sob uma perspectiva histórica o impacto da iniciativa de emitir títulos atrelados à taxa de juros diária. Como será mencionado adiante, esses títulos passariam a representar parcela considerável da DPFi, funcionando como um importante instrumento do governo na manutenção de sua capacidade de financiamento. Com o insucesso do Plano Cruzado, o ano de 1987 marca o início de dificuldades ainda maiores na condução da política econômica, com o déficit público saindo do controle, além de problemas na área ex- terna. De fato, a moratória da dívida externa ocorrida em fevereiro daquele ano gerou maior necessidade de financiamento via dívida interna. Com a promulgação da Constituição em 1988, o Banco Central, que naquele momento estava proibido de emitir títulos, ficou também impedido de financiar o governo. Pela nova sistemática, o Banco Central só poderia adquirir títulos diretamente do Tesouro Nacional em montante equivalente ao principal vencendo em sua carteira. Tinha-se chegado assim à clássica forma de relacionamento entre autoridade monetária e auto- ridade fiscal. Posteriormente, em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal tornou ainda mais rígida a legislação, ao estabelecer que as colocações para a carteira do Banco Central só poderiam ser efetuadas à taxa média do leilão realizado, no dia, em mercado, regra esta que permanece até os dias atuais.15 A despeito dos sucessivos choques heterodoxos introduzidos na economia desde 1986, as taxas de inflação permaneciam em níveis bastante elevados, assim como a incerteza em relação ao futuro próximo. Dessa maneira, em 1988 e 1989 praticamente não houve colocação de LTNs nem mesmo para a carteira do Banco Central, ilustrando o difícil momento pelo qual passava o país. Por sua vez, o financiamento público começou a ser efetuado com emissão de LFTs, sendo tal título durante esses dois anos praticamente a única forma de arrecadação de recursos, via emissão de títulos, para o governo. Nesse período, é interessante notar que esse instrumento de origem heterodoxa passava a ser fundamental para a solvência do país. Sua inexistência implicaria a necessidade de emissão de LTNs em prazos cada vez menores, o que levaria a aumento considerável no risco de refinanciamento da dívida. A criação das LBCs, primeiramente, e a seguir das LFTs mostra que a busca por soluções não tradicio- nais para os problemas econômicos foi usada também na administração da dívida pública. A despeito disso, o prazo da dívida não foi alterado com a emissão desse instrumento de repactuação diária, de forma que, ao final da década, o prazo médio da dívida continuou reduzido, enquanto o percentual desta sobre o PIB representava o maior valor registrado até aquela data, indicando o crescente grau de vulnerabilidade do país ante as necessidades de refinanciamento. Ao se iniciar o novo governo,16 em 1990, a situação do endividamento público era crítica, com o estoque de títulos em mercado representando 15% do PIB, recorde histórico, sendo a dívida composta praticamente por LFTs e com prazo médio de apenas cinco meses. Além disso, a inflação encontrava-se em níveis superiores a 1.000% ao ano, e o déficit primário havia atingido 1% do PIB no ano anterior.17 Tendo em vista esse pano de fundo, o governo do presidente Collor iniciou-se com o objetivo explícito de dar fim ao processo inflacionário e ao descontrole fiscal vivido pelo país nos últimos anos. O desgaste da política econômica mencionado anteriormente e a crítica situação da dívida pública daí decorrente conduziram 15 Nos primeiros anos, o Banco Central enviava propostas seladas aos leilões, agindo como se fosse mais uma instituição financeira. Posteriormente, a sistemática foi alterada, de forma que o Banco Central poderia receber em títulos a diferença entre o volume ofertado em leilão e o volume efetivamente colocado em mercado. 16 Em 15 de março de 1990, o então presidente José Sarney passou a faixa presidencial para Fernando Collor de Melo, primeiro presidente eleito pelo voto popular em quase trinta anos (o último havia sido Jânio Quadros, empossado em 31 de janeiro de 1961), após um longo período de eleições indiretas de presidentes militares. 17 Para maiores detalhes sobre a evolução das estatísticas macroeconômicas da época, ver Anexo Estatístico, ao final do livro. 64 Dívida Pública: a experiência brasileira às drásticas medidas representadas pelo Plano Collor em 1990, o qual, entre outras, determinou o congela- mento de 80% dos ativos financeiros do país, representando, para a dívida pública, impacto sem precedentes. Com esse artifício, o governo promoveu a troca compulsória da dívida em poder do mercado por outra, retida por 18 meses no Banco Central, rendendo BTN18 + 6% a.a. Ou seja, o estoque, antes remunerado pela taxa Selic, passou a ser remunerado a uma taxa muito inferior, gerando ganhos consideráveis para o governo. Além disso, a medida causou uma profunda redução na liquidez da economia, de forma que o Banco Central se viu forçado a recomprar as LFTs ainda em mercado. Esses dois fatos, aliados ao superávit primário obtido no primeiro ano do novo governo (mais de 4% do PIB), acabaram por conduzir a uma queda histórica no estoque da dívida em poder do público, de 82,5% em 1990. Em 1991, com a inflação ascendente e dificuldade para emissão de LTNs, dada a credibilidade perdida pelo governo por conta do congelamento de ativos representado pelo Plano Collor, o Banco Central optou por criar um instrumento com características idênticas para fins de política monetária, o Bônus do Banco Central (BBC), instituído pela Resolução nº 1.780, de 21/12/1990. Nos primeiros meses de 1991, apenas esse título era ofertado ao público. A partir de setembro de 1991, os valores referentes aos ativos congelados começaram a ser devolvidos, e, a partir de outubro, os recursos para pagá-los eram obtidos com novas emissões de títulos. Ao final do ano de 1991 foi criado um novo instrumento, regulamentado pelo Decreto nº 317, de 30/10/1991 e de- nominado Notas do Tesouro Nacional (NTNs), com diversas séries, a depender do indexador utilizado. Dentre os mais comuns destacam-se o dólar (NTN-D), o IGP-M (NTN-C) e a TR (NTN-H). Buscava-se diversificar os instrumentos para tentar ampliar a base de investidores, tentando garantir os recursos para pagamento das BTN-Es vincendas. A criação dessa diversidade de instrumentos reflete não apenas as turbulências passadas pela economia doméstica ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990, mas também a heterodoxia então dominante no plano macroeconômico. Buscando dar mais um passo na direção da separação entre as atividades fiscais e monetárias iniciada na década anterior, em 1993 foram propostas algumas medidas, conhecidas como “Operação Caixa-Preta”. Tais medidas buscavam propiciar maior transparência no relacionamento entre o Tesouro Nacional e o Banco Central, efetuando, entre outras mudanças, a reestruturação da carteira de títulos de responsabilidade do Tesouro Nacional no Banco Central, dotando a autoridade monetária de instrumentos mais adequados à con- dução da política monetária. Outra medida foi o resgate antecipado de títulos do Tesouro Nacional na carteira do Banco Central, com recursos obtidos via emissão de títulos do Tesouro em mercado, sendo um dos fatores responsáveis pela queda de 24% no estoque da carteira de títulos em poder do Banco Central naquele ano. Ao longo desses anos da década de 1990, o governo continuava tentando debelar a inflação, que, naquele momento, já superava a casa dos 1.000% ao ano. Enquanto isso, as taxas de crescimento da econo- mia continuavam muito baixas, com o país apresentando crescimento médio real negativo de 1,3% de 1990 a 1993. Buscando dar um fim a essa situação, em 1994 era lançado mais um plano heterodoxo, conhecido como Plano Real. Este partia do mesmo princípio dos planos anteriores, isto é, que existia um componente inercial na inflação brasileira, mas dessa vez buscava-se conciliar a esse aspecto alguns componentes da cartilha ortodoxa, como a manutenção de elevadas taxas reais de juros. Dessa vez a receita foi bem-sucedida e o país pôde, após muitos anos, viver momentos de inflação em níveis razoáveis e cadentes. A partir de 1995, a previsibilidade começava a voltar a fazer parte do cotidiano dos agentes econômicos. Certamente, esse aspecto iria impactar, de alguma forma, a estrutura da dívida pública interna. 18 As BTNs foram criadas em 1989 como instrumento de indexação da economia e eram corrigidas por um índice de inflação de- nominado Índice de Preços ao Consumidor (IPC), do IBGE. 65 Entretanto, a despeito do relativo sucesso na estabilização da inflação, a partir daquele ano a dívida começou a apresentar trajetória forte de elevação, o que pode ser explicado pela conjugação de alguns fatores, dentre eles: (i) a rígida política monetária da época, a qual acarretou uma taxa real de juros média no período extremamente elevada; (ii) o reduzido superávit primário, que se apresentava até negativo para alguns entes de governo; e (iii) a política de propiciar maior transparência às contas públicas, reconhecendo vários passivos que antes se encontravam disfarçados, como, por exemplo, o programa de saneamento das finanças estaduais e municipais e a capitalização de alguns bancos federais.19 De fato, nessa segunda metade da década de1990, a DPMFi em mercado cresceu em média, em termos reais, à taxa de 24,8% a.a. Na segunda metade da década de 1990, o reduzido prazo médio da dívida, aliado à política de maior transparência fiscal (contabilização dos “esqueletos” no estoque da dívida), fazia com que o alongamento passasse a ser parte fundamental na estratégia de endividamento. Por essa razão, em que pese o sucesso na estabilização econômica, as mudanças na estratégia de endividamento ao longo dos anos seguintes foram reflexo preponderantemente das turbulências por que passou a economia internacional no período. Nos primeiros anos após o Plano Real, o governo logrou melhorar substancialmente a composição da dívida. Com a estabilidade econômica, ele elevou os volumes emitidos de LTNs, assim como paulatinamente buscou aumentar seus prazos ofertados em leilão, que passaram de um mês para dois e três meses de prazo. Em 1996, apenas LTNs de seis meses de prazo passaram a ser ofertadas em mercado. Os prazos desses títulos continuaram a ser elevados até que, ao final de 1997, o Tesouro Nacional conseguiu colocar em mercado títulos prefixados com dois anos de prazo. Após a eclosão da crise da Ásia, a opção imediata foi pela redução nos prazos, quando voltaram a ser ofertadas LTNs de três meses. Até esse momento, o governo tinha resistido a recorrer às LFTs. Apenas após a crise da Rússia o Tesouro Nacional decidiu voltar a emitir esse instrumento, interrompendo, momentaneamente, a emissão de títulos prefixados. Ao longo desse período, a participação das LTNs, que se encontrava em menos de 1% ao final de 1994, passou para 27% em 1996, enquanto o estoque das LFTs chegou a desaparecer nesse mesmo ano. Entretanto, já a partir de 1997, com a eclosão da crise asiática e a despeito do sucesso na manutenção da estabilidade econômica, os avanços obtidos foram sendo revertidos, de forma que, ao final de 1998, o estoque de prefixados chegaria a apenas 2% do estoque total, enquanto as LFTs voltavam a representar quase metade desse estoque total. Um dos motivos que explicam a não recuperação dos papéis prefixados na participação da dívida é, como esta cresceu muito, o aumento da percepção de risco de refinanciamento, de forma que o prazo médio desta teve de ser aumentado para não prejudicar a percepção do mercado quanto à sustentabilidade da dívida pública. Dessa forma, evitou-se colocar títulos prefixados com prazos inferiores a seis meses, privilegiando instrumentos pós-fixados (em especial as LFTs) mais longos. Tal processo foi ajudado com a mudança no regime cambial em 1999, que, ao reduzir a volatilidade das taxas de juros, fez com que o risco de mercado da dívida pública, sob a ótica do governo, fosse também reduzido. De fato, a partir de 1999, o prazo das LFTs ofertadas em leilão foi aumentado para dois anos, enquanto as LTNs voltaram a ser emitidas com prazos de três e seis meses. O ponto a destacar quanto a esse período é que, apesar do grande avanço representado pela esta- bilização da economia, seus efeitos sobre a dívida pública em termos de composição dos instrumentos não se fizeram sentir tão fortemente como seria esperado. As expressivas emissões diretas representadas pelo reconhecimento dos passivos contingentes (fundamental para um saneamento definitivo das contas públicas), 19 O box ao final desta seção descreve resumidamente tal programa. 66 Dívida Pública: a experiência brasileira aliadas às altas taxas de juros necessárias à consolidação da estabilidade, fizeram com que o estoque da dívida pública crescesse brutalmente no período. Esse fato gerou a necessidade de que seu prazo médio fosse elevado para evitar que o risco de refinanciamento a cada período ficasse muito grande. Também a partir de 1999 o governo voltou a emitir títulos indexados a índices de preços (IGP-M). O objetivo era reforçar o processo de alongamento da dívida pública, aproveitando uma elevada demanda potencial representada pelos fundos de pensão. Desde então, tem-se observado um esforço no sentido de obter contínua melhoria no perfil da dívida federal interna, seja em termos de aumento do prazo, seja de uma maior qualidade na composição desta, buscando-se a redução na participação de títulos indexados à taxa de câmbio e à taxa Selic, o que vem acontecendo com sucesso desde 2003. Ao final da década de 1980, dada a precária situação fiscal do país, o governo federal possuía dívidas con- tratuais vencidas com diversos credores. O processo de saneamento das contas públicas implicava encontrar uma solução para essa situação. No início dos anos 1990, o governo deu início a um processo de reestruturação dessas dívidas por meio de sua securitização. Nesse processo, débitos oriundos da assunção de dívidas de estados e de empresas estatais foram repactuados e transformados em títulos públicos emitidos para os credores originais. Enquanto representou um benefício para o governo, na medida em que permitiu a adaptação dos fluxos de pagamentos à sua capacidade de pagamento, contribuiu para o resgate da credibilidade do setor público como devedor. Para o credor, representou transformar uma dívida contratual, portanto sem liquidez, em instrumento pas- sível de negociação em mercado secundário. O Tesouro Nacional registrou os títulos emitidos para refinanciamento da dívida dos estados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, do Banco Central (Selic) e os referentes à assunção da dívida das empresas estatais, denominados Créditos Securitizados, na Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (Cetip), onde estão custodiados, sendo livremente negociados em mercado secundário. Ainda nos anos 1990, os Créditos Securitizados foram, em conjunto com outros títulos da dívida pública, utilizados como moeda de pagamento no programa de privatização das empresas estatais, sendo, portanto, parte daquele conjunto de instrumentos que ficou conhecido como “moedas de privatização”. Em 1999, e dentro do processo de padronização dos instrumentos de dívida pública, o Tesouro Nacional passou a aceitar tais títulos como meio de pagamento na segunda etapa dos leilões de NTN-C e, mais recentemente, nos leilões de NTN-B. Não obstante essa possibilidade, o estoque dos Créditos Securitizados tem aumentado, em virtude, principalmente, da emissão regular de CVS, título que tem como origem a securitização de dívidas decorrentes do Fundo para Compensação das Variações Salariais (FCVS). 2.3 Os esforços para a melhoria do perfil da dívida A partir de 2003, com a melhora na percepção dos investidores quanto ao rumo da economia, tendo em vista a postura do novo governo em manter a responsabilidade fiscal e as políticas monetária e cambial, iniciadas na segunda gestão do governo anterior, foi possível observar consideráveis avanços na administração da dívida pública. De fato, ao final de 2002, a participação de títulos indexados à taxa Selic na dívida interna era de 60,8%, enquanto a participação de prefixados era de apenas 2,2%, e os títulos cambiais representavam 22,4%. A partir desse período, a administração da dívida passou a adotar diversas práticas visando ao 67 desenvolvimento do mercado.20 Uma das medidas foi a adoção da concentração de vencimentos em datas específicas, objetivando o aumento da liquidez dos instrumentos. Reduziu-se o número de vencimentos ao tempo em que se aumentava o volume emitido para cada um deles. Para minimizar o risco de refinanciamento que seria gerado com a medida já citada, o Tesouro Nacional passou a implementar leilões de compra antecipada de títulos prefixados. Foram também instituídos leilões de recompra de títulos indexados à inflação, como forma de estimular a compra destes pelo mercado. Isto é, passava-se a dar aos detentores desses papéis a possibilidade de saírem de suas posições se assim desejas- sem. Também se iniciou a emissão de NTN-B, título indexado ao IPCA, que representa hoje parte significativa da composição da dívida pública. Em 2003, foram emitidos, pela primeira vez, títulos prefixados mais longos, com pagamentos de cupons periódicos de juros (NTN-F). Essa prática buscava o alongamento da dívida prefixada e alinhava-se aos pro- cedimentos adotados nos países cujos mercados eram mais desenvolvidos. Também naquele ano, mudou-se o sistema de dealers, antes sob responsabilidade exclusiva do Banco Central, buscando compatibilizar os direitos e os deveres com o objetivo de desenvolvimento de um mercado de títulos públicos. Foram criados dois grupos, “primários” e “especialistas”, cujos objetivos básicos são, respectivamente, adquirir títulos nos leilões e negociar tais títulos no mercado secundário. No ano seguinte, novas mudanças continuaram sendo feitas para facilitar o alcance das diretrizes defini- das no Plano Anual de Financiamento, em particular a implementação da Conta Investimento e da tributação decrescente. Em 2006, o governo daria mais um passo no sentido de estimular o alongamento e a prefixação da dívida, qual seja, a isenção de Imposto de Renda sobre ganhos de capital para investidores estrangeiros, via edição da Medida Provisória nº 281, posteriormente convertida na Lei nº 11.312, de 27/06/2006. Como esses investidores têm perfil de aplicação mais longo, tal isenção permitiu aceleração no movimento de aumento do perfil da dívida interna, via compra de NTN-Fs e NTN-Bs de prazos mais elevados. Em 2007, ajudado pela demanda dos investidores estrangeiros, o Tesouro Nacional emitiu o primeiro título prefixado com prazo de dez anos, a NTN-F 2017, representando um marco na gestão da dívida pública. Ao longo de todo o ano, esse título foi emitido regularmente nos leilões semanais (à exceção de períodos com maior volatilidade, por conta do cenário externo). Em 2008, com o agravamento da crise no mercado internacional, a política de administração de dívida adotou postura mais conservadora em termos de composição da dívida, buscando não adicionar volatilidade ao mercado. Dessa forma, observou-se, ao final do ano, redução na participação dos títulos prefixados e aumento na participação dos títulos indexados à taxa Selic. É importante, entretanto, ressaltar que, apesar da referida volatilidade, houve progresso em termos de redução de risco de refinanciamento, com melhorias nos indicadores prazo médio e percentual vincendo em 12 meses. A tabela a seguir ilustra o enorme avanço que as práticas mostradas anteriormente representaram em termos de aprimoramento na estrutura da dívida pública no Brasil ao longo dos últimos anos. 20 Tais políticas são descritas em mais detalhes no Capítulo 1 da Parte 3. 68 Dívida Pública: a experiência brasileira Evolução recente da Dívida Pública Federal Do ponto de vista microeconômico, a história descrita ilustra a enorme dificuldade do governo em alongar o prazo da dívida e aumentar a participação dos instrumentos prefixados, em substituição aos indexados pela taxa Selic. Parece ser consenso entre os analistas que a razão deste fato está na cultura da indexação diária, consequência do histórico de inflação elevada e da convivência com a indexação. A quebra desse paradigma é essencial para que a estrutura da dívida pública doméstica no Brasil possa assemelhar-se àquela encontrada nos países desenvolvidos. Indicadores 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Estoque da DPF* em mercado (R$ bilhões) 965,8 1.013,9 1.157,1 1.237,0 1.333,8 1.397,0 Prazo médio da DPF** 3,3 2,9 2,8 3,0 3,3 3,5 % vincendo em 12 meses 30,7 39,3 36,3 32,4 28,2 25,4 Participação no estoque da DPF (%) Prefixado 9,5 16,1 23,6 31,9 35,1 29,9 Índice de preços 10,3 11,9 13,1 19,9 24,1 26,6 Selic 46,5 45,7 43,9 33,4 30,7 32,4 Câmbio 32,4 24,2 17,6 12,7 8,2 9,7 TR e outros 1,4 2,2 1,8 2,0 1,9 1,4 * Inclui a dívida doméstica e a dívida externa de responsabilidade do Tesouro Nacional **Em anos O grande desafio para os próximos anos, em paralelo à manutenção de superávits fiscais que garantam a redução da dívida, consiste exatamente em lograr êxito em relação à composição da dívida interna, de forma que seja alcançada uma melhora na percepção dos investidores, contribuindo para a consolidação do movimento de redução das taxas de juros. Tal mudança estrutural impulsionaria um círculo virtuoso e faria com que a dívida pública fosse vista como uma fonte eficiente de canalização de recursos para investimentos públicos e referência para emissões de títulos privados. 3 Dívida Pública Mobiliária Federal Externa Assim como as políticas de administração da dívida interna responderam aos eventos macroeconômicos domésticos, os eventos sobre a dívida externa foram reflexo dos fatos ocorridos com a economia internacional, a qual experimentou várias fases distintas dos anos 1960 até hoje. De 1964 até o primeiro choque do petróleo, em 1973, e mesmo após este, a economia internacional vivia uma fase de liquidez abundante, o que propiciou a continuação do endividamento externo. Entretanto, em 1979, com o segundo choque do petróleo, as taxas de juros internacionais elevaram-se abruptamente, gerando escassez de recursos externos, o que acabou por acarretar a crise da dívida externa dos países em desenvolvimento, no início dos anos 1980. A partir desse momento, várias foram as tentativas de solucionar a questão do endividamento externo desses países, passando pela tentativa frustrada do Plano Baker, pelo bem-sucedido Plano Brady, chegando à situação recente de emissão regular de títulos soberanos no mercado internacional de capitais e à construção da curva externa em reais. Dessa forma, é possível subdividir a história da dívida externa brasileira nesses anos em quatro fases: 1) de 1964 até o final da década seguinte, período de forte acumulação da dívida, tendo em vista o crescimento do país, até culminar com os choques do petróleo; 2) os anos 1980, com a sucessão de tentativas buscando corrigir os desequilíbrios construídos com base na política anterior, até chegar ao Plano 69 Brady, no início dos anos 1990; 3) a fase seguinte, com a volta das emissões soberanas, em 1995, e a relativa tranquilidade na administração do passivo externo, a despeito das crises internacionais enfrentadas a partir da segunda metade da década de 1990; e 4) a nova política de emissões qualitativas a partir de 2006. 3.1 A política de endividamento externo O Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) buscava abarcar, de forma geral, todos os gargalos econômicos do país. Dentre estes, incluía-se a política internacional, a qual compreendia, entre outros fatores, a restauração do crédito do país no exterior, o que aliviava as pressões de curto prazo sobre o balanço de pagamentos. Além disso, como já mencionado, a despeito das inovações na estrutura do mercado de capitais promovida pelo Paeg, nesses primeiros anos do novo governo ainda havia déficits fiscais, que foram financia- dos, também, via empréstimos externos. As reformas introduzidas pelo Paeg e, mais precisamente, as elevadas taxas de crescimento obtidas, conjugadas com níveis de inflação sob controle, geraram expectativa bastante favorável para o país. No entanto, o próprio fato de as taxas de crescimento da economia serem elevadas gerava a necessidade de se obter recursos externos para o financiamento desse crescimento, de forma que ao longo da segunda metade da década de 1960 o país experimentou um forte aumento nas entradas de capitais externos (o Brasil foi o quarto maior receptor líquido de recursos externos no período de 1964 a 1967).21 As fortes entradas de capitais nessa segunda metade dos anos 1960 representaram aumento da dívida externa registrada (pública e privada), a qual passou de US$ 3,2 bilhões em 1964 para US$ 4,4 bilhões no final de 1969, um aumento de 37,5% em apenas seis anos.22 De fato, no início dos anos 1970, a situação era favorável para que se buscasse influxo de recursos por meio de captações soberanas no mercado internacional, fato marcante, tendo em vista que a última vez que o Brasil recorreu a esse tipo de financiamento foi em 1931. Ainda antes da primeira crise do petróleo, a partir de 1972 o país efetuou a colocação de bonds do governo no mercado externo. Nesse ano, foram realizadas três emissões, nos mercados europeu e americano, e em 1973 seria feita uma emissão no mercado japonês. Nos anos seguintes, a despeito do primeiro choque do petróleo, não apenas a República continuou acessando esse mercado, como grandes empresas brasileiras aproveitaram o sucesso das colocações e efetuaram emis- sões nos mercados externos.23 Se, por um lado, a combinação das elevadas taxas de crescimento com abundante liquidez da economia internacional havia resultado em um considerável crescimento do estoque de dívida externa,24 em 1973 a situação iria começar a reverter com a abrupta elevação dos preços do petróleo. Em 1974, dada a consequente deterioração do balanço de pagamentos, as medidas restritivas ao capital externo começaram a ser retiradas. Naturalmente, o vigoroso influxo de capitais ocorrido até aquele ano teve como efeito colateral a elevação das saídas de recursos a título de juros e amortizações. 21 Resende, 1989, p. 219. 22 Mollo, 1977. 23 As emissões corporativas começaram pela Vale do Rio Doce e continuaram com a Light, o BNDE, a Eletrobrás, a Petrobras, a CESP e a Nuclebrás. Para maiores informações, ver Gomes, 1982. 24 No período compreendido entre 1965 e 1975, a dívida externa cresceu mais de 400%, passando de US$ 3,9 bilhões para US$ 21,2 bilhões. 70 Dívida Pública: a experiência brasileira Nesse momento, o endividamento já se constituía em um problema em potencial. Qualquer reversão na liquidez internacional ou nas taxas de crescimento da economia mundial teria um efeito negativo muito grande sobre as contas externas do Brasil. Segundo Mollo,25 a partir de 1973 o endividamento deixaria de ser impulsionador do crescimento para, ao contrário, funcionar como um inibidor deste, tendo em vista que as saídas de capitais a título de juros e amortizações já superavam as entradas. Dessa forma, no front interno o país começava a se defrontar com o recrudescimento inflacionário e, no externo, com o aumento do endivi- damento, de forma que “a inflação e a dívida externa se apresentavam em 1973 como áreas com problemas potencialmente crescentes a serem enfrentados pela administração seguinte”.26 A despeito dos potenciais riscos mencionados, a política adotada pelo país para contornar a crise não passou pela redução do crescimento. Na verdade, como bem descrito por Garrido,27 na medida em que o aumento nos preços do petróleo não reduziu a liquidez internacional – tendo em vista que a transferência dos recursos para os países exportadores de petróleo acarretou depósitos nos bancos europeus e norte-americanos –, estes continuaram com abundância de recursos para emprestar aos países em desenvolvimento (processo conhecido como “reciclagem dos petrodólares”). Dessa forma, o período entre 1974 e 1980 experimentou uma acumulação ainda maior da dívida externa, que iria desembocar na crise da dívida no início da década seguinte. Vale mencionar que nesse mesmo período (1974 a 1980) o país presenciou um aumento da participação da dívida pública no total da dívida externa, cujo percentual passou de cerca de 50% para quase 70%. Com a ocorrência do segundo choque do petróleo, entre agosto de 1979 e outubro do ano seguinte, houve uma forte elevação dos custos dos empréstimos, em virtude principalmente da elevação das taxas de juros promovida pelo Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos, o qual buscava conter o aumento nas taxas de inflação daquele país. Isso levou à incapacidade de se fazer com que os investidores internacionais financiassem as políticas econômicas adotadas pelos países em desenvolvimento endividados, culminando em uma rápida perda de reservas por parte destes (as quais sofreram decréscimo pela primeira vez na década) e em desequilíbrio do balanço de pagamentos brasileiro, que passou de superavitário em US$ 4,3 bilhões para deficitário em US$ 3,2 bilhões. Nesse momento, a situação começava a ficar crítica, e delineava-se uma nova e negra fase para a eco- nomia brasileira, na qual as restrições externas passaram a ditar os rumos da economia doméstica. A partir de então, o gargalo gerado pela dívida externa deixaria de ser um problema em potencial para representar uma restrição de fato. 3.2 A busca por soluções Tendo em vista todo o pano de fundo descrito, em meados de 1980 começaram a ser sentidos os primeiros sinais de escassez de recursos para financiamento externo. A redução da liquidez internacional conjugada com o aumento das taxas de juros internacionais acarretou maiores dificuldades na renovação de emprésti- mos, em um momento em que o financiamento do balanço de pagamentos se tornara particularmente crítico. A escassez de divisas externas, acoplada a uma elevação das taxas de juros internacionais e a uma recessão externa, geraram internamente também um movimento recessivo que acabaria por influenciar toda a década, não por outro motivo conhecida como “a década perdida”. Naquele momento, o país optou por ainda não recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). 25 Mollo, op. cit. 26 Lago, 1989. 27 Garrido, 2003. 71 Apesar do pequeno superávit obtido no balanço de pagamentos em 1981, a situação tornar-se-ia ainda mais complicada no ano seguinte. Em agosto de 1982, o México decretou moratória de sua dívida externa, fato que iria contribuir para o agravamento da crise no Brasil. Nesse ano, o déficit no balanço de pagamentos chegaria a US$ 8,8 bilhões, cifra recorde até então. Nessas condições, parecia não haver alternativa, senão iniciar movimentos no sentido de buscar coopera- ção internacional. Em setembro de 1982, o país iniciou conversas com a diretoria do Fundo Monetário Internacional e com a comunidade financeira internacional. Naquele ano, foi necessária a negociação de empréstimos-ponte no valor aproximado de US$ 3 bilhões para que fosse possível fechar o balanço de pagamentos. Tendo em vista o tamanho da restrição externa, a renegociação da dívida externa passou a ser o assunto do momento para o país. Ao final de 1982, o governo anunciou que as políticas adotadas já estavam em linha com as recomendações do Fundo. Era fundamental a elaboração de medidas que viabilizassem um caminho para se contornar a crise, o que culminou com a elaboração, em 1983, do Programa para o Setor Externo, o qual consistia basicamente em elevar as exportações e reduzir as importações para fazer frente aos compromissos externos. Iniciou-se, então, uma fase que durou vários meses, compreendendo processo de negociações e diversas cartas de intenção com o FMI, as quais contemplavam metas para a economia doméstica. Nos dois anos que se iniciaram em 6 de janeiro de 1983 (data da primeira carta), foram enviadas ao FMI sete cartas de intenção, todas descumpridas. Em paralelo às cartas que ditavam parâmetros para a economia, eram realizadas negociações para o reescalonamento das dívidas do país, de forma que, ao longo do período compreendido entre 1983 e 1987, foram realizadas diversas operações de reestruturação da dívida externa brasileira, compreendendo basi- camente a manutenção das linhas de crédito de curto prazo e o reescalonamento do principal das dívidas vincendas nos anos seguintes, assim como a entrada de dinheiro novo. Ao final de 1982, um primeiro pacote foi criado, contemplando a entrada de dinheiro novo para honrar compromissos de curto prazo, assim como o reescalonamento das obrigações de médio e longo prazos. Em 1983 e 1984, novas renegociações tiveram de ser efetuadas, objetivando a solução dos problemas do balanço de pagamentos para aqueles anos. Apenas em 1985 buscou-se uma proposta de reestruturação plurianual, englobando o período compreendido entre 1985 e 1991. Entretanto, tais soluções apenas postergavam os problemas, sem representar, contudo, uma solução para os déficits do balanço de pagamentos do país, o que levou as reservas internacionais para níveis preocupantes em 1986. O grau de dificuldade da situação e sua disseminação entre os países em desenvolvimento induziam à busca por soluções globais, a serem respaldadas de forma genérica pela comunidade financeira internacional. Entretanto, e em que pese a recuperação da economia dos Estados Unidos e o consequente afrouxamento da restrição externa, ocorrido em 1984, havia uma grande dificuldade dos países em se adaptarem às políticas recomendadas pelo FMI. Nesses anos, ganha força na comunidade financeira internacional a idéia da “capacidade de pagamento”, na qual os países deveriam pagar os empréstimos tomados de forma que não fosse comprometida sua ca- pacidade de pagamento, indo na direção oposta ao do receituário do FMI, o qual determinava rigidez tanto nas políticas monetária como fiscal, o que estava gerando efeitos colaterais consideráveis sobre a economia dos países que adotassem tais políticas. No âmbito político, em 1985 inicia-se no Brasil um novo governo, do presidente José Sarney.28 A opção desse governo foi não firmar acordo com o FMI, temendo que isso pudesse comprometer o crescimento do país. Na verdade, o presidente eleito pelo colégio eleitoral (formado por integrantes do Congresso Nacional) foi Tancredo Neves, o pri- 28 meiro civil eleito desde 1960. Entretanto, ele foi internado por motivo de doença no dia anterior à data da sua posse. José Sarney, seu 72 Dívida Pública: a experiência brasileira Nesse contexto (exigência dos bancos para a celebração de algum acordo para continuação do pagamento das dívidas e falta de vontade do governo em celebrar acordos com o FMI), surge uma tentativa conciliatória, defendida pelo então secretário do Tesouro dos EUA, James Baker, e conhecida como Plano Baker. Esse plano baseava-se na idéia de que os acordos não deveriam comprometer a capacidade e o crescimento dos países, de forma que cada banco continuasse provendo novos recursos aos países devedores. Ocorre que cada banco em particular tinha interesse em que outro banco continuasse provendo os países de recursos, mas individual- mente preferia não aumentar sua exposição a esses países, pois assim teria os benefícios da renegociação sem os correspondentes riscos. Tendo em vista esse problema (conhecido na literatura econômica como free rider), o Plano Baker não logrou obter os benefícios esperados,29 já que o endividamento externo permanecia como uma grave questão a ser enfrentada pelos países em desenvolvimento ao longo dos anos seguintes. Após intensos debates entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda,30 em fevereiro de 1987 o governo brasileiro promoveu, enfim, a moratória da dívida externa, ao suspender os pagamentos de juros sobre a dívida de médio e longo prazos, argumentando que a questão do endividamento externo não era exclusivamente econômica, mas tinha também um componente político. Essa medida não solucionou os problemas de balanço de pagamentos do país, mas, ao contrário, contribuiu para o enfraquecimento da equipe econômica, que em abril do mesmo ano foi substituída, assumindo como ministro da Fazenda Bresser Pereira, no lugar de Dilson Funaro. A nova equipe buscou uma solução negociada para a crise. Em setembro de 1988, foi assinado acordo pondo fim à moratória, o qual previa a entrada de dinheiro novo (US$ 5,2 bilhões), o reescalonamento de algumas obrigações de médio e longo prazos, a manutenção das linhas de crédito de curto prazo e a troca de US$ 1,05 bilhão de dívida antiga por títulos (Brazil Investment Bond Exchange Agreement). Apesar disso, por incapacidade de pagamento, ao final de 1988 e em julho de 1989 o país deixou de honrar compromissos externos (sendo uma moratória de fato, porém não declarada). Nesse período foi apresentado à comunidade financeira internacional outro plano que tentava so- lucionar o problema do endividamento dos países em desenvolvimento, idealizado por outro secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas Brady. Diferentemente do que ocorrera com o Plano Baker, no Plano Brady o governo daquele país entraria diretamente nas negociações, procurando evitar a ocorrência do free rider. O Plano Brady contemplava a troca dos empréstimos anteriores por novos títulos (conhecidos como os Brady Bonds), que poderiam ser negociados posteriormente em mercado, e embutia alongamento dos prazos e redução do serviço da dívida. Conforme descreve Garrido, “apesar de prejudicar interesses individuais, o interesse coletivo dos bancos privados foi assegurado, uma vez que o plano viabilizava a continuidade da presença do devedor no mercado de capitais”.31 Em 1989, o México foi o primeiro país a assinar um acordo tendo como base o Plano Brady. Nesse contexto internacional, Fernando Collor32 assumia, em 15 de março de 1990, a Presidência da República, advogando uma política liberalizante, o que tornava fundamental a retomada das linhas de crédito ao país. Assim, em outubro daquele ano, o Brasil iniciava novas negociações com a comunidade financeira internacional visando à regularização da situação creditícia do país. Em dezembro, foi baixada a vice, assumiu a Presidência e nela permaneceu até o fim do mandato, tendo em vista que Tancredo Neves faleceu alguns dias depois. 29 Na verdade, sequer chegou a ser efetivamente implementado por algum país. 30 Tais debates são descritos em Paulo Nogueira, Da crise internacional à moratória brasileira, 1988. 31 Garrido, op. cit. 32 O então presidente José Sarney passou a faixa presidencial para Fernando Collor de Melo, primeiro presidente eleito pelo voto popular em quase trinta anos (o último havia sido Jânio Quadros, empossado em 31 de janeiro de 1961), após um longo período de eleições indiretas de presidentes militares (exceto Sarney). 73 Resolução do Senado Federal nº 82, de 18/12/1990, estabelecendo os parâmetros para as negociações da dívida pública externa. Em paralelo a essas negociações, parte dos pagamentos ainda não efetuados aos credores foi liberada. Em 8 de abril de 1991, firmou-se acordo de princípios referente à regularização dos juros devidos e não remetidos. Parcela desses recursos foi remetida em dinheiro, e outra parcela (US$ 7 bilhões) foi trocada por um novo título, emitido pelo governo brasileiro (Interest Due and Unpaid – IDU Bonds) em 20 de novembro de 1992. As negociações prosseguiram e, em 9 de julho de 1992 foi firmado novo acordo de princípios, que ficou conhecido como o Plano Brasileiro de Financiamento de 1992, tendo sido aprovado pelo Senado Federal por meio da Resolução nº 98, de 29 de dezembro de 1992. Em janeiro de 1993, o documento detalhado foi encaminhado à comunidade financeira internacional para que esta aderisse a ele. Em novembro do mesmo ano, foram firmados diversos contratos com os credores. A emissão dos Bradies brasileiros (Discount Bonds, Par Bonds, Front-Loaded Interest Reduction Bonds, Capitalization Bond, Debt Conversion Bonds, New Money Bonds e Eligible Interest Bonds) ocorreu em 15 de abril de 1994, após finalizada a conciliação dos valores e a distribuição dos títulos entre os credores. A tabela a seguir mostra os títulos emitidos no processo de renegociação da dívida externa, iniciado no final dos anos 1980 e terminado na primeira metade da década de 1990. Os dois primeiros instrumentos são aqueles que ficaram conhecidos como Pré-Bradies, enquanto os demais são os Brady Bonds. É importante mencionar que os acordos firmados contemplavam, ainda, a transferência de responsabili- dade da dívida externa do Banco Central para a União, que passou a ser a devedora das obrigações externas, propiciando uma maior divisão das tarefas entre as autoridades monetária e fiscal. O Banco Central passou, então, a atuar como agente do Tesouro Nacional nas emissões dos títulos no mercado externo.33 Devem-se citar certas características do acordo que seriam decisivas para o completo equacionamento do endividamento externo, conforme descrito na seção seguinte, quais sejam: 1) a existência de garantias (a serem efetivadas pela compra de títulos do Tesouro dos Estados Unidos) para três dos títulos emitidos; e, principalmente, 2) a possibilidade de o Brasil fazer operações com os novos títulos emitidos.34 Montante emitido Data de Instrumento (US$ bilhões) vencimento BIB ou Exit Bond 1,06 15/09/2013 IDU (Interest Due and Unpaid) 7,13 01/01/2001 Discount Bond 7,28 15/04/2024 Par Bond 8,45 15/04/2024 Flirb (Front-Loaded Interest Reduction Bond) 1,74 15/04/2009 C-Bond 7,41 15/04/2014 DCB (Debt Conversion Bond) 8,49 15/04/2012 New Money Bond 2,24 15/04/2009 EI (Eligible Interest Bond) 5,63 15/04/2006 33 Função que permaneceu com o Banco Central por quase uma década. Em 2003, foi firmado acordo de transição em que o Tesou- ro Nacional passou a ser, a partir de 2005, o único responsável pela administração da dívida externa mobiliária brasileira. 34 Tais como sua compra antecipada, o que permitia que futuras reestruturações do passivo externo pudessem ser efetuadas, desta vez com parâmetros exclusivamente de mercado, sem que fossem necessárias negociações políticas e/ou diplomáticas. 74 Dívida Pública: a experiência brasileira 3.3 A retomada das emissões voluntárias A existência de títulos brasileiros livremente negociados no mercado internacional, situação propiciada pelo Plano Brady, criou as bases para o novo modelo de endividamento assumido pelo país e que vigora até hoje. A estrutura herdada pelos acordos no âmbito do Plano Brady, mais particularmente a estrutura de dívida mobiliária, com ativos livremente negociados em mercado secundário, com relativa liquidez (de forma que o investidor possa revendê-lo em mercado, caso deseje), propiciou condições necessárias para a nova fase do passivo externo, que pode ser hoje administrado com muito maior flexibilidade. Dessa forma – e tendo o cenário doméstico como pano de fundo –, com o advento do Plano Real em 1994 e sua “âncora” via taxa de câmbio, era essencial que houvesse influxo de capitais para o Brasil. Inicia-se então uma nova fase de endividamento externo do país baseada na captação de recursos externos por meio da emissão de títulos no mercado internacional.35 Nesse novo contexto, é possível ao país escolher a melhor combinação de prazos e custos possíveis e ainda qual o mercado em que deseja fazer a captação.36 De fato, mesmo quando eclodiram crises de proporções globais (México, Ásia, Rússia e Argentina), o país pôde se financiar externamente. Logo no início dessa nova fase de “emissões soberanas”, em 1994, o mundo assistiu à primeira crise que iria refletir-se em todo o sistema financeiro internacional,37 mais particularmente no dos países emergentes. A crise do México dificultou o acesso do Brasil ao mercado norte-americano. En- tretanto, a mencionada flexibilidade na administração do passivo externo possibilitava a emissão em outros mercados, de forma que a opção do Brasil para o retorno das suas emissões voluntárias recaiu sobre o mercado japonês em junho de 1995. O sucesso dessa primeira emissão foi tão grande que o volume inicialmente planejado (Y$ 20 bilhões) foi aumentado para Y$ 80 bilhões, sem correspondente aumento nos custos, tal foi a demanda.38 Logo após, foi realizada outra emissão, agora em marcos alemães, no mercado europeu, contribuindo para perfazer, no primeiro ano, um total de cerca de US$ 1,7 bilhão, quase esgotando o limite autorizado pelo Senado Federal à época (US$ 2 bilhões). Em 1996 – e após a realização de outras emissões nos mercados japonês, italiano e inglês –, com os efeitos da crise do México já dissipados, o Brasil pôde finalmente acessar o mercado de dólares (mais líquido, permitindo emissões em maiores volumes), com um título de cinco anos. Até a eclosão da crise asiática, no início do segundo semestre de 1997, o país havia acessado o mercado internacional oito vezes, com emissões na Europa e nos Estados Unidos. Uma das emissões no mercado norte- americano foi do título de mais longo prazo até então – 30 anos (denominado Global 2027), o que mostra que a aceitação do mercado pela dívida brasileira era muito boa. Ainda, pela primeira de várias outras vezes, fez-se uso da troca de títulos, permitindo que US$ 2,2 bilhões de Bradies fossem recomprados. A despeito das sucessivas crises internacionais – e aproveitando o respaldo dos pacotes de ajuda financeira proporcionados pelo Fundo Monetário Internacional no período –, o país continuou acessando o mercado externo. Em 1998, foram realizadas três operações, também nos mercados europeu e norte-americano, até a eclosão da crise na Rússia. Em 1999, após a desvalorização cambial ocorrida no início do ano, o Brasil voltava a acessar o mercado realizando, novamente, operações de troca de dívida reestruturada. O mercado passaria ainda pelos efeitos da crise argentina em 2001. Por fim, o período eleitoral em 2002 e as incertezas 35 No Anexo Estatístico a este livro podemos encontrar uma tabela com todas as emissões realizadas pelo governo federal desde 1995. 36 Dos quais os principais são o norte-americano, o europeu e o japonês. 37 Sobre o efeito contágio das crises sobre o mercado de dívida de países emergentes, ver Botaro, 2001. 38 Vale observar que esta emissão foi inclusive apontada por revista especializada (International Finance Review) como a melhor emissão do ano de 1995. 75 inerentes a ele impactaram também o mercado de dívida. Não obstante, durante todos esses anos foi pos- sível acessar os mercados, contando o governo com a flexibilidade da escolha, tanto em relação ao momento adequado para efetivar a operação quanto do próprio mercado e do instrumento utilizado. Com a volta da normalidade econômica em 2003, os anos seguintes permitiram ao Brasil acessar o mercado externo sem maiores dificuldades. Em 2005, tem início um ponto de inflexão na história do endividamento externo brasileiro, com a opera- ção de troca voluntária do C-Bond por um título de características semelhantes, chamado de A-Bond. A partir dessa operação, começava-se a desmontar no Brasil o estoque dos Brady Bonds, que viria a ser extinto no ano seguinte. Também a partir desse ano a estratégia de endividamento passaria a se concentrar na definição de benchmarks, com o início da reabertura de emissões de um título diversas vezes, aumentando sua liquidez em mercado. Tal estratégia tinha por objetivo a construção de uma curva de juros externa mais eficiente. Um terceiro e fundamental aspecto na história recente da dívida externa foi a primeira emissão, no mercado internacional, de um título denominado em reais, com vencimento em 2016, o BRL 2016. A partir do ano seguinte, o país daria os primeiros passos no sentido de consolidar a criação de uma curva externa na moeda doméstica. 3.4 A fase atual: emissões qualitativas A partir de 2006, tendo em vista a redução expressiva da necessidade de financiamento externo pela redução da dívida e o forte influxo de dólares, o país deixa de necessitar das emissões externas como fonte de financiamento. A partir daquele ano, inclusive, foram realizadas diversas operações de pré-pagamento de dívida mobiliária federal externa, que remontaram a US$ 35,7 bilhões. Já em relação à dívida contratual, o país antecipou o pagamento da dívida remanescente com o Clube de Paris no valor de US$ 1,7 bilhão, bem como, ainda em 2005, realizou o pré-pagamento de sua dívida com o FMI, no valor de US$ 20,4 bilhões. Como citado no parágrafo anterior, foram realizadas diversas operações de redução da dívida mobiliária. Em abril de 2006, dando prosseguimento ao pagamento antecipado do estoque remanescente de C-Bond, em outubro do ano anterior, o país exerceu a cláusula de recompra antecipada dos demais Bradies, no valor de US$ 6,5 bilhões, terminando assim uma importante fase da história do seu endividamento externo. Também no início do referido ano, o Tesouro começou, via mesa de operações do Banco Central, um programa de recompras da dívida externa, com vistas à melhora de seu perfil, inicialmente com o resgate dos títulos com vencimento até 2012. Naquele ano foram recomprados US$ 5,8 bilhões em valor de face. A primeira agência a avaliar o risco de crédito da República do Brasil foi a Moody´s, em 1986. Na ausência de instrumentos negociáveis de dívida durante alguns anos, esta foi a única forma de avaliar o crédito do país. Com o processo de securitização da dívida externa e consequente desenvolvimento do mercado por meio desses instrumentos, em especial após o desenvolvimento do processo de emissões voluntárias anteriormente descrito, era de esperar que novas agências de rating avaliassem o risco de crédito dos instrumentos de dívida do país. De fato, a partir de 1994, Standard and Poor’s e Fitch passaram também a divulgar classificações para o crédito do país. Nos primeiros anos do Plano Real e início da fase das emissões voluntárias, não houve mudanças signifi- cativas nas classificações das agências (exceção feita à S&P, que elevou em um grau a classificação em 1997). Entretanto, com a deterioração das condições macroeconômicas em 1998, a Moody´s rebaixou a classificação do país, sendo seguida pelas demais agências em 1999, ano da desvalorização do real. O país conseguiu posterior- mente recuperar em um grau sua nota nas três agências, mas em 2002, com as incertezas geradas pelo processo 76 Dívida Pública: a experiência brasileira sucessório e seus impactos nas condições econômicas e financeiras do país, novamente houve rebaixamento nas notas dadas pelas três agências. A partir de 2003, entretanto, as constantes melhorias nos fundamentos econômicos do país fizeram com que houvesse um processo de contínuo upgrades, até se chegar à situação atual, em que o Brasil é considerado investment grade pelas agências de classificação de risco S&P e Fitch e está a apenas um grau do investment grade pela Moody’s. Nessa classificação, o ativo deixa de ser considerado um investimento de risco, categoria em que algumas importantes classes de investidores internacionais são proibidas de aplicar recursos. Em outras palavras, a obtenção do grau de investimento representa não apenas um reconhecimento do mercado à qualidade do crédito do emissor, como também a abertura do mercado para parcela significativa de investidores. Quanto à composição, ainda em 2006 o país emitiu mais um instrumento denominado em reais, com prazo de 15 anos de vencimento (o BRL 2022), montando o segundo ponto da curva externa em moeda local. Esse título seria emitido mais duas vezes (reabertura) ao longo do ano, fazendo com que seu estoque chegasse a R$ 3 bilhões. No ano seguinte, emitiu-se, em quatro oportunidades, o BRL 2028, título em reais com vinte anos de prazo. Dessa forma, o Brasil terminou 2007 com um estoque de cerca de R$ 10,2 bilhões em títulos externos em moeda local, ajudando a criar referência, no mercado externo, para a construção de uma curva de juros na moeda doméstica. A partir de 2007, iniciou-se programa, agora em caráter permanente, de recompra dos títulos da dívida externa ao longo de toda a curva. O objetivo do programa é reforçar a política de construção de uma curva externa eficiente e líquida. Naquele ano foram recomprados US$ 5,4 bilhões, representando 12,2% do es- toque da dívida externa ao final de 2006. Em 2008, com a liquidez de mercado reduzida por conta do cenário internacional adverso, as recompras aconteceram em menor volume (US$ 1,5 bilhão), mas continuaram a refletir a estratégia de retirar instrumentos menos líquidos e trocá-los por títulos benchmark, que serviam como melhor referência para a curva externa. Dados os passos recentes, atualmente o país conta com uma estrutura de dívida externa não somente reduzida, mas diluída ao longo do tempo, com pontos líquidos e apresentando risco cambial bastante baixo, se comparado com o início da década.39 Em outras palavras, um dos grandes problemas de política econômica enfrentado pelo Brasil ao longo dos últimos trinta anos tornou-se uma questão cuja administração é abso- lutamente confortável. 4 Conclusões A história da dívida pública no Brasil mostra um processo de avanços e retrocessos ao longo do tempo. A composição da dívida apresentou sensíveis variações, refletindo as diversas conjunturas econômicas experi- mentadas pelo país. Em que pese essa constatação, houve também inequívoca tendência de melhora. De fato, na dívida interna, o país conta com uma estrutura mais eficiente em termos de composição e prazo, permitindo maior tranquilidade na sua administração, assim como uma melhor contribuição ao de- senvolvimento do mercado de capitais doméstico. Quanto à dívida externa, a estrutura atual permite afirmar, 39 A participação da dívida externa no estoque da Dívida Pública Federal em poder do público é inferior a 10%. Adicionalmente, enquanto o estoque desta dívida externa é de aproximadamente USD 60 bilhões, as reservas internacionais superam os USD 200 bilhões, em um regime de câmbio flutuante. 77 com confortável grau de certeza, que as instabilidades cambiais geradas pelos elevados passivos em moeda estrangeira do setor público pertencem a um passado cada vez mais distante. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a consolidação da estabilidade macroeconômica permitiu o aperfeiçoamento da estrutura das dívidas públicas interna e externa, tal aperfeiçoamento deu uma importante contribuição para a consolidação da própria estabilidade econômica, permitindo um ciclo virtuoso entre política macroeconômica estável e gestão da dívida eficiente. Referências ANDIMA. Séries históricas – dívida pública, 1993. ARAÚJO, C. H. Mercado de títulos públicos e operações de mercado aberto no Brasil: aspectos históricos e operacionais. Notas Técnicas do Banco Central, 2002. BACHA, Edmar. Escaping confrontation: Latin America’s debt crises in the late eighties. Rio de Janeiro: PUC, out. 1997 (Texto para discussão). BANCO CENTRAL. Relatórios de atividades. Vários anos. BATISTA JR., Paulo Nogueira. Da crise internacional à moratória brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1988. BARCINSKI, A. Risco de taxa de juros e a dívida pública federal no Brasil pós-real. 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Tem também por objetivo apresentar várias medidas ou metodologias de avaliação que oferecem uma maneira disciplinada de sinalizar se uma política é sustentável ou não. Finalmente, e não menos importante, procura- se aqui mostrar como a administração da dívida pública pode desempenhar um papel fundamental na determinação de sua sustentabilidade. A dívida pública de um país é considerada sustentável se a restrição orçamentária do governo pode ser satisfeita sem ruptura nas políticas monetária e fiscal. Como vamos esclarecer ao longo do capítulo, isso implica que o valor da dívida pública não deve ser superior ao valor presente de todos os superávits primários futuros. O requerimento que fazemos quanto à não ruptura das políticas monetária e fiscal é crucial aqui. Em última análise, podemos escrever a restrição orçamentária do governo, admitindo circunstâncias em que o default (não pagamento) ou a monetização da dívida1 ocorrem de forma que garanta a consistência formal das expressões matemáticas. Como veremos, nesse caso, as expressões matemáticas deixam de representar uma verdadeira restrição orçamentária para se tornarem equações de apreçamento que respondem à pergunta: qual o valor hoje de uma dívida que em determinadas circunstâncias claramente identificadas não será paga em sua totalidade? Equações de apreçamento permitem que dois ativos com “promessas de pagamentos contratuais” idên- ticas possuam preços de mercado distintos. Subjacente à diferença de preços está a percepção por parte dos indivíduos de que algumas das promessas contratuais não serão cumpridas. Já uma equação que represente a restrição orçamentária na discussão de sustentabilidade pressupõe o total pagamento dos valores contratualmente estabelecidos. Este último é, portanto, o conceito relevante para a definição de sustentabilidade. A relação direta entre sustentabilidade e o valor presente dos resultados fiscais do governo deixa a impressão de que a determinação da sustentabilidade pode ser feita de forma objetiva, livre de qualquer 1 O não pagamento (default) pode ser parcial ou total. Cabe destacar que uma reestruturação unilateral da dívida, modificando as características originais do contrato, tais como ampliação do prazo ou redução da taxa de juros, pode ser considerada default, por reduzir o valor presente dessa dívida. Do mesmo modo, a monetização de uma dívida (emissão de moeda acima do programado) significa redução do seu valor real pelo aumento não esperado da inflação que tal monetização gera. 81 ambiguidade. Infelizmente, não é esse o caso. Na prática, não sabemos quais serão os resultados primários2 futuros ou mesmo a taxa por que esses resultados serão descontados. Além disso, sendo o resultado primário do governo uma variável de escolha, qualquer inferência acerca de suas futuras realizações requer a formação de crenças relacionadas não somente à capacidade de sua geração, mas também à disposição do governante de produzi-lo. Na seção 2 deste capítulo, procuraremos tornar mais objetivas essas ideias. Na seção 3, discutiremos formas práticas de “avaliar” sustentabilidade. As aspas são necessárias já que, em geral, nenhuma medida será uma forma definitiva de determinação de sustentabilidade, mas simplesmente um indicador útil para a formação de um sistema de crenças sobre a situação fiscal. Na seção 4, desviaremos um pouco o foco para discutir aspectos de curto prazo que podem levar à insolvência entes cuja administração da dívida é perfeitamente sustentável. Na seção 5, discutiremos a forma como a estrutura da dívida pode estar rela- cionada com sua sustentabilidade. Na seção 6, apresentaremos a forma como a administração da dívida pública brasileira enfrenta os desafios associados à sustentabilidade. A seção 7 conclui o capítulo. Por fim, usaremos o Apêndice para ilustrar alguns exercícios de sustentabilidade e estrutura da dívida realizados pela Secretaria do Tesouro Nacional. 2 Sustentabilidade: formalização Para entendermos o termo sustentabilidade da dívida, começaremos a discuti-la em um mundo deter- minístico, no qual uma dívida é dita sustentável quando o valor presente do fluxo futuro de receitas menos despesas do devedor é suficiente para pagar tudo o que está contratualmente definido. Note que, mesmo com essa especificação extremamente simples, algumas questões precisam ser esclarecidas. Em primeiro lugar, a ênfase nos valores especificados no contrato (ou título) é fundamental, no sentido de que queremos evitar a circularidade associada à utilização do valor de mercado. Em segundo, na maior parte do que se segue consideraremos dívida em termos reais, já que o nível de preços pode ser visto como uma variável de ajuste no valor da dívida e criar circularidade semelhante à referente ao uso do valor de mercado quando se trata da dívida pública, como voltaremos a discutir mais adiante. 2.1 Mundo determinístico Ainda que se possa definir diretamente a restrição orçamentária intertemporal do governo como a condição de que o valor presente dos superávits primários seja igual ao valor da dívida, dividiremos a questão em duas partes. Primeiro, definiremos a restrição-fluxo do governo. Depois, imporemos a condição de transversalidade. A equivalência entre essas duas formas de apresentar a restrição orçamentária do governo será, então, demonstrada. Para cada período (um período para nós será um ano, já que é o relevante do ponto de vista orçamentário), a dívida pública evolui de acordo com a seguinte relação: , (1) onde é o valor da dívida do governo no momento t, rt é o valor da taxa de juros em t, e Tt e Gt são as receitas e as despesas do governo em t. 2 Poupança fiscal gerada pelo governo para pagamento da dívida. Para maiores detalhes, ver Parte 1, Capítulo 1. 82 Dívida Pública: a experiência brasileira Naturalmente, essa igualdade tem de valer para todos os períodos. Portanto, no período seguinte: . Substituindo, recursivamente, em (1) temos, , ou seja, . Podemos continuar o processo até um tempo t+s qualquer e expressar: . (2) É importante ter em mente a definição correta das variáveis. Usamos rt para denotar a taxa de juros de um título comprado em t, a ser honrado em t+1. Da mesma forma, Gt-Tt representa o déficit primário em t. A restrição-fluxo (1) representa um requerimento mínimo, que poderíamos até mesmo ver como uma identidade contábil. O que torna interessante o conceito de sustentabilidade é a condição de transversalidade. Notando que o preço em t do consumo em t+s é dado por . A condição de transversalidade é (3) o que força o valor presente da dívida a se aproximar de um valor não positivo quando um horizonte de tempo suficientemente longo for considerado. Essa condição elimina os chamados jogos de Ponzi, em que uma dívida é sempre “rolada” e nunca paga. Ou seja, corresponde à hipótese de que governos não podem endividar-se permanentemente. Note que impusemos a restrição de que o valor presente da dívida do governo não seja positivo, isto é, que o governo não pague a dívida com mais dívida indefinidamente. É natural admitir que as pessoas também 83 não possam endividar-se contra o governo indefinidamente, o que justifica a imposição da restrição (3) como uma igualdade, em cujo caso tem-se . (4) A imposição da condição de transversalidade (3) com igualdade garante, portanto, que o valor presente dos superávits primários seja igual ao valor da dívida, conforme havíamos anunciado. Em um mundo sem incerteza, a condição de sustentabilidade da dívida pública é exatamente aquilo que se pode esperar: que o governo em algum momento do tempo arrecade o suficiente não somente para pagar seus gastos correntes, mas também para honrar seus compromissos acrescidos dos devidos juros. Já em um mundo cercado de incertezas, a definição não é tão simples. Há duas diferenças fundamen- tais com relação ao caso determinístico. Primeiro, há várias trajetórias possíveis para o superávit primário do governo. Como então definir sustentabilidade? Deve-se exigir que os superávits sejam suficientes para pagar a dívida em todos os cenários ou somente em média? Segundo, conquanto no caso determinístico somente uma taxa de desconto esteja definida (para evitar o aparecimento de oportunidades de arbitragem), no caso estocástico várias taxas de retorno são possíveis de acordo com suas características de risco. Qual a taxa de desconto relevante? 2.2 Incerteza Há duas dimensões em que a incerteza é relevante nesse caso. Em primeiro lugar, o valor das receitas e das despesas e, consequentemente, dos superávits primários do governo é incerto, o que faz com que haja incerteza com relação à trajetória da dívida. Em segundo lugar, para cada cenário, o “valor” dos superávits ou dos déficits acumulados pode ser diferente, dependendo da taxa pela qual são descontados. Consideremos o primeiro caso. Se o fluxo de superávit fosse variável, mas pudéssemos descontá-lo por uma taxa que independesse do cenário3 (o que quer dizer que o valor de uma unidade de poder de compra é igual em todos os diferentes cenários), então a nova condição de sustentabilidade seria de que o valor presente esperado dos superávits do governo fosse o mesmo (igual ao valor da dívida) para todos os cenários. Infelizmente, a questão não é tão simples assim. Em um mundo com incerteza, ativos diferentes com características de risco distintas pagam retornos distintos. Isso é o que torna fundamental a questão da taxa de desconto. Em um mundo sem incerteza, só há uma taxa – a taxa sem risco. Já no mundo com incerteza, há várias taxas de desconto. Qual delas é a relevante? Uma unidade de poder de compra tem valor diferente dependendo do estado em que a economia se encontra – é essa, de fato, a essência do conceito de risco. Em tempos difíceis (uma recessão, por exemplo), ter um recurso adicional tem muito mais valor do que em períodos de abundância. Assim, um superávit obtido em uma situação de recessão tem um valor maior do que se ocorrido em um período de abundância, por ser descontado a uma taxa menor. Essa taxa que varia com o estado da economia é o que chamamos de taxa ajustada pelo risco. 3 Formalmente usamos o conceito de história para definir uma sequência de eventos aleatórios exógenos que afetam as variáveis relevantes do problema. Usaremos também o termo cenário para denotar história, já que este é um termo comumente usado. 84 Dívida Pública: a experiência brasileira Uma maneira intuitiva de entendermos a restrição orçamentária do governo na presença de incerteza é imaginando que, em determinado momento no tempo, o governo resolva ou necessite produzir um déficit primário, ou seja, opte por utilizar mais recursos do que aquilo que o dinheiro que retirou da sociedade por meio de arrecadação permite comprar. A questão é: como poderá financiar a diferença entre o valor arrecadado e seus gastos totais? Para que alguma pessoa ceda, temporária e voluntariamente, poder de compra ao governo é necessário que este lhe prometa devolver esse poder de compra com pelo menos o mesmo valor que essa pessoa o atribui. Como o pagamento somente se dará no futuro, e o futuro é incerto, o pagamento tem de ser ajustado em duas dimensões: temporal e de risco. Na dimensão temporal, poder de compra amanhã tem menos valor do que poder de compra hoje. Assim, deve-se pagar uma taxa de juros positiva. No que concerne ao risco, pessoas avessas a ele são aquelas que atribuem maior valor à renda quando a têm menos. O ajuste para o risco requer, de um lado, que o governo pague mais se optar por fazê-lo nos estados em que a pessoa já tem mais renda, mas também implica que o governo possa dar-se ao luxo de pagar um pouco menos se optar por fazê-lo nos estados em que a pessoa não tem renda. As consequências desse raciocínio são: i) uma política fiscal em que os superávits são gerados principalmente em momentos de recessão, ou seja, em que a dívida é abatida nesses momentos, está associada, porém, a uma dívida pública mais barata; ii) o menor custo dessa dívida advém da imposição de um maior custo social da tributação. Note, então, o grande desafio da política fiscal. Somente olhar para o custo médio da dívida pode induzir a uma política fiscal socialmente perversa, em que a redução da oferta de bens públicos e a elevação da carga tributária ocorrem exatamente nos momentos de recessão. Assim, ainda que enfatizemos aqui a questão da sustentabilidade, é importante ter em mente que aquelas políticas que parecem fazer mais sentido do ponto de vista de reduzir o custo financeiro da dívida podem ser as mais custosas do ponto de vista social, sendo, de fato, politicamente insustentáveis. O que se deve ter em mente, porém, é que, mesmo em um mundo caracterizado pela incerteza, a con- dição de sustentabilidade com dívida real continua a ser um cálculo de valor presente4 , (5) onde Et[ ] denota a esperança condicional às informações disponíveis no período t, e mt é o chamado fator estocástico de desconto (ou pricing kernel), uma variável aleatória que desconta os fluxos incertos para incorporar as dimensões tempo e risco. Ou seja, a taxa de desconto relevante para o desconto dos fluxos de superávits é ajustada para o risco.5 4 Bohn (1995) dá um exemplo da importância da escolha correta da taxa de desconto ao construir uma economia na qual a regra de política fiscal garante a manutenção da proporção dívida/PIB, mas a dívida não é sustentável (a condição de transversalidade é violada) quando a taxa de juros de mercado é usada como critério de desconto. 5 Um bom exemplo ocorre no âmbito do modelo Consumption Capital Asset Pricing Model (CCAPM), em que mt+1= u’(c t+1)/ u’(ct) é a taxa marginal de substituição intertemporal do indivíduo representativo. Aversão ao risco faz com que u’(c) seja de- crescente em c, atribuindo maior valor a momentos de recessão, em que o consumo é menor. Infelizmente, esse modelo, devido a Breeden (1979) e Lucas (1978), não tem sido bem-sucedido empiricamente. No entanto, diversas variantes que incorporam heterogeneidade no acesso aos mercados, funções utilidades em que o consumo relativo é relevante, riscos de longo prazo têm-se mostrado promissoras para a formulação de um modelo aceitável para mt. 85 Finalmente, cabe lembrar que estamos sempre considerando recursos reais. O setor privado abre mão da utilização de alguns recursos hoje para no futuro receber esses fluxos de volta de alguma maneira. Portanto, a contrapartida da elevação do endividamento hoje é também em recursos reais, sendo seu verdadeiro custo a redução da oferta futura de serviços públicos e/ou o aumento da tributação, nela considerados seus custos de peso morto. 2.2.1 Equação de apreçamento versus restrição orçamentária Antes de avançarmos para a próxima seção, vamos voltar a um ponto que mencionamos por várias vezes, mas que não explicamos com cuidado: a interpretação da equação (5) como restrição orçamentária em vez de equação de apreçamento. Comecemos por este último, lembrando que, assim como no caso determinístico, usamos na derivação da equação (6), como igualdade, a hipótese de que os indivíduos não poderão endividar-se permanentemente contra o governo,6 e temos que Bt em (5) representa o valor presente descontado pelo fator estocástico de descontos. Quando interpretada como uma equação de apreçamento, devemos substituir na equação (5) os valores contratualmente estabelecidos por aqueles que serão efetivamente pagos. Estes últimos não coincidirão com os primeiros sempre que houver default, ainda que parcial. Não há, nesse caso, nenhuma razão para exigir que os valores contratualmente estabelecidos trazidos a valor presente pelo mesmo fator estocástico de desconto coincida com Bt. Ou seja, para tornar compatíveis o valor Bt e os fluxos de pagamentos esperados do governo, faz-se necessário admitir que, em certas circunstâncias, os valores efetivamente pagos diferirão dos contratualmente estabelecidos. Subjacente ao valor de mercado está, entre outras coisas, a possibilidade de estados de insolvência. Assim, quanto menor o valor presente esperado dos superávits, menor o valor de mercado da dívida. Tecni- camente, a equação (4) torna-se uma equação de apreçamento e não uma restrição quanto às trajetórias possíveis de superávit.7 Como em uma equação de apreçamento, descontam-se os superávits futuros pela taxa de desconto relevante com o intuito de determinar o valor da dívida se este for inferior ao valor contratual descontado pela mesma taxa de desconto, então necessariamente há cenários em que o valor pago será inferior ao valor estabelecido contratualmente, isto é, haverá default em algum cenário. Este último aspecto é ainda mais sério quando se considera a dívida nominal, já que nesse caso o nível de preços se torna uma importante variável de ajuste no valor da dívida (COCHRANE, 2005): o default explícito é substituído pela elevação de preços como forma de adequação do fluxo futuro de superávits ao valor da dívida estabelecido em contrato. Se, porém, a equação (5) representa uma restrição orçamentária, fixados os valores dos pagamentos contratualmente estabelecidos, a equação mostra quais trajetórias de superávit são compatíveis com as 6 Nesse caso, , combinada com a condição de no-ponzi para o governo (análoga a (2)), nos dá 7 Mendoza e Oviedo (2004) expressam a mesma questão de uma outra forma: “[...] The sustainability criterion assumed implicitly a mechanism for adjusting the fiscal accounts to meet the constraint, and failure to meet the criterion means failure to comply with that implicit mechanism”. Ou seja, há sempre uma maneira de ajustar as variáveis para garantir a igualdade. O que pretendemos é restringir os mecanismos possíveis de ajuste para garantir que a equação seja, de fato, uma restrição orçamentária e não uma “maneira de definir o valor da dívida”. 86 Dívida Pública: a experiência brasileira promessas contratuais, isto é, as trajetórias cujo valor presente é igual a Bt, o qual, por sua vez, é igual ao fluxo contratualmente determinado descontado pelo fator estocástico de descontos. É somente neste último sentido que há de se falar em sustentabilidade. 3 Avaliações de sustentabilidade Como buscamos deixar claro, a natureza do conceito de sustentabilidade impede a definição de uma medida objetiva que determine se uma dívida é sustentável. O que os testes que vamos apresentar pretendem produzir, portanto, são indicadores capazes de auxiliar a formação de crenças sobre a trajetória futura de superávits, suas associadas taxas de desconto e sua compatibilidade com a satisfação da restrição orçamen- tária do governo. 3.1 Testes de estacionariedade da dívida A primeira forma de avaliação de sustentabilidade que vamos apresentar tem por essência testes de estacionariedade da dívida pública. Essa metodologia, que ganha força a partir do trabalho de Hamilton e Flavin (1986), é possivelmente a mais utilizada em trabalhos acadêmicos. De modo geral, dizemos que um processo estocástico é estacionário quando tende a reverter à sua média ou à sua tendência depois de um choque aleatório. Imaginemos, então, que a postura fiscal do governo seja tal que, em seguida a um choque que mude o valor da dívida, os superávits sejam elevados para fazer com que a dívida lentamente retorne a seu valor (ou, se a dívida tiver uma taxa de crescimento lenta, por exemplo, igual à taxa de crescimento do PIB, que retorne a essa tendência). Então, é fácil ver que essa postura fiscal faz com que o valor da dívida respeite a condição de transversalidade (3), isto é, que a dívida seja sustentável.8 No Brasil, essa metodologia foi usada pela primeira vez por Rocha (1997) e, em seguida, por Issler e Lima (2000), que mostram que a hipótese de estacionariedade para a dívida pública brasileira no período que vai de 1947 a 1992 não pode ser rejeitada. Mostram, ainda, que os ajustes são quase sempre obtidos por meio de elevação de impostos e que a receita de senhoriagem precisa ser somada à receita tributária para que a receita e a despesa convirjam no longo prazo. Ou seja, a sustentabilidade foi mantida graças à receita inflacionária no período analisado. Ourives (2002) estende o estudo de Issler e Lima (2000) para incluir déficits quase fiscais, enquanto Simonassi (2007) acrescenta a possibilidade de quebras estruturais à análise. Apesar de sua grande utilização, Bohn (2007) coloca em xeque toda essa literatura ao mostrar que uma dívida integrada de qualquer ordem arbitrária é sustentável.9 Como não se pode testar estacionariedade para todas as ordens, argumenta o autor, na prática torna-se impossível rejeitar sustentabilidade com esses testes. Nesse caso, não há como provar que uma dívida seja não sustentável usando tais testes de estacionariedade. Além dessa, há outra crítica importante aos testes de estacionariedade que deve ser considerada quando do seu uso. Os testes de estacionariedade são realizados utilizando a série de tempo observada. O pressuposto 8 Também nessa linha Bohn (1991) propõe-se a testar se as séries de impostos e gastos são co-integradas (com vetor de co- integração (1,-1)). Ou seja, se a série Gt-Tt é estacionária. 9 Se uma série é estacionária em nível, ou seja, Bt é estacionária, dizemos que é integrada de ordem 0. Se é em primeira diferença, ou seja, se Bt+1-Bt é estacionária, dizemos que é de ordem 1. Se estacionária em diferenças das diferenças, dizemos integrada de ordem 2. E assim por diante. 87 fundamental é de que o passado é um guia confiável para o que devemos esperar do futuro. Ainda que, em última análise, sempre dependamos da “história” para projetar o futuro, testes de estacionariedade fazem- no de uma forma bastante simplificada, o que nos pode levar a perder aspectos fundamentais da evolução histórica ao desconsiderar mudanças estruturais muito recentes. Há naturalmente procedimentos estatísticos capazes de minorar o problema (SIMONASSI, 2007), mas não de eliminá-lo.10 Uma alternativa interessante para que se incorporem informações não presentes nas séries históricas são os estudos que procuram simular a dinâmica da dívida usando como forma de projeção do futuro a ela- boração de cenários. Essa pode ser uma forma interessante e complementar de avaliar situações em que não esperamos que “o futuro repita o passado”. 3.2 Trajetória da relação dívida/PIB É costumeiro analisar a situação fiscal do governo de um país com base em sua relação dívida/PIB. São muitas as razões por que este único dado pode ser um indicador importante de solvência. Em primeiro lugar, o valor da dívida per se pouco quer dizer se não soubermos o tamanho da economia, já que o valor dos superávits potenciais depende, entre outras variáveis, do total de recursos que essa economia é capaz de produzir. Além disso, toda avaliação de sustentabilidade requer a formação de crenças acerca da capacidade do país de fazer o necessário sacrifício para gerar os superávits que garantam que a equação (3) seja satisfeita. O real custo desse sacrifício depende diretamente de que proporção da riqueza será empregada para esse fim.11 Para expressarmos a dinâmica da relação dívida/PIB, comecemos por dividir os dois lados de (1) por Yt+1, , Ou seja, , (6) ou, de forma equivalente, , (7) onde b, g e são, respectivamente, a dívida pública, os gastos públicos e a arrecadação tributária como proporção do PIB e t é a taxa de crescimento do PIB. 10 Simonassi (2007) explora um modelo de múltiplas quebras estruturais endógenas para avaliar a sustentabilidade da dívida no Brasil para o período de 1991 a 2006. 11 Aqui cabe ressaltar uma diferença crucial entre situações em que a dívida é detida por não residentes e situações em que o contrário ocorre. No primeiro caso, a totalidade dessa dívida e seus encargos representam um custo para os residentes. No segundo caso, desconsiderando-se os aspectos distributivos, os custos são somente os chamados custos de peso morto da tributação. 88 Dívida Pública: a experiência brasileira Suporemos, ao longo de toda a discussão, que a taxa de juros será (pelo menos em média) maior que a taxa de crescimento do PIB. Senão vejamos. Suponha que ambas, a taxa de crescimento do PIB e a taxa de juros, são constantes e que a taxa de crescimento do PIB é maior que a taxa de juros. Então o primeiro termo do lado direito da equação (7) é negativo. Isso implica que certo governo pode ter déficits ao longo de toda a sua história e, ainda assim, a dívida como porcentagem do PIB decrescer permanentemente. Essa é a razão prática para eliminarmos tal possibilidade. Há uma outra razão econômica para isso. Situações em que a taxa de crescimento da economia supera a taxa de retorno do capital são casos de inefi- ciência dinâmica da economia (BLANCHARD et al., 1991). Fundamentalmente, uma economia dinamicamente ineficiente é aquela em que existe um acúmulo excessivo de capital. Nesse caso, há espaço para ampliação do consumo sem sacrifício da renda disponível para as gerações futuras. Em uma economia dinamicamente ineficiente, o governo deveria, em termos de bem-estar, elevar a emissão de títulos até que a pressão sobre a taxa de juros fizesse com que ela, no mínimo, igualasse a taxa de expansão do produto. Dizer que há políticas que permitem a eliminação de ineficiências dinâmicas não implica que tais ineficiências não existam. Em última análise, trata-se de uma questão puramente empírica. Tomando por referência a economia americana ao longo da última década, temos que a taxa real de juros dos títulos da dívida pública não chegou a 1% em média, enquanto a taxa de crescimento da economia superava os 3%. Isso quer dizer que a economia americana era dinamicamente ineficiente? Não necessariamente.12 Em um mundo com incerteza, a questão da taxa de retorno relevante não é tão imediata, como já discutimos. Assim, formas alternativas de verificar eficiência dinâmica têm sido propostas, e esses estudos têm, em sua maioria, sugerido que a eficiência dinâmica caracteriza o processo de acumulação de capital nos Estados Unidos. No caso brasileiro, desconhecemos estudos dessa natureza. Note ainda que, mesmo que possamos evidenciar a eficiência dinâmica de uma economia com uma taxa média de juros inferior à taxa de crescimento do PIB, é oportuno perguntar se isso permite ao governo se aproveitar desse diferencial na condução de sua trajetória de endividamento. A resposta depende das razões subjacentes à baixa taxa de retorno dos títulos da dívida pública quando comparada à taxa de crescimento do PIB. Sem entendermos exatamente sua causa não é possível dizer se existe alguma oportunidade a ser aproveitada – por exemplo, por meio de uma melhora na repartição de risco entre os indivíduos – ou se a reduzida taxa de juros reflete uma elevada aversão ao risco em cujo caso não há ganho social em explorar o diferencial entre a taxa de crescimento e a taxa de juros da economia. Infelizmente, dado o atual estado da arte, não há uma explicação consensual para a baixa taxa de retorno dos títulos americanos observada nos últimos anos. Por simplicidade, adotaremos a hipótese de que a taxa de retorno é maior do que a taxa de crescimento do PIB, o que é verdade para o caso brasileiro. 3.2.1 Cálculo do superávit necessário para estabilizar a relação dívida/PIB Os estudos que usam a relação dívida/PIB como indicador de sustentabilidade, em sua maioria, exploram o comportamento dessa variável ao longo do tempo, avaliando se ela tem uma tendência de estabilidade ou decréscimo. Indicadores de sustentabilidade da política fiscal, em princípio, deveriam ser derivados da restrição orçamentária intertemporal do governo, de acordo com a qual o valor presente dos impostos deve ser igual 12 Como dissemos, ineficiência dinâmica está associada ao acúmulo excessivo de capital. Isso parece contraditório com a visão de que os americanos poupam menos do que o ótimo. Além disso, o retorno médio para o estoque de capital físico nos Estados Unidos aproxima-se de 10% ao ano. 89 ao valor presente dos gastos, incluindo os juros da dívida pública e o pagamento da própria dívida. Como a estabilidade da relação dívida/PIB está relacionada com a satisfação de (3)? Supondo rt>yt, uma dívida está- vel com relação ao PIB tem seu valor presente decrescente com o tempo. Portanto, a estabilidade da relação dívida/PIB é uma condição suficiente para garantir a sustentabilidade da dívida pública. Nesse caso, o mais simples uso da equação (7) para avaliação de sustentabilidade é pela avaliação do superávit necessário para manter constante a relação dívida/PIB. Ou seja, suponha bt+1 = bt=b, a equação (7) fica . (8) O lado direito da expressão anterior nos dá o superávit (como proporção do PIB) necessário para esta- bilizar a relação dívida/PIB em função da relação dívida/PIB atual, da taxa de juros e da taxa de crescimento da economia. Para valores moderados de crescimento do PIB, o denominador da expressão do lado direito de (8) tem pouca relevância, e podemos fazer um cálculo aproximado de maneira bastante elementar. Suponha, por exemplo, um país cuja relação dívida/PIB se encontre em 40%, cujo custo de carregamento (taxa real) dessa dívida seja de 7% e esteja crescendo a 5% ao ano. Nesse caso, o superávit necessário para estabilizar a relação dívida/PIB seria igual a (rt – yt) × bt= (0,07 – 0,05) × 0,4 = 0,008. Ou seja, 0,8% do PIB. Apesar de sua simplicidade, esse cálculo pode ser bastante útil. A construção de tabelas para cada hipótese sobre o comportamento dos juros e do crescimento do PIB pode servir de base, por exemplo, para a elaboração do orçamento anual do governo. Manter constante a relação dívida/PIB é suficiente para garantir a sustentabilidade fiscal, como vimos. No entanto, forçar ano a ano o superávit primário a satisfazer tal regra implica eliminar o papel fundamental do endividamento público: dissociar temporalmente gastos públicos do seu financiamento, escolhendo de forma independente o melhor momento de produzir um e outro. Assim, é preciso apresentar formas de avaliar a sustentabilidade, considerando trajetórias alternativas das variáveis em (6) que não impliquem necessariamente a constância da relação dívida/PIB. 3.2.2 Testes baseados na metodologia Value-at-Risk (VaR) Estudos recentes fazem uso da adaptação das ferramentas de gerenciamento de risco Value-at-Risk (VaR) e Cost-at-Risk (CaR) para o estudo da sustentabilidade da dívida.13 Ver, por exemplo, Barnhill e Kopits (2003), Bonomo et al. (2003) e Garcia e Rigobon (2004). A partir da versão estocástica da equação (1), várias trajetórias alternativas para a relação dívida pública/PIB são geradas. 13 Como veremos mais adiante, essas metodologias fazem parte do conjunto de instrumentos utilizados pelo Tesouro Nacional para a avaliação e o planejamento estratégico da dívida pública. 90 Dívida Pública: a experiência brasileira De acordo com a metodologia VaR, avalia-se qual o maior valor, tal que a relação dívida/PIB não se situe acima dele com uma probabilidade predefinida. Ou seja, primeiro um nível de confiança é escolhido: costumeiramente 95%. Um modelo estocástico gera caminhos alternativos para as variáveis relevantes e, a partir delas, para a relação dívida/PIB. Fixa-se um período à frente e, a partir da distribuição de relações dívida PIB, encontra-se o 95º percentil da distribuição associada. A metodologia CaR é semelhante à metodologia VaR e possivelmente mais compatível com a gestão da dívida pública. Em primeiro lugar, enquanto por sua natureza o cálculo do VaR exige a marcação a mercado da dívida, a metodologia CaR permite que se considere a evolução da dívida pelos custos contratualmente estabelecidos. Importante também é o fato de que horizontes mais longos são usualmente considerados no caso da metodologia CaR. Ambas as diferenças favorecem o uso da segunda metodologia para o caso específico da gestão da dívida pública. Uma importante limitação desses estudos diz respeito ao fato de que a determinação do quantil (dependendo da partição da distribuição podemos avaliar decis, percentis etc.) relevante é puramente sub- jetiva. Em um instigante artigo, Lima et al. (2008) fazem uso de um modelo de autorregressão quantílica, que combina testes de estacionariedade (para a relação dívida/PIB) com a metodologia VaR para verificar a sustentabilidade fiscal. Uma primeira grande vantagem dessa metodologia é que, em vez de estabelecer de forma arbitrária um quantil a ser considerado “de risco”, a metodologia permite identificar o quantil crítico em que a trajetória da dívida passa de sustentável para insustentável. Essa metodologia permite também a incorporação de não linearidades, o que pode ter consequências interessantes para a compreensão da forma como o governo conduz sua política de endividamento. Quando a relação dívida/PIB evolui de forma não linear, é possível que ela venha a exibir momentos de comportamento explosivo sem que sua trajetória global o seja. Isso não é possível em um modelo linear, já que os comporta- mentos local e global são idênticos. Ao se identificar o quantil crítico, é possível identificar a fração do período em que a dívida teve trajetória sustentável e a fração do tempo em que sua trajetória foi explosiva. Além disso, a metodologia permite determinar um limite de tolerância para a fração do tempo em que a dívida pode ter comporta- mento explosivo sem que isso implique que seja não sustentável, isto é, sem que o processo estocástico seja globalmente explosivo. Analisando a dívida brasileira para o período de 1976 a 2005, mostra-se que, apesar de a dívida brasi- leira ter-se situado acima do quantil crítico, isto é, ter exibido um comportamento explosivo 55% do tempo, a dívida é globalmente sustentável. O limite de tolerância estimado para o comportamento da série foi de 60% do tempo. Como o conceito de sustentabilidade está associado à ideia de estacionariedade, a metodologia é também sujeita à crítica de Bohn (2007). Parece-nos, ainda assim, uma interessante forma de apresentar informações acerca da postura fiscal do governo. 3.3 Patrimônio líquido do governo e ALM Considere uma empresa cujos ativos totais tenham um valor igual a R$ 100 milhões e uma dívida igual a R$ 50 milhões. Em princípio, os credores dessa firma imaginam que, em um processo falimentar, os ativos serão suficientes para cobrir as dívidas da firma, sentindo-se seguros para adiantar novos empréstimos ou 91 rolar a dívida existente. Em última análise, o processo falimentar não precisa ocorrer para tal firma, já que ela encontrará pessoas dispostas a supri-la com os fundos de que necessita. Tomando por base esse tipo de argumento, vários países começaram a fazer um levantamento dos ativos e dos passivos de seus governos para evidenciar seu estado de solvência. Mais importante, medidas foram tomadas para que ativos e passivos tivessem características de risco semelhantes, o que permitiria reduzir a volatilidade da dívida líquida do governo. Esse tipo de administração de risco, com gerenciamento de ativos e passivos, GAP (ou ALM, do inglês Asset and Liability Management), encontrou ressonância nas discussões sobre estrutura da dívida e tornou-se uma referência importante na condução da política financeira dos governos. Como vimos, porém, o principal ativo de um governo é seu poder de tributar; seu principal passivo, suas obrigações de prover bens públicos à sociedade. Assim, qualquer tentativa de adaptar a estrutura de passivos do governo a sua estrutura de ativos requer essencialmente um bom planejamento da distribuição de despesas e arrecadação ao longo do tempo e uma estrutura de endividamento que viabilize da melhor forma possível esse planejamento. 4 Sustentabilidade e solvência Nossa análise considerou sustentabilidade como associada à capacidade ou disposição de um governo de honrar seus compromissos, considerando que um governo tem um horizonte de tempo infinito para fazê-lo. Quando analisamos as crises de confiança ocorridas nos países, muitas vezes observamos que elas têm origem não em mudanças fundamentais na condução da política dos governos, mas em contrações de liquidez globais. Esse tipo de observação parece indicar que a simples satisfação de uma restrição intertemporal pode não ser suficiente em um mundo em que os mercados de capitais não são perfeitos. Para analisar a possibilidade de crises relacionadas à dívida externa, Xu e Ghezzi (2003) desenvolveram metodologia que permite identificar a probabilidade de que um país seja incapaz de fazer face a seus com- promissos financeiros em um cenário de restrição externa. Baghdassarian et al. (2004) adaptam o modelo de Xu e Ghezzi para a análise da dívida pública total, aplicando a metodologia para o caso brasileiro. A ideia de Xu e Ghezzi, ao analisarem o endividamento externo, é a de voltar as atenções para o nível de reservas e avaliar a probabilidade de que um país fique sem reservas em um determinado momento no tempo. Note a completa mudança de ênfase com relação à visão de longo prazo que aqui utilizamos. Trata-se, portanto, não de uma análise de sustentabilidade propriamente dita, mas de fragilidade financeira. Essa análise deve, portanto, ser vista como complementar, e não substituta à apresentada na presente discussão. Cabe destacar que, embora o estudo se refira à fragilidade da dívida externa sob o aspecto da escassez de reservas internacionais em um contexto de redução do influxo de capitais internacionais, a mesma análise pode ser estendida para o caso de um país que possua elevada dívida interna concentrada no curto prazo. Nessa situação, caso o governo não possua em caixa montante suficiente para pagamento da dívida em momentos de volatilidade no mercado doméstico, o risco de default pode elevar-se consideravelmente após sucessivos insucessos na tentativa de captar recursos para pagamento dessa dívida. E isso pode ocorrer mesmo que a dívida esteja em montante considerado sustentável. 5 Sustentabilidade e estrutura da dívida Um último ponto a ser considerado, mas não menos relevante, é que a sustentabilidade da dívida pú- blica de um país, em função de suas características, pode depender da volatilidade dos mercados financeiros doméstico e internacional e da volatilidade de sua economia. 92 Dívida Pública: a experiência brasileira Considere dois países com a mesma relação dívida/PIB em um determinado momento no tempo e que ao longo de alguns anos tenham o mesmo comportamento médio da diferença rt–γt. Se nenhum dos dois países gerar qualquer superávit no período, o país com a maior volatilidade da relação rt–γt tenderá a apresentar ao final do período uma relação dívida/PIB maior do que aquele com menor volatilidade. De fato, sob hipóteses adicionais sobre o processo estocástico das variáveis r e (na verdade, tomando r e γ como as taxas instantâneas correspondentes à nossa formulação inicial), tem-se que o valor esperado da relação dívida/PIB, depois de um intervalo de tempo de tamanho s, Et[bt+s], será dado por onde r e γ são, respectivamente, a taxa média de juros e a taxa média de crescimento da economia e σ2 é a variância de r–γ. Ou seja, quanto mais volátil essa diferença, maior a relação dívida/PIB esperada. Podemos explorar um pouco mais essa relação lembrando que σ2 = var (r) + var (γ) – 2 × cov (r,γ), onde var(.) denota a variância de uma variável e cov(.,.) a covariância entre duas variáveis. Nesse caso, a variância total da diferença depende, de um lado, da soma das variâncias da taxa de retorno e da taxa de crescimento da economia e, de outro, da covariância entre essas duas variáveis. Controlar a volatilidade da taxa de crescimento do PIB é algo muito além do que o administrador da dívida possa tentar alcançar. Já a volatilidade da taxa de carregamento da dívida pode ser reduzida por meio de administração eficiente da dívida pública. Dívidas longas, prefixadas (ou indexadas a um índice de preços), por exemplo, têm um custo de carregamento mais ou menos constante, o que permite manter a volatilidade de r em níveis aceitáveis. Mas há uma estratégia ainda mais interessante a ser seguida pelo administrador, que é escolher uma estrutura de dívida tal que a taxa de carregamento covarie fortemente com a taxa de crescimento do PIB. A um mesmo custo esperado, esse tipo de desenho da dívida pública garante um menor crescimento esperado da relação dívida/PIB. Uma questão pertinente, portanto, é se esse tipo de desenho é possível a um mesmo custo. A questão aqui é que um ativo que covaria positivamente com a taxa de crescimento do PIB é um ativo arriscado para os poupadores (em oposição a um ativo que covaria negativamente, que oferece oportunidade de hedge). Os pou- padores vão demandar, portanto, um prêmio de risco para carregar uma dívida pública com elevada correlação com o PIB, elevando .14 O desenho ótimo da dívida deverá levar em consideração todos esses efeitos. Estivemos supondo que o superávit no período é igual a zero. Na prática, porém, esse é um outro instrumento que pode ser usado para evitar que a volatilidade da taxa de crescimento da relação dívida/ PIB seja alta. De fato, há uma razão importante por que se pode desejar usar esse instrumento. Se um país falhar em aumentar suficientemente o superávit primário em momentos de crise de confiança, a percepção 14 Em um mundo de mercados completos e agentes perfeitamente racionais, o aumento de r é tal que a política de administração da dívida se torna irrelevante no sentido de que toda economia de recursos se dá por meio de elevação do risco associado à estru- tura da dívida. Naturalmente, os mercados não são completos e os agentes não são dotados da racionalidade ilimitada necessária para que valha a irrelevância. A importância dessa consideração está mais em mostrar que economias aparentes de recursos podem vir à custa de uma elevação do risco associado; notadamente na forma de uma exigência de desviar da distribuição temporal de impostos e/ou gastos públicos mais eficientes do ponto de vista do bem-estar social. 93 de que a dívida pública não é sustentável pode resultar em maiores taxas de juros, o que pode fazer com que o governo entre em um círculo vicioso, em que uma dívida mais elevada induz a uma elevação de seu próprio custo de carregamento. Essa não linearidade no comportamento da dívida exacerba o valor de uma estrutura estável. A volatilidade excessiva deve, portanto, ser evitada por meio de uma estrutura de dívida cuja dinâmica não seja tão sensível aos movimentos de curto prazo das variáveis relevantes e por meio de um comportamento fiscal tanto quanto possível voltado à neutralização desses eventos adversos. Também nessa linha, Favero e Giavazzi (2007) sugerem que países caracterizados por um ambiente macroeconômico menos estável deveriam ter em mente que as condições necessárias para estabilizar a dí- vida são mais exigentes. Em particular, a solvência do país é mais questionável do que em outros países que possuem uma razão dívida/PIB similar, mas convivem com menor volatilidade econômica. Uma política que procure gerar maior estabilidade reduz a percepção por parte dos credores quanto à responsabilidade fiscal do governo e, consequentemente, os efeitos adversos dessas não linearidades do comportamento da dívida. Finalmente, cabe ressaltar que, como vimos na seção 4, muitos dos episódios que culminaram em repúdio das dívidas dos países estão associados não a um crescimento anormal da relação dívida/PIB, mas a um aperto de liquidez dos mercados que impediram o refinanciamento da dívida de países que estavam mantendo certa estabilidade da sua relação dívida/PIB. Portanto, é também na busca de evitar a vulnerabilidade do governo em momentos dessa natureza que a administração encontra um dos seus principais objetivos. Em particular, dívidas de curto prazo ou dívidas cujos vencimentos estão por demais concentrados expõem o governo a um risco excessivo e, no caso da concentração, absolutamente não justificável. 6 Sustentabilidade e gerenciamento da dívida pública no Brasil No Brasil, o Ministério da Fazenda conduz continuamente análises de sustentabilidade da dívida pública. Nesse sentido, a Secretaria de Política Econômica (SPE) e o Tesouro Nacional realizam avaliações distintas, ainda que complementares. Enquanto a SPE avalia a dinâmica da relação dívida/PIB, à luz da formalização explicitada na equação (7), para melhor definir o primário necessário para garantir a solvên- cia fiscal,15 e em última instância, o equilíbrio macroeconômico de longo prazo, a Secretaria do Tesouro Nacional incorpora elementos de sensibilidade a essa análise, à luz da evolução da composição dos ativos e dos passivos governamentais. Como explorado na seção anterior, o gestor da dívida pública pode ter uma contribuição importante nas análises de sensibilidade ao agregar a dimensão da composição da dívida pública atual e a estratégia de financiamento para os próximos anos nas análises. Além disso, pode agregar a dimensão de risco e refinar a avaliação dos custos dos ativos e dos passivos nessa mesma análise, dada sua expertise na gestão de riscos da dívida. Dessa forma, a área da dívida pública do Tesouro Nacional brasileiro desenvolveu ferramentas para contribuir com a análise de sustentabilidade da dívida, tomando como dados o superávit primário para os próximos anos definido na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e agregando as expectativas em relação 15 O governo federal, por proposta dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento, envia anualmente ao Congresso Nacional pro- jeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que direcionará o orçamento do ano subsequente. Em seu anexo de metas fiscais, a referida lei, com base nos parâmetros da SPE, apresenta meta de superávit primário do governo federal para os três anos seguintes, bem como sua expectativa de evolução da dívida pública, dados os parâmetros macroeconômicos projetados. 94 Dívida Pública: a experiência brasileira à taxa de juros real e ao crescimento econômico e a estratégia de financiamento da dívida, bem como as incertezas associadas a ela e às outras variáveis da análise. Nesse contexto, estão os estudos de composição ótima da dívida pública, ou benchmark, que procuram medir o custo e o risco de diferentes composições em termos dos seus impactos na relação dívida/PIB.16 A esse respeito, e como procuramos deixar claro em nossa exposição, a estrutura da dívida tem um efeito importante sobre a sustentabilidade fiscal. Em primeiro lugar, porque o aumento da volatilidade do estoque da dívida leva a uma elevação do custo de financiamento esperado para um prazo mais longo. Em segundo lugar, temos as não linearidades apontadas por Fávero e Giavazzi (2007), em que mudanças temporárias na trajetória de endividamento podem ser percebidas como permanentes, o que acarreta elevação dos custos e, em última análise, exacerbação da volatilidade, com as já mencionadas consequências sobre o custo de carregamento da dívida. Em virtude da relação entre estrutura da dívida e sustentabilidade, a administração da dívida torna-se uma componente importante na política fiscal de uma nação. Não por outra razão, a Secretaria do Tesouro Nacional vem, ao longo de mais de uma década, aperfeiçoando os instrumentos de avaliação e planejamento da dívida. Cada vez mais a escolha dos instrumentos apropriados leva em consideração não somente os custos imediatos, mas também os riscos envolvidos e uma composição balanceada. Estatísticas descritivas, exercícios com as metodologias Cost-at-Risk (CaR) para o estoque (risco financeiro) e Cash-Flow-at-Risk (CFaR) para os fluxos futuros (risco de refinanciamento), dentre outras, são realizados tanto para avaliação da situação corrente quanto para a formulação de diretrizes de longo prazo com a construção de composições ótimas (benchmarks) e estratégias de transição.17 No que concerne aos riscos de refinanciamento, a administração da dívida pública brasileira tem-se caracterizado pela busca da suavização dos vencimentos dos títulos. Mesmo em períodos de grande volatilidade das taxas de juros, a utilização de títulos pós-fixados indexados à taxa Selic consentiram a separação entre risco de taxa de juros e risco de refinanciamento, permitindo ao governo carregar o primeiro (cujos efeitos estão fundamentalmente associados à sustentabilidade) enquanto eliminava, ou fortemente reduzia, o segundo.18 7 Conclusão Conquanto o conceito de sustentabilidade possa ser formalizado de maneira livre de ambiguidades, não é possível um teste de sustentabilidade capaz de indicar de forma inequívoca se a trajetória de endividamento de um país é sustentável. Na prática, a sustentabilidade da dívida, além de envolver grande incerteza quanto ao comportamento de variáveis difíceis de serem antecipadas, depende de opções políticas cuja avaliação envolve a formação de crenças acerca da postura de governos presentes e futuros. Ainda assim, vários indicadores que examinamos aqui podem ser de grande ajuda para que possamos processar com alguma disciplina as informações contidas nas séries históricas. Todos os indicadores pres- supõem, de alguma maneira, que o passado é um bom guia para entendermos o futuro (que é o que importa 16 Para maiores detalhes sobre o modelo de composição ótima da dívida pública, ver Capítulo 3 da Parte 2. 17 No apêndice a este capítulo apresentamos um exemplo de estudo realizado no âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional para efeitos puramente ilustrativos. Mais detalhes acerca dessas metodologias, além das formas como elas afetam as estratégias de emissão de títulos públicos, serão apresentados nos Capítulos 2 e 3 da Parte 2. 18 Este efeito é evidenciado pela característica do título de ter um prazo médio elevado, concomitantemente com uma du- ration mínima. 95 do ponto de vista da sustentabilidade) em relação à condução da política fiscal. Instituições mudam, governos se alternam e o futuro não precisa repetir o passado. É importante, então, que as avaliações técnicas não sejam tomadas isoladamente, mas entendidas como uma forma consistente de organização de algumas das informações que a história oferece. Um aspecto também importante da discussão está relacionado ao fato de que, ainda que o conceito de sustentabilidade esteja associado ao comportamento de longo prazo da política fiscal, muitas das crises de solvência dos governos são caracterizadas por restrições de liquidez de curto prazo. É, nesse caso, impor- tante ter em mente que a análise da situação fiscal de um governo deve compreender ambas as dimensões da questão. Cabe ressaltar, finalmente, a importância da postura fiscal do governo e da estrutura da dívida pública para garantir que ela não exiba uma trajetória que possa ser percebida como insustentável, principalmente quando lembramos que a percepção adversa quanto à sustentabilidade pode afetar o custo de rolagem da dívida e, em última instância, induzi-la como uma profecia autorrealizável. Referências BARNHIL, Theodore; KOPITS, George. Assessing fiscal sustainability under uncertainty. IMF Working Paper 03/79. International Monetary Fund, 2003. BAGHDASSARIAN, William Carlos da Costa; SILVA, Anderson. Assessing three models for the analysis of debt sustainability. 2004. Mimeografado. BLANCHARD, Olivier; CHOURAQUI, Jean-Claude; HAGEMANN, Robert; SARTOR, Nicola. The sustainability of fiscal policy: new answers to an old question. NBER Working Paper, R1547, 1991. BOHN, Henning. Are stationarity and cointegration restrictions really necessary for the intertemporal budget constraint? 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O exercício considera algumas premissas básicas para as principais determinantes da dinâmica da dívida para um período de dez anos: taxas nominais de juros, inflação, crescimento do PIB e superávit primário.19 No cenário determinístico básico, conduzimos um primeiro teste de sustentabilidade. O Gráfico 1 mostra a trajetória esperada para a relação dívida/PIB. Gráfico 1. Trajetória esperada para a relação dívida/PIB Cenário determinístico Em seguida, ilustramos a geração de trajetórias estocásticas para todas as variáveis. A cada momento do tempo é possível extrair uma distribuição de relações dívida/PIB produzidas a partir deste exercício. Os parâmetros dos processos estocásticos subjacentes foram escolhidos de tal forma que produzissem um valor médio semelhante ao produzido no cenário determinístico. Alternativamente, poder-se-ia escolher os parâmetros para que produzissem o cenário determinístico quando a volatilidade era “neutralizada”, para ilustrar seu impacto no custo de carregamento médio da dívida. Um outro aspecto nos exercícios é a inclusão de hipóteses explícitas sobre a estratégia de financiamen- to. Se o governo opta por ampliar a duração da dívida, seja por meio do alongamento dos prazos de títulos prefixados, seja pela redução da participação de títulos pós-fixados, variações na taxa de juros produzem impacto sobre uma porcentagem menor da dívida pública, reduzindo dessa forma a volatilidade no seu custo de carregamento. Há um custo adicional envolvido em tal estratégia, mas raciocínios como esse podem ser formalmente incorporados e, sob algumas hipóteses explícitas, quantificados. 19 Maiores detalhes sobre simulações como esta podem ser conferidos no Capítulo 3 da Parte 2 (Gerenciamento de riscos da dívida pública). 98 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 2. Distribuição das relações dívida/PIB em diferentes horizontes sem estratégia de refinanciamento O governo passa a ter nesses exercícios um poderoso aliado na construção de suas estratégias de endividamento de longo prazo. O Gráfico 3 ilustra um exercício semelhante ao apresentado no Gráfico 2 com a inclusão de hipóteses explícitas com relação à estratégia de refinanciamento da dívida. Gráfico 3. Distribuição das relações dívida/PIB em diferentes horizontes incluindo estratégia de refinanciamento Enquanto no primeiro exercício a dívida é 100% composta de instrumentos à taxa flutuante, a estraté- gia de refinanciamento contempla instrumentos prefixados de dez anos.20 Seu custo maior, devido ao prêmio de risco de taxa de juros cobrado pelos demandantes, tem por contrapartida uma menor vulnerabilidade da dívida a movimentos na taxa de juros. Os exercícios explicitam os trade-offs em custo/risco envolvidos nas diferentes estratégias. 20 A estratégia de refinanciamento assume que 1% da parcela flutuante vence e é trocada mensalmente pelos instrumentos pre- fixados de dez anos. Ao final desse período, obtemos uma composição de 100% da dívida em instrumentos prefixados. 99 100 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 1 Capítulo 4 Conceitos e estatísticas da dívida pública1 Aline Dieguez B. de Meneses Silva Otavio Ladeira de Medeiros 1 Introdução Este capítulo tem por objetivo apresentar os principais conceitos, estatísticas e relatórios referentes à dívida pública divulgados atualmente pelo governo brasileiro, com o intuito de facilitar a compreensão dos temas que serão abordados nos capítulos seguintes. Para tal, estruturamos o capítulo em cinco seções. Após esta breve introdução, na segunda seção, com base na estrutura do setor público e respeitando as particularidades do caso brasileiro, apresentaremos os diversos conceitos de dívida pública regularmente divulgados em documentos oficiais. Na terceira seção, serão destacados os indicadores de dívida tradicio- nalmente utilizados para permitir, a partir da sua correta compreensão, a melhor avaliação da qualidade do endividamento público do Brasil. Já na quarta seção, serão apresentados os relatórios atualmente divulgados sobre a Dívida Pública Federal (DPF), além de outras fontes de divulgação de estatísticas sobre o tema, oriundas do Banco Central. Por fim, a quinta seção apresenta as recomendações dos organismos internacionais em relação à forma e à abrangência das estatísticas de dívida pública de um país, conforme disposto em seus documentos oficiais, compara essas recomendações com os dados divulgados pelo Brasil e sugere alguns aperfeiçoamentos que permitiriam avançar em relação ao progresso já atingido. 2 Conceitos básicos O setor público abrange a administração direta, as autarquias e as fundações das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e suas respectivas empresas estatais, o Banco Central e o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). O conceito de setor público, para fins de apuração dos indicadores de dívida pública, considera as instituições públicas não financeiras, bem como os fundos públicos que não possuem características de intermediários financeiros, isto é, aqueles cujas fontes de recursos advêm de contribuições fiscais ou parafiscais, além da empresa Itaipu Binacional. As estatísticas de dívida pública podem ser apresentadas sob diversas abrangências no âmbito do setor público, já que este engloba, como já dissemos, as três esferas de governo, suas respectivas empresas estatais, o Banco Central e o INSS. Além da definição mais ampla de setor público, os outros conceitos utilizados no país são os de governo central (Tesouro Nacional, INSS e Banco Central), governo federal (Tesouro Nacional 1 Os autores receberam a valiosa contribuição de Ethan Weisman, do Fundo Monetário Internacional (FMI), que redigiu a quinta seção deste capítulo (Referências internacionais e comparação com as estatísticas de dívida brasileiras). 101 e INSS), governo geral (governos federal, estadual e municipal), governos regionais (governos estaduais e municipais) e empresas estatais (empresas estatais federais, estaduais e municipais). Mas o que é dívida? A dívida é uma obrigação de determinada entidade com terceiros, gerada pela diferença entre despesas e receitas dessa entidade. Em outras palavras, só há dívida quando há déficit (despesas maiores que receitas), embora muitas vezes ocorra defasagem entre a realização do déficit e a contabilização da dívida. O conceito de dívida pública, assim como os demais conceitos fiscais,2 pode ser representado de diferentes modos, sendo as mais comuns a dívida bruta (que considera apenas os passivos do governo) e a dívida líquida (que desconta dos passivos os ativos que o governo possui). A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) refere-se ao total das obrigações do setor público não financeiro,3 deduzido dos seus ativos financeiros junto aos agentes privados não financeiros e aos agentes financeiros, públicos e privados. No caso brasileiro, é importante mencionar que, diferentemente de outros países, o conceito de dívida líquida considera os ativos e os passivos financeiros do Banco Central, incluindo, dentre outros itens, as reservas internacionais (ativo) e a base monetária (passivo). Nas estatísticas da DLSP, divulgadas pelo Banco Central,4 o estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) é apurado pelo critério de competência, ou seja, os juros são contabilizados pro rata, apro- priando os valores devidos, independentemente da ocorrência de pagamentos no período. Já em relação à dívida externa, a apuração do estoque dá-se pelo critério caixa, contabilizando os juros apenas quando ocor- rem os pagamentos. Nas estatísticas divulgadas pelo Tesouro Nacional, entretanto, a Dívida Pública Federal, tanto interna (DPMFi) quanto externa (DPFe), é classificada pelo critério de competência.5 Um ponto importante a destacar é que o conceito de dívida líquida6 é o que mais comumente se utiliza para fins de acompanhamento da sustentabilidade fiscal de um país. O Fundo Monetário Internacional (FMI) defende inclusive a criação de um conceito mais amplo, que representaria o “patrimônio público”, o qual incluiria ativos não financeiros, como ações de empresas estatais e imóveis, e passivos contingentes, dentre outros itens.7 2 Maior detalhamento dos demais conceitos fiscais encontra-se no Anexo deste capítulo. 3 Tais como as dívidas interna e externa, tanto mobiliária quanto contratual, os compulsórios, as operações compromissadas e a base monetária. 4 Para maiores informações, encontra-se disponível no site do Banco Central (www.bcb.gov.br) a Nota para a imprensa – política fiscal, documento mensal que divulga as principais estatísticas referentes à DLSP, bem como os juros, o resultado primário e a necessidade de financiamento do setor público e de cada ente em particular. 5 Para maiores informações, encontra-se disponível no site do Tesouro Nacional (www.tesouro.fazenda.gov.br) o Relatório Mensal da Dívida Pública Federal (DPF), que torna públicas as principais estatísticas referentes às dívidas interna (DPMFi) e externa (DPFe) do governo federal. 6 No caso do Brasil, por exemplo, a DLSP é o indicador de dívida considerado pelo governo federal como referência para fins de decisões de política econômica. 7 Para maiores referências, consultar a seção 5 deste capítulo. 102 Dívida Pública: a experiência brasileira Dívida Fiscal Líquida A partir de 2001, um conceito alternativo de Dívida Líquida passou a ser publicado, a Dívida Fiscal Líquida, que corresponde à DLSP, excluindo-se o efeito dos passivos contingentes já reconhecidos e contabilizados (chamados “esqueletos”), das receitas de privatização e de outros itens que impactam o estoque da dívida no período sob análise, mas não representam fluxo advindo de esforço fiscal. A variação da Dívida Fiscal Líquida corresponde ao resultado fiscal nominal do período. Dívida Líquida do Setor Público (A) Ajuste de Privatização (B) Ajuste Patrimonial (C) Ajuste Metodológico sobre a dívida externa (D) Dívida Fiscal Líquida com câmbio (E = A-B-C-D) Ajuste Metodológico sobre a dívida interna (F) Dívida Fiscal Líquida (G = E-F) Dito de outra forma, o ajuste de privatização, o ajuste patrimonial e os ajustes metodológicos sobre as dívidas externa e interna são variações nos saldos da DLSP não consideradas no cálculo do resultado nominal do setor público, por não terem correspondência em itens de receitas e despesas. O ajuste de privatização refere-se às receitas de privatização, recebidas sob a forma de recursos e títulos públicos durante o Programa Nacional de Desestatização (PND). Já os ajustes patrimoniais são os chamados “esqueletos”, que correspondem a dívidas decorrentes de passivos contingentes não contabilizados no estoque da dívida no momento em que ocorreram.8 Por fim, o ajuste metodológico visa a corrigir três tipos de efeitos. O principal deles refere-se à variação cambial sobre o estoque da dívida, de maneira que permita sua correspondência com o cálculo da necessidade de financiamento do setor público (fluxo de receitas e despesas). Nesse sentido, corresponde à diferença entre os conceitos de estoque da dívida, para o qual se utiliza a taxa de câmbio de final de período, e o fluxo fiscal, cuja taxa de câmbio que mais se aproxima para fins de mensuração do valor em reais é a taxa de câmbio média do período. O segundo efeito corresponde à diferença entre os conceitos de caixa e competência na apropriação dos juros da dívida externa.9 Já o terceiro se refere ao ajuste de paridade da cesta de moedas que integram a dívida externa e as reservas internacionais. Estes dois últimos efeitos passaram a ser realizados a partir de setembro de 2005. 8 O Banco Central divulga as informações referentes aos principais itens de ajuste patrimonial em sua Nota para a imprensa – po- lítica fiscal, disponível em seu site (www.bcb.gov.br). 9 Este se deve ao fato de que as estatísticas da DLSP apropriam os juros da dívida externa pelo critério de caixa, diferentemente da dívida interna, que é apropriada pelo critério de competência. 103 No que se refere à dívida bruta,10 esta pode ser classificada quanto à origem, à abrangência e à natureza.11 Quanto à origem, a dívida pode ser classificada em interna ou externa. A experiência internacional tem demonstrado ser possível classificar a dívida de duas formas distintas, variando em função dos riscos con- siderados relevantes para o gestor da dívida, dentre outros fatores. Em países com histórico de crises em seu balanço de pagamentos, o critério que melhor capturaria os riscos associados à dívida é o referente à moeda utilizada para negociação do título. Nesse caso, seria classificada como dívida interna aquela denominada na moeda corrente do país e como dívida externa aquela denominada em outras moedas que não a moeda corrente.12 Por esse critério, percebe-se melhor a pressão do fluxo gerado por uma dívida, ao longo do tempo, sobre o balanço de pagamentos, bem como os riscos inerentes a uma possível crise cambial. Essa é a forma de classificação atualmente utilizada pelo Brasil. Outro critério possível é considerar como dívida interna aquela que está em poder dos residentes no país e como externa aquela em poder dos não-residentes. Essa classificação é mais interessante para países que possuem livre fluxo de capitais, assumindo que o investidor não residente tem comportamento diferente do residente. Assim, títulos denominados em moeda local, mas possuídos por não residentes, seriam considerados dívida externa, e títulos denominados em moeda estrangeira detidos por residentes seriam considerados dívida interna. Esse segundo critério é o proposto pelo FMI para divulgação das estatísticas de dívida dos países,13 não obstante a existência de dificuldades em conseguir, com as centrais de liquidação e custódia, notadamente as internacionais, informações sobre os detentores finais dos títulos da dívida pública, o que poderia reduzir a qualidade da estatística gerada. Outro ponto importante refere-se ao fato de que esse segundo critério permite que a composição da dívida se altere apenas em função das negociações em mercado, sem que haja qualquer mudança de estra- tégia por parte do gestor. Embora tal particularidade não invalide a qualidade da estatística, que continua a atender ao objetivo de monitorar os riscos gerados por detentores cujas atitudes, a princípio, são distintas, uma alternativa seria a produção e a divulgação de estatísticas paralelas para evitar distorções na análise, principalmente em momentos de grande mudança de posição entre os detentores. Um terceiro critério, menos usual, seria utilizar o fórum eleito para discussão de controvérsias entre cre- dores e devedores para classificação da dívida. Nesse sentido, a dívida interna seria aquela cujas discordâncias em relação aos valores devidos ou qualquer outro assunto a ela referente deveriam ser discutidas no âmbito do Poder Judiciário do país emissor. Já a dívida externa seria aquela em que a corte judicial para decidir sobre tais pendências teria sede em outro país que não o de emissão do título ou do contrato. 10 A partir deste ponto, para fins didáticos, restringiremos a análise da dívida bruta à da Dívida Pública Federal (DPF) de responsabi- lidade do Tesouro Nacional. Dentre os passivos constantes da DLSP e não considerados pela abrangência da DPF estão as dívidas contratuais interna e externa do Banco Central, das empresas estatais, dos estados e dos municípios, bem como a base monetária. Para termos uma percepção da relevância da DPF no total do passivo governamental, em junho de 2007 o estoque de todos os passivos da DLSP, ou seja, a dívida bruta do setor público era de R$ 1.786 bilhões, enquanto somente a DPF em poder do público equivalia, nessa mesma data, a R$ 1.325 bilhões, representando aproximadamente 75% daquela. 11 A legislação brasileira traz formas adicionais de classificação da dívida, tais como dívida flutuante e fundada, não conflitantes com as apresentadas neste capítulo. Tais classificações podem ser encontradas no Capítulo 5 da Parte 2 (Marcos regulatórios e auditoria governamental da dívida pública). 12 A dívida interna poderia, em última instância, ser paga com emissão de moeda pelo Banco Central, enquanto a externa não. Esse é um dos motivos pelos quais observamos algumas agências de classificação de risco atribuindo risco menor à dívida interna, comparativamente à externa. 13 Para maiores detalhes, ver International Monetary Fund. Government finance statistics manual 2001 (GFSM). December, 2001. 104 Dívida Pública: a experiência brasileira Como destacado antes, não se deve considerar uma metodologia certa ou errada sem antes avaliar os prós e os contras de sua utilização. As diferentes formas de classificação de dívida pelos países de- veriam refletir suas percepções de risco em relação a ela, fruto de seu histórico macroeconômico e de suas perspectivas em relação ao futuro, bem como das dificuldades em se gerar as estatísticas com qualidade sob um critério ou outro. No que diz respeito à abrangência, como mencionado anteriormente, além do setor público, os conceitos mais utilizados são os de governo central (Tesouro Nacional, INSS e Banco Central), governo federal (Tesouro Nacional e INSS), governo geral (governo federal e governos regionais), governos regionais (governos estaduais e municipais) e empresas estatais (empresas estatais federais, estaduais e municipais). Quanto à natureza, a dívida pública pode ser classificada em contratual ou mobiliária. No primeiro caso, esta se origina a partir de um contrato, o qual define as características da dívida. No segundo caso, a dívida origina-se a partir da emissão de um título, que possui autonomia em relação ao fato que o originou. Atualmente no Brasil, a dívida contratual de responsabilidade do Tesouro Nacional refere-se exclusivamente à dívida externa, tendo em vista que a dívida contratual interna foi securitizada ao longo dos anos, passando a ser classificada como parte da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi).14 As características dos títulos da DPMFi estão definidas em legislação específica.15 No caso da dívida externa de responsabilidade do Tesouro Nacional, também conhecida como Dívida Pública Federal externa (DPFe), há necessidade de autorização para cada empréstimo externo, exceto em relação à dívida mobiliária, para a qual existe uma autorização geral para a emissão de títulos, que estabelece o montante máximo a ser emitido.16 A Dívida Mobiliária Interna (DPMFi) pode ser classificada quanto: i) à forma de emissão; ii) à forma de negociação; e iii) a seus detentores. Quanto à forma de emissão, a dívida é classificada como em “oferta pública” quando os títulos são emitidos sob a forma de leilão e suas taxas de emissão são formadas em processo competitivo, e sob a forma “direta” quando emitidos para atender a contrato específico ou determinação legal. Essas podem ter ou não como contrapartida recursos financeiros.17 São exemplos de emissões diretas a securitização de dívidas e as emissões para fins de reforma agrária (TDA). No que diz respeito às emissões em “oferta pública”, estas envolvem os títulos públicos mais negociados no mercado, tais como as Letras Financeiras do Tesouro (LFT), as Letras do Tesouro Nacional (LTN) e as Notas do Tesouro Nacional (NTN).18 14 A chamada dívida securitizada decorreu, em sua quase totalidade, da renegociação de dívidas da administração direta ou in- direta, originadas de contratos firmados e não cumpridos, e teve como principais credores o sistema bancário (oficial e privado), fornecedores, empresas prestadoras de serviços e empreiteiras. A renegociação dos referidos passivos envolveu a repactuação das condições previstas nos contratos originais. Direitos e características quase sempre heterogêneos e pertencentes a credores di- versos foram permutados por instrumentos de crédito homogêneos, registrados em sistema escritural de custódia desenvolvido pela Cetip (Câmara de Custódia e Liquidação), quando a dívida, então contratual, passou a ser considerada dívida mobiliária. O detalhamento dos títulos emitidos no âmbito do programa de securitização de dívidas encontra-se no site do Tesouro Nacional (www.tesouro.fazenda.gov.br). 15 Tendo em vista que o Banco Central não mais emite títulos, a dívida mobiliária interna do Tesouro Nacional representa a dívida mobiliária interna do governo federal. Os principais instrumentos legais que a regem são a Lei nº 10.179, de 6 de fevereiro de 2001, e o Decreto nº 3.859, de 4 de julho de 2001. 16 Resolução do Senado Federal nº 20, de 2004, que autorizou inclusive a realização de operações com derivativos financeiros. 17 A maior parte dessas emissões não tem como contrapartida recursos financeiros. Nesse sentido, as emissões aumentam o es- toque da dívida líquida. Geralmente correspondem à implementação de políticas públicas, tais como a equalização das taxas de financiamento à exportação e a reforma agrária. 18 São atualmente emitidas em mercado a série B, corrigida pelo IPCA, e a série F, que corresponde a um título prefixado com cupons de juros. 105 Quanto à forma de negociação, os títulos podem ser classificados como negociáveis, nos casos em que não há qualquer restrição à sua livre negociação no mercado, e inegociáveis, quando são impedidos, por questões legais ou operacionais, de ter sua propriedade transferida de um detentor para outro.19 No que diz respeito aos detentores, os títulos podem estar na carteira do Banco Central ou em poder do público.20 No primeiro caso, o efeito do estoque é nulo sobre a DLSP, pois a dívida, notadamente títulos da DPMFi, estaria registrada no ativo do Banco Central e no passivo do Tesouro Nacional em igual montante, havendo cancelamento das contas quando da consolidação dos balanços do setor público. Nesse sentido, o estoque em mercado é a estatística relevante para acompanhamento dos riscos e dos custos da gestão da Dívida Pública Federal, da sustentabilidade fiscal e da liquidez monetária. Já a Dívida Mobiliária Externa pode ser classificada em dois grandes grupos: i) dívida renegociada; e ii) novas emissões. No primeiro grupo estão os títulos emitidos no âmbito dos programas de renegociação da dívida externa, tais como o BIB, o IDU e os Brady Bonds.21 No segundo grupo estão os títulos emitidos em ofertas públicas após finalizado o processo de renegociação da dívida externa,22 quando o Brasil voltou a acessar o mercado internacional. É importante mencionar que, no Brasil, os governos estaduais e municipais não acessam diretamente o mercado internacional por meio da emissão de títulos. Os recursos externos por eles captados referem-se exclusivamente a contratos de empréstimos com organismos multilaterais (notadamente o Banco Internacional para o Desenvolvimento Econômico (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)) e agências governamentais. Por fim, a Dívida Contratual Externa tem diversas origens, dentre as quais se destacam, no caso brasileiro, as contraídas para financiamento de projetos e programas de interesse do país com: i) organismos multilaterais (principalmente o Bird e o BID); e ii) bancos privados e agências governamentais (Japan Bank for International Cooperation (JBIC) e KfW, dentre outros). Adicionalmente, há a dívida refinanciada com o Clube de Paris, no âmbito do programa de renegociação da dívida contratual externa, iniciado na década de 1980 e terminado em 1992. Essa dívida foi paga antecipadamente, em sua totalidade, ao longo do primeiro semestre de 2006. Cabe destacar que, quando ocorria contratação de dívida com o Fundo Monetário Internacional, no âmbito dos programas de ajuste do balanço de pagamentos, essa dívida aparecia nas estatísticas do Banco Central em seu balanço. 19 Atualmente, só existem títulos classificados como negociáveis no estoque da DPMFi. 20 Na Parte 3, Capítulo 5, será apresentado maior detalhamento da base de investidores. 21 As renegociações de dívida que resultaram na emissão do BIB e do IDU foram anteriores à renegociação no âmbito do Plano Brady, de 1992. Para maiores detalhes sobre a renegociação da dívida externa brasileira, leia Dívida externa brasileira, de Ceres Aires Cerqueira, 1997. 22 Em 15 de abril de 1994, foi assinado o último acordo de renegociação da dívida externa, por meio do qual foram emitidos sete Brady Bonds, os quais compuseram, juntamente com o BIB e o IDU, os nove títulos da dívida externa rene- gociada. O estoque remanescente de tais títulos foi resgatado antecipadamente, ao par, pelo Tesouro Nacional, em abril de 2006. A primeira emissão soberana ocorrida após a renegociação da dívida externa ocorreu em 1995, no mercado japonês, por meio dos chamados Samurai Bonds. 106 Dívida Pública: a experiência brasileira Apresentamos, a seguir, as principais categorias da Dívida Pública Federal externa (DPFe). 1 Os títulos representativos da dívida reestruturada (Bradies e pré-Bradies) foram resgatados em abril de 2006, à exceção dos BIBs, que não possuíam cláusula de re compra e ainda se encontram em circulação. 2 Embora emitidos no mercado europeu, esses títulos são denominados em libras esterlinas. 3 Bônus emitidos em outubro de 2005 em troca por parte dos C-Bonds à época em circulação. 4 Denominados em dólares. 3 Estatísticas da dívida pública brasileira 3.1 Principais indicadores de endividamento 3.1.1 Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) Abrange o total das dívidas de responsabilidade do governo federal, dos governos estaduais e dos governos municipais com o setor privado e o setor público financeiro.23 Destaca-se que as dívidas de responsabilidade das empresas estatais das três esferas de governo não são abrangidas pelo conceito de 23 Diferente da DLSP, a DBGG não considera os ativos de responsabilidade dos entes por ela abrangidos, apenas os passivos. As obrigações externas são convertidas para reais pela taxa de câmbio de final de período. 107 DBGG. Embora o Banco Central não seja um ente cujos passivos constem desse indicador, suas operações compromissadas com o setor financeiro são registradas como dívida do governo geral.24 São deduzidos da dívida bruta os passivos de um ente cujo credor seja outro ente abrangido pela DBGG. Nesse sentido, são desconsiderados, por exemplo, créditos representados por títulos públicos que se encontram em poder de seus órgãos da administração direta e indireta, de fundos públicos federais e dos demais entes da Federação.25 Tal indicador, diferentemente da dívida líquida, não considera os ativos dos entes governamentais. Ao excluí-los, a DBGG não suscita discussões sobre sua qualidade, bem como sua correta precificação. Se por um lado isso a torna mais concisa em seu conceito, permitindo comparações internacionais de forma mais eficiente, quando olhado isoladamente tal indicador dificilmente descreve a história fiscal de um país. Isso ocorre porque a DBGG não captura corretamente as decisões de política econômica que envolvem movimentos de aumento ou redução de ativos cuja contrapartida sejam movimentos no endividamento do governo, bem como a relação entre o governo federal e a autoridade monetária, que observa especificidades diferentes para cada país. É justamente sobre esse ponto que recaem as principais críticas quanto à utilização da DBGG por alguns analistas e agências de classificação de risco, que historicamente dão peso muito grande a esse indicador, sem se preocupar com especificidades do caso brasileiro. Para evitar que operações do governo que representem fatos meramente permutativos26 afetem a percepção de risco fiscal, há a necessidade de considerar outros entes e itens na estatística de endividamento público, conforme podemos observar nos indicadores a seguir comentados. 3.1.2 Dívida Líquida do Governo Geral A Dívida Líquida do Governo Geral corresponde ao endividamento líquido (considerando ativos e pas- sivos) do governo federal (inclusive previdência social), dos governos estaduais e dos governos municipais com o setor privado não financeiro e o sistema financeiro, público (inclusive Banco Central) e privado, e o resto do mundo.27 24 Entende-se que, como as operações compromissadas deverão, em um segundo momento, ser “pagas” com a emissão de títulos públicos federais em mercado, sua inclusão na DBGG capturaria o endividamento do governo geral de forma mais eficiente, ao antecipar os movimentos da DPF. A decisão quanto à inclusão das operações compromissadas na DBGG ocorreu em 2008, quando aconteceram algumas mudanças na metodologia de cálculo desse indicador. Outra alteração relevante foi a retirada dos títulos do Tesouro Nacional na carteira do Banco Central dentre os passivos. O motivo para sua retirada foi que tais títulos são refinanciados, por determinação legal, com o próprio Banco Central, a taxas equivalentes às observadas em leilão junto ao público na data do refinanciamento, não representando, portanto, qualquer risco de aumento da necessidade de financiamento do governo, mesmo nos momentos de elevada volatilidade em mercado. 25 A saber: aplicações em títulos públicos da previdência social, do Fundo de Amparo ao Trabalhador e de outros fundos, bem como dos estados e dos municípios, se houver. 26 Fatos permutativos não alteram o Patrimônio Líquido do Governo, pois representam apenas troca de valores entre duas ou mais contas. Exemplos de fatos permutativos são a compra de reservas internacionais com emissão de títulos em mercado e a manu- tenção de parte do superávit primário em fundo público específico, ao invés de utilizá-la para pagamento da dívida. Tais decisões de política econômica, por não alterarem a capacidade de pagamento da dívida pelo governo, não deveriam alterar a percepção de risco fiscal. 27 Inclusive empresas estatais do governo federal, dos estados e dos municípios. 108 Dívida Pública: a experiência brasileira 3.1.3 Dívida Líquida do Setor Público A Dívida Líquida do Setor Público é o principal indicador de endividamento utilizado pelo governo brasileiro para decisões de política econômica. Esse indicador reflete de maneira mais adequada a dinâmica dos passivos públicos e o esforço fiscal do governo, revelado pelo resultado primário consolidado entre todos os seus níveis. O governo federal, por exemplo, cita permanentemente em seus relatórios fiscais o objetivo de manter a relação DLSP/PIB em trajetória descendente ao longo do tempo, bem como apresenta em sua Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) anual estimativa de evolução de tal indicador para o ano corrente e os três seguintes, com base em suas expectativas para a taxa de juros real, o crescimento econômico e a meta de superávit primário para o setor público. Como comentado nesta seção, o conceito de setor público utilizado para calcular a DLSP é o de setor público não financeiro mais Banco Central. Considera-se como setor público não financeiro, para fins desse indicador, as administrações diretas federal, estaduais e municipais, as administrações indiretas, o sistema público de previdência social e as empresas estatais não financeiras federais, estaduais e municipais. Incluem- se também no conceito de setor público não financeiro os fundos públicos que não possuem característica de intermediários financeiros, isto é, aqueles cuja fonte de recursos é constituída de contribuições fiscais.28 A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) é utilizada como base para o cálculo da Necessidade de Fi- nanciamento do Setor Público (NFSP), também conhecida como resultado nominal “abaixo da linha”. Os saldos são apurados pelo critério de competência, ou seja, a apropriação de encargos é contabilizada na forma pro rata, à medida que forem devidos, independentemente da ocorrência de liberações ou reembolsos no período. Eventuais registros contábeis que não utilizam esse critério são corrigidos para manter a homo- geneidade da apuração. Em termos de principais passivos que compõem a DLSP, temos as dívidas interna e externa do governo federal,29 que em conjunto formam a Dívida Pública Federal (DPF), a base monetária e as operações compromis- sadas, estas duas últimas do Banco Central.30 Quanto aos ativos, os principais são as reservas internacionais do Banco Central e os fundos públicos, tal como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A dívida do Brasil e as principais agências de classificação de risco i) Moody’s e Fitch Tanto a agência de classificação de risco Moody’s quanto a Fitch utilizam, para fins de avaliação do risco de susten- tabilidade fiscal do Brasil, o conceito Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), tal como publicado pelo Banco Central. A Fitch, contudo, divide o estoque da DBGG pela estatística usual do PIB e não pelo PIB inflacionado,* como faz a Moody’s. Por essa razão, a relação DBGG/PIB da Fitch difere da estatística oficial divulgada pelo Banco Central, o que não ocorre com a divulgada pela Moody’s. 28 A maior parte do texto descritivo das estatísticas replica as notas técnicas do BC sobre o assunto, disponíveis nas séries temporais da instituição. 29 A dívida interna do governo federal é conhecida por Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) e a externa por Dívida Pública Federal externa (DPFe). Essas duas dívidas, que em conjunto recebem a denominação de Dívida Pública Federal (DPF), são administradas pela Secretaria do Tesouro Nacional e serão comentadas em detalhes a seguir. 30 O Banco Central, para fins de realização da política monetária, utiliza, dentre outros instrumentos, as operações de venda de títulos públicos com compromisso de recompra ou compra com compromisso de revenda em uma data futura. Tais operações são conhecidas como operações compromissadas ou de mercado aberto (open market operations), e têm por objetivo controlar o nível de liquidez da economia. 109 ii) Standard and Poor’s (S&P) A S&P publica três estatísticas de dívida do governo geral, todas segundo metodologia própria: “dívida bruta”, “dí- vida líquida dos depósitos do governo” e “dívida líquida”. A “dívida bruta” calculada pela S&P exclui, basicamente, os passivos do governo geral que são ativos de algum outro ente do governo, tais como a carteira de títulos do Tesouro no Banco Central e a dívida reestruturada dos estados e dos municípios. O conceito inclui, ainda, o passivo de operações compromissadas do Banco Central. A “dívida líquida dos depósitos” é igual à “dívida bruta” menos o valor dos depósitos do governo no Banco Central e em bancos comerciais, ou seja, os ativos de liquidez imediata do governo. Já a “dívida líquida” reduz da “dívida líquida dos depósitos” o valor de outros ativos considerados líquidos, tais como arrecadação a recolher e royalties. Deve-se ressaltar que a “dívida líquida” da S&P não é diretamente comparável com a Dívida Líquida do Setor Pú- blico (DLSP), em vista das diferenças nos critérios de liquidez dos ativos e da abrangência em termos dos entes do governo considerados. Cabe destacar que, dentre esses três indicadores, a S&P refere-se regularmente à “dívida líquida” como o indicador relevante de sustentabilidade fiscal em seus relatórios de avaliação de risco de crédito do país. Contudo, não estão incluídos no indicador da S&P ativos importantes da DLSP, como o FAT e as reservas internacionais, e passivos, como a base monetária. *O PIB divulgado pelo IBGE reflete os preços médios do período. Considerando que a DBGG está a valor de final de período, entende-se que o PIB utilizado na relação DBGG/PIB deveria ser inflacionado para aquela data, para uma adequada comparação com a dívida. 3.1.4 Dívida Pública Federal (DPF)31 A DPF corresponde à soma das dívidas interna e externa de responsabilidade do governo federal. A dívida interna é conhecida por Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) e a externa por Dívida Pública Federal externa (DPFe). 3.1.4.1 Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) A DPMFi é a dívida do governo federal sob a forma de títulos públicos, cujos fluxos de recebimentos e pagamentos são realizados em reais. Como dito anteriormente, o Brasil adota o critério de moeda de de- nominação para classificação em dívida interna ou externa.32 Quanto aos principais detentores da DPMFi, esta pode estar em poder do público ou do Banco Central. Tendo em vista que a dívida do governo federal com o Banco Central é uma dívida entre instituições de governo pertencentes ao mesmo ente da Federação, a União, ela não é considerada relevante para fins de análise dos riscos e dos custos associados ao endividamento brasileiro. Por essa razão, nas principais 31 As estatísticas sobre a DPF estão disponíveis no site do Tesouro Nacional (www.tesouro.fazenda.gov.br). Adicionalmente, o Tesouro Nacional divulga, em janeiro de cada ano, o Plano Anual de Financiamento da DPF e, mensalmente, o Relatório da Dívida Pública Federal (DPF). 32 Para maiores detalhes sobre as diferentes metodologias que podem ser utilizadas para classificar as dívidas em interna e externa, ver seção 2 deste capítulo. 110 Dívida Pública: a experiência brasileira estatísticas e relatórios divulgados pelo Tesouro Nacional sobre a DPMFi somente é considerada a parcela da dívida em poder do público.33 A DPMFi representa atualmente a quase totalidade do estoque da DPF em poder do público,34 em linha com a diretriz do governo federal de reduzir a participação da dívida externa para minimizar o risco cambial. A composição da DPMFi é um aspecto muito importante da sua estrutura porque está intrin- secamente associada ao risco de mercado e ao risco de refinanciamento. Atualmente, os principais títulos emitidos pelo Tesouro Nacional em seus leilões, para refinanciamento da parcela da DPF que vence a cada ano, são os seguintes: Letras do Tesouro Nacional (LTN): são títulos com rentabilidade definida (taxa fixa) no momento da l compra. Forma de pagamento: no vencimento. Letras Financeiras do Tesouro (LFT): são títulos com rentabilidade diária vinculada à taxa de juros básica l da economia (taxa média das operações diárias com títulos públicos registrados no sistema Selic ou simplesmente taxa Selic). Forma de pagamento: no vencimento. Nota do Tesouro Nacional, série B (NTN-B): são títulos com rentabilidade vinculada à variação do IPCA, l acrescida de juros definidos no momento da compra. Forma de pagamento: semestralmente (juros) e no vencimento (principal). l Nota do Tesouro Nacional, série F (NTN-F): são títulos com rentabilidade prefixada, acrescida de juros definidos no momento da compra. Forma de pagamento: semestralmente (juros) e no venci- mento (principal). Além do estoque, outro indicador monitorado permanentemente por analistas e, principalmente, pelos gestores é o prazo médio da dívida pública, que busca calcular seu tempo médio de permanência em circu- lação. No Brasil, tanto a DPMFi quanto a DPFe são calculadas considerando todos os seus fluxos financeiros intermediários, isto é, os valores referentes aos juros e ao principal de cada dívida. De modo geral, o prazo médio é tão melhor quanto mais longo for, embora outros elementos devam entrar nessa análise, tais como a estrutura do mercado, o tamanho e a diversidade da base de investidores. Em relação à sua metodologia, calcula-se o prazo médio para cada título ou contrato com base na pon- deração do prazo de seus fluxos pelo respectivo montante a vencer naquela data. O montante utilizado para ponderação é descontado a valor presente pela taxa de juros apurada na data da emissão. O prazo médio de cada título ou contrato é então ponderado pelos demais, gerando-se, ao final, o prazo médio da dívida. Cabe destacar que a metodologia antes descrita, utilizada pelo Tesouro Nacional para monitorar o prazo médio da DPF em mercado, é a mais conservadora que um devedor pode utilizar e, ao mesmo tempo, a mais correta, por considerar todos os fluxos, sem distinção entre principal e juros, e por trazê-los para uma mesma data para que a ponderação seja realizada com valores comparáveis. 33 Entretanto, o leitor poderá encontrar o estoque e a composição da dívida do governo federal em poder do Banco Central no anexo estatístico do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal, divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional e disponível em seu site (www.tesouro.fazenda.gov.br). 34 Em dezembro de 2008, o estoque da DPMFi em poder do público estava em R$ 1.265 bilhões, representando 90,5% da Dívida Pública Federal (DPF). Os demais 9,5% (R$ 133 bilhões) representam a Dívida Pública Federal externa (DPFe). Cabe ressaltar que os estoques da dívida interna e da externa são apurados considerando não somente o principal de cada título ou contrato, mas também os juros apropriados por competência entre a data de emissão ou de pagamento da última parcela de juros até a data de referência. 111 Os fluxos gerados para calcular o prazo médio da DPF também são utilizados para calcular outro indicador de risco de refinanciamento, o percentual da dívida que vence em 12 meses. Esse indicador, assim como o prazo médio, é monitorado regularmente pelo Tesouro Nacional e divulgado mensalmente no documento intitulado Relatório Mensal da DPF. Ele é calculado dividindo-se pelo estoque da dívida o fluxo de principal e juros a vencer nos 12 meses seguintes, fluxo este trazido a valor presente da mesma forma que o prazo médio. Outro indicador monitorado pelo Tesouro Nacional e publicado mensalmente em seu Relatório da DPF é o custo médio de financiamento da dívida. Sua metodologia emprega os mesmos fatores utilizados para calcular o prazo médio e o percentual vincendo, quais sejam, as taxas de juros de emissão de cada título (em bases mensais) e seu respectivo estoque para ponderação das taxas. Após calculada a taxa média mensal, esta é anualizada para fins de divulgação ao público. Embora o Relatório da DPF divulgue o custo médio mensal tanto da dívida interna quanto da externa, o indicador mais recomendado para avaliação é o “custo médio acumulado em 12 meses”, também divulgado mensalmente no referido relatório. Tal indicador reflete melhor o comportamento do custo de financiamento da dívida pública ao longo do tempo, tendo em vista que o custo médio mensal é muito afetado por variações de curto prazo nos indicadores da DPF, em particular a variação cambial, as taxas de juros e a inflação. Cabe destacar que o custo médio da DPMFi tem sido menos volátil que o da DPFe, tendo em vista pos- suir indicadores mais estáveis no curto prazo, em particular uma participação bastante reduzida dos títulos indexados à taxa de câmbio (cerca de 1%), enquanto a DPFe possui mais de 90% de seu estoque indexado a outras moedas que não o real.35 Observa-se ainda elevada correlação entre o custo médio da DPMFi e a taxa básica de juros (Selic), o que não surpreende, dada a elevada participação dos títulos indexados a ela no estoque da dívida interna (superior a 35%). 3.1.4.2 Dívida Pública Federal externa (DPFe) A DPFe é a dívida do governo federal, sob a forma de títulos e contratos, cujos fluxos de recebimentos e pagamentos são realizados em outras moedas que não o real. Como dito anteriormente, o Brasil adota o critério de moeda de denominação para separação entre dívida interna e externa.36 O estoque da DPFe37 é contabilizado utilizando-se a mesma metodologia da DPMFi, considerando não somente o principal de cada título e contrato, mas também os juros apropriados por competência.38 A dívida mobiliária externa é composta por títulos emitidos no mercado internacional. Assim como no caso da dívida contratual, o Brasil carregou em seu estoque durante mais de uma década títulos emitidos no âmbito do Plano Brady, os chamados Brady Bonds.39 Em relação às novas emissões de títulos, elas se iniciaram 35 Representado pelos títulos Globais BRL, que são títulos da dívida externa (por terem seus fluxos em dólares) denominados em reais. 36 Para maiores detalhes sobre as diferentes metodologias que podem ser utilizadas para classificar as dívidas em interna e externa, ver a seção 2 deste capítulo. 37 Para referência, a DPFe alcançou em dezembro de 2008 a cifra de R$ 133 bilhões (9,5% da DPF), ou US$ 57 bilhões, sendo R$ 101 bilhões (US$ 43 bilhões) correspondentes à dívida mobiliária e R$ 32 bilhões (US$ 14 bilhões) à dívida contratual. 38 Entre a data de emissão ou de pagamento da última parcela de juros até a data de referência para cálculo do estoque da dívida. 39 Os sete títulos que compunham os chamados Brady Bonds foram emitidos em 15 de abril de 1994 e seu estoque remanescente, no montante de US$ 6,5 bilhões, resgatado antecipadamente pelo valor de face em 15 de abril de 2006. Dois títulos adicionais haviam sido emitidos anteriormente àquela data, o IDU e o BIB/BEA, por fazerem parte de etapas anteriores da renegociação da dívida externa. Por isso, eram chamados de Pré-Brady Bonds. Destes, apenas o IDU foi resgatado juntamente com os Bradies. Os títulos BIB/BEA ainda se encontram em poder do público. 112 Dívida Pública: a experiência brasileira em 1995, logo após concluída a renegociação da dívida externa. Embora historicamente tais títulos tenham sido emitidos em diversos mercados, cada um com sua moeda de referência, atualmente a maior parte dessa dívida concentra-se em dólares dos EUA, em euros e em reais. Desde 2006, as emissões de títulos no mercado externo têm tido caráter prioritariamente qualitativo, em função da acentuada queda da necessidade de financiamento externo do Brasil, enquanto, ao mesmo tempo, o governo conduz o programa de recompras visando a retirar do mercado aqueles títulos considerados ineficientes, chamados de high coupon bonds. Já a dívida contratual externa é aquela firmada com o credor mediante assinatura de um contrato, por meio do qual são definidos o volume, o prazo, o esquema de amortização e as taxas envolvidas. Assim como no caso da dívida mobiliária, no âmbito da renegociação da dívida externa o Brasil passou a deter dívida reestruturada sob a forma de contratos com um um grupo de países chamado Clube de Paris, tendo essa dívida sido paga antecipadamente em 2006.40 Atualmente, a dívida contratual é captada para financiamento de projetos específicos, por meio de empréstimos com organismos multilaterais (Bird e BID, principalmente). Além desses organismos, o governo brasileiro capta recursos externos com credores privados e agências governamentais (tais como KfW, Usaid e JBIC). Como comentado anteriormente, a metodologia de cálculo do prazo médio da DPFe é a mesma utilizada para a DPMFi. Tal indicador calcula o tempo médio que o estoque da dívida em mercado possui até seu vencimento, considerando todos os fluxos financeiros intermediários, isto é, os valores referentes a juros e principal. Da mesma forma, a metodologia de cálculo do custo médio de financiamento da DPFe é a mesma utilizada para a DPMFi, considerando-se as taxas de emissão de cada título (em bases mensais) e seu respectivo estoque para ponderação das taxas. Após calculada a taxa média mensal, esta é anualizada para fins de divulgação ao público. No caso da dívida externa, e à semelhança da dívida interna indexada ao câmbio, levam-se em conta ainda as variações da cotação entre a moeda local e a moeda em que a dívida está denominada. Como é de se esperar, o custo médio da DPFe é mais volátil que o da DPMFi, tendo em vista a grande participação em sua composição de dívidas em outras moedas.41 Indicadores de risco de refinanciamento da dívida pública: comparação entre países i) Prazo médio e vida média Diferentemente do prazo médio, que considera tanto os fluxos de principal quanto de juros para seu cálculo, a vida média indica apenas o prazo remanescente do principal da dívida pública. Este último, adotado por muitos países como o único indicador de maturidade de suas dívidas, muitas vezes é comparado com o prazo médio calculado pelo Brasil e divulgado em seus relatórios mensais, no Plano Anual de Financiamento e no Relatório Anual. Apenas para qualificar a diferença de percepção de risco de refinanciamento que surge ao utilizar a vida média em substituição ao prazo médio, a vida média da DPF alcançou 5,6 anos em dezembro de 2008, ante 3,5 anos do prazo médio. Não obstante a diferença entre tais indicadores, o Brasil continua a utilizar este último, pois acredita que ele captura de forma mais correta os riscos aos quais está exposta a DPF. Adicionalmente, continua a citar em seus relatórios o indicador vida média, exclusivamente para permitir que analistas e investidores possam comparar os indicadores da dívida brasileira com os de outros países que utilizem tal indicador. 40 Para conhecer os credores e os valores da dívida contratual, visite o site do Tesouro Nacional:http://www.tesouro.fazenda.gov.br/ divida_publica/downloads/estatistica/Estoque_Divida_Externa.xls. 41 Enquanto na DPMFi a parcela indexada à taxa de câmbio está em aproximadamente 1%, a DPFe possui mais de 90% de seu estoque indexado a outras moedas que não o real. 113 ii) Estrutura de vencimentos Da mesma forma que alguns países desconsideram os fluxos de juros ao calcular suas estatísticas de maturidade da dívida pública, prática semelhante observa-se quando se compara o percentual dessa dívida que vence no curto prazo. No caso brasileiro, mantendo coerência com a estatística do prazo médio, considera-se tanto o principal quanto os juros quando são divulgados em documentos públicos o fluxo da dívida e o percentual desta que vence em diversos prazos, capturando cor- retamente o risco de refinanciamento do endividamento público. Entretanto, alguns países informam os fluxos de suas dívidas e o percentual desta que vence no curto prazo considerando apenas o principal, ou seja, não incluindo os juros devidos e, em alguns casos, sem trazer os fluxos a valor presente. Para qualificar a diferença de percepção de risco de refinanciamento, caso se desconsiderassem os fluxos de juros, o percentual vincendo em 12 meses da DPF do Brasil se reduziria em mais de seis pon- tos percentuais, passando de 25,4% para menos de 20% em dezembro de 2008. Já o percentual vincendo em até dois anos passaria de 47,9% para menos de 40% e, consequentemente, o vincendo acima de dois anos seria superior a 60%, ao invés de 52,1%. Assim como ocorre no caso do prazo médio, não obstante a diferença de percepção que o segundo indicador traria, acredita-se que, ao considerar tanto os fluxos de principal quanto de juros para calcular o percentual vincendo, se captura de forma mais correta o risco de refinanciamento da DPF. 4 Relatórios sobre a dívida pública 4.1 Relatório Mensal da Dívida Pública Federal O Relatório Mensal da Dívida Pública Federal é um documento divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional, publicado pela primeira vez em fevereiro de 2007. Tal documento veio a substituir a Nota para a imprensa – DPMFi e mercado aberto, publicada conjuntamente pelo Banco Central e pelo Tesouro Nacional desde novembro de 2000.42 O propósito principal do relatório é a divulgação de estatísticas unificadas sobre a DPF, consolidando as informações da DPMFi, constantes até então na Nota para a imprensa, com as referentes à dívida externa (DPFe), que já eram divulgadas pelo Tesouro Nacional. Além disso, o relatório agregou novas estatísticas às já existentes, tais como o custo médio da DPF, seus fatores de variação e dados sobre mercado secundário de títulos. Por fim, o relatório trouxe informações regulares sobre o Tesouro Direto,43 programa de venda de títulos a pessoas físicas via internet. Este relatório, disponível em português e inglês,44 traz informações mensais bem como séries históricas de todas as estatísticas descritas na seção 3 deste capítulo, dentre outras. Ele se inicia com a descrição das operações de financiamento da DPF, por meio das emissões e dos resgates, segregados por tipo de dívida e por título. Em seguida, são apresentadas a evolução da composição dos estoques em poder do público e a estrutura de vencimentos em 12 meses por indexador, além do cronograma de vencimentos. Ainda em relação ao perfil de vencimentos, são divulgados o prazo médio e a vida média da DPF e seus componentes. Na sequência, são apresentados o custo médio da DPF, os seus fatores de variação no mês e as estatísticas sobre o mercado secundário de títulos públicos. Por fim, um anexo traz as séries históricas de cada um dos indicadores citados, além de informações sobre os detentores de títulos públicos e os indicadores de política monetária. 42 Tanto o Relatório Mensal da DPF quanto a Nota para a imprensa _ DPMFi podem ser encontrados no site do Tesouro Nacional (www.tesouro.fazenda.gov.br). 43 Para maiores detalhes sobre o Tesouro Direto, ver Capítulo 7 da Parte 3. Informações sobre o programa também podem ser encontradas no site do Tesouro Nacional ((http://www.tesouro.fazenda.gov.br/tesouro_direto/). 44 Versão em português http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/relatorios_divida_publica.asp e em inglês http://www.tesouro.fa- zenda.gov.br/english/hp/public_debt_report.asp. 114 Dívida Pública: a experiência brasileira 4.2 Plano Anual de Financiamento da Dívida Pública Federal (PAF) O PAF é uma publicação do Tesouro Nacional editada desde 2001 na qual são divulgados os objetivos, as diretrizes, a estratégia e as metas da instituição em relação à gestão da DPF. Mais que uma ferramenta de planejamento, o PAF consolidou-se como um instrumento de ampliação da transparência e da previsibilidade no gerenciamento da dívida pública. Esta publicação proporciona análise detalhada do programa de ações do Tesouro Nacional, expondo o conjunto de diretrizes e metas a ser observado na gestão da DPF em cada ano. O documento é complementado, no início do ano seguinte, pelo Relatório anual da Dívida Pública, de natureza retrospectiva, que analisa os fatos relevantes ocorridos ao longo do ano anterior, bem como seus resultados. O objetivo da gestão da DPF, cuja redação vem sendo mantida no PAF desde 2003, é minimizar os custos de financiamento no longo prazo, respeitando-se a manutenção de níveis prudentes de risco; adicionalmente, busca-se contribuir para o bom funcionamento do mercado de títulos públicos. As diretrizes a serem seguidas para garantir tal objetivo consistem em reduzir a parte da dívida indexada a taxas flutuantes, ao mesmo tempo em que a parte prefixada e indexada à inflação possa ser aumentada, além de promover o alongamento do prazo médio da dívida e reduzir sua parcela que vence no curto prazo. Tomando por base as estratégias traçadas, o PAF apresenta os valores mínimos e máximos, projetados para o final do período, de cada um dos indicadores da DPF considerados relevantes,45 expressos na forma de limites indicativos. O documento também apresenta capítulo específico com indicadores dos riscos financeiro e de refinanciamento. As expectativas apresentadas no PAF refletem critérios técnicos, em harmonia com práticas internacionais de administração de dívida pública. De fato, o planejamento e a execução das atividades de administração da DPF pelo Tesouro Nacional vêm sendo fortalecidos e aprimorados, constituindo-se em um dos fatores responsáveis pela qualidade dos resultados obtidos. 4.3 Relatório Anual da Dívida Pública Federal O RAD46 é um documento que tem o objetivo de complementar o PAF, aumentando a previsibilidade e a transparência da atuação do Tesouro Nacional. Ele propõe uma análise retrospectiva do gerenciamento da Dívida Pública Federal (DPF) para o ano findo, permitindo avaliar o processo de definição dos objetivos e metas, inclusive em termos de recursos humanos e tecnológicos, e seus resultados. Anteriormente, essa função era realizada pelo Plano Anual de Financiamento (PAF), em seus capítulos finais. A partir de 2004, optou-se por legar ao PAF a atribuição de apresentar as diretrizes, o planejamento e as metas de gestão da DPF para o ano que se inicia, transferindo ao Relatório Anual a tarefa de avaliar os eventos ocorridos no ano anterior, inclusive em relação às metas divulgadas no PAF. O RAD traz um balanço da evolução das expectativas econômico-financeiras ao longo do ano e resume os avanços da administração da DPF em relação às metas traçadas no ano anterior, mostrando os resultados alcançados em termos de estoque, prazo e composição da dívida, além de oferecer uma análise da evolução dos riscos aos quais a dívida está exposta. Por fim, destaca os principais avanços institucionais ocorridos ao longo do ano em termos de estrutura organizacional, sistemas tecnológicos, eventos e processos de decisão. 45 Os indicadores para a DPF, cujos limites são divulgados no PAF, são: estoque, prazo médio, percentual vincendo em 12 meses e composição (distribuída em dívida prefixada, indexada à inflação, às taxas de juros e à variação cambial). 46 Tanto o PAF como o RAD estão disponíveis também em inglês. O primeiro pode ser encontrado em http://www.tesouro.fazenda. gov.br/divida_publica/paf.asp e http://www.tesouro.fazenda.gov.br/english/public_debt/annual_borrowing_plan.asp e o segundo em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/divida_publica/rad.asp e http://www.tesouro.fazenda.gov.br/english/public_debt/annual_ public_debt_report.asp. 115 4.4 Demais fontes – Notas para a imprensa do Banco Central do Brasil 4.4.1 Nota para a imprensa – setor externo A Nota para a imprensa – setor externo é um documento divulgado mensalmente pelo Banco Central, sendo composta por um texto, acompanhado de um conjunto de dados estatísticos em formato de planilhas. A Nota traz uma ampla gama de informações sobre a posição do setor externo brasileiro, com dados de fluxo e estoque. As tabelas são agrupadas nos seguintes itens principais: balanço de pagamentos (aberto em seus principais grupos), investimento direto e em carteira, emissões e amortizações de títulos brasileiros no exterior, reservas internacionais, dívida externa por devedor e por moeda, bem como seus fluxos de principal e juros, além de indicadores tradicionais de endividamento externo. Nessa publicação, também disponível em inglês, é possível encontrar detalhamentos importantes por grupos de credores e devedores e comparar estatísticas em diferentes períodos. 4.4.2 Nota para a imprensa – política fiscal A Nota para a imprensa – política fiscal é um documento divulgado mensalmente pelo Banco Central, sendo composto por um texto, acompanhado de um conjunto de dados estatísticos, em formato de planilhas. A Nota traz detalhamento minucioso sobre a necessidade de financiamento do governo em suas várias esferas, bem como indicadores de endividamento do governo geral e do setor público. As informações por ela trazidas são geradas pelo critério “abaixo da linha” e também permitem comparações históricas entre os indicadores. As tabelas são agrupadas nos seguintes itens principais: Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP),47 composição e prazo médio dos títulos públicos federais, operações compromis- sadas e de swap do Banco Central, Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), aberta por seus diversos entes,48 fatores condicionantes, taxa de juros implícita e principais indexadores da DLSP, Dívida Bruta e Líquida do Governo Geral49 e Dívida Líquida do Setor Público Harmonizada.50 Nessa publicação, também disponível em inglês, é possível comparar estatísticas em diferentes períodos. 4.4.3 Séries temporais O Sistema Gerenciador de Séries Temporais (SGS)51 é uma ferramenta disponibilizada pelo Banco Cen- tral para pesquisa das séries temporais dos dados constantes nas notas comentadas anteriormente, além de estatísticas monetárias. Esse sistema tem por objetivo consolidar e tornar disponíveis informações econômico- financeiras e manter uniformidade entre os documentos produzidos com base em séries temporais nele arma- zenadas. As séries podem ser consultadas individualmente, em grupos ou em listas personalizadas. 47 Para geração do cálculo da NFSP, são abertos os juros apropriados por competência e o resultado primário de cada ente de governo, nominalmente Tesouro Nacional, Banco Central, Previdência Social, empresas estatais federais, estaduais e municipais, estados e municípios. As estatísticas são apresentadas em valores nominais e em percentual do PIB, referentes ao mês e acumu- ladas nos últimos 12 meses. 48 Tesouro Nacional, Banco Central, Previdência Social, empresas estatais federais, estaduais e municipais, estados e municípios. As estatísticas são apresentadas em valores nominais e em percentual do PIB. 49 Tesouro Nacional, Previdência Social, estados e municípios. As estatísticas são apresentadas em valores nominais e em percentual do PIB. 50 Para fins de harmonização com as estatísticas fiscais divulgadas pelos demais países integrantes do Mercado Comum do Sul (Mercosul). 51 Para maiores detalhes, acesse no Banco Central http://www4.bcb.gov.br/?SERIESTEMP e http://www.bcb.gov.br/?TIMESERIESEN. 116 Dívida Pública: a experiência brasileira 5 Referências internacionais e comparação com as estatísticas de dívida brasileiras52 Ethan Weisman53 Como descrito no início deste capítulo, esta seção apresenta as recomendações dos organismos inter- nacionais em relação à forma e à abrangência das estatísticas de dívida pública de um país, compara essas recomendações com os dados divulgados pelo Brasil e sugere alguns aperfeiçoamentos que permitiriam avançar em relação ao progresso já atingido. Esta seção também destaca importantes características das estatísticas de dívida pública, tais como cobertura institucional e amplitude, a exemplo da distinção entre dívida líquida e dívida bruta. 5.1 Organismos internacionais: metodologias de dívida do setor público, coleta e disseminação de dados Vários organismos internacionais coletam e disseminam estatísticas de dívida pública. O banco de dados mais importante dentre os atualmente existentes é o IMF’s Government finance statistics database,54 que se baseia na dívida do setor público dos países membros do Fundo Monetário Internacional (FMI). Já o banco de dados da dívida do governo geral de cada um dos países membros da União Europeia é produzido e divulgado pela Eurostat e pelo Banco Central Europeu.55 A Organização para a Cooperação e o Desenvol- vimento Econômico (OCDE) também mantém um banco de dados sobre a dívida do governo central de seus países membros.56 Outro importante banco de dados refere-se às estatísticas sobre dívida externa, sendo produzido con- juntamente pelo BIS, pelo FMI, pela OCDE e pelo Banco Mundial.57 Esse banco de dados cobre as estatísticas de dívida externa pública e privada dos países e incorpora informações da Unctad, da Secretaria da Com- monwealth e de bancos de desenvolvimento multilaterais. Para finalizar, um importante instrumento para a padronização e a eficiente compilação dos dados sobre dívida pública é o documento intitulado International public sector accounting standards (IPSASs), divulgado pelo International Federation of Accountants’ Public Sector Accounting Standards Board.58 5.1.1 FMI: metodologias, estatísticas e disseminação de padrões O FMI tem desenvolvido metodologias e práticas com o objetivo de compilar e produzir relatórios sobre dívidas do setor público por meio do documento Government finance statistics manual 2001 (GFSM 2001) 52 As opiniões expressas nesta seção são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem necessariamente as opiniões do Fundo Monetário Internaciona (FMI), sua direção ou sua política. O autor agradece a valiosa contribuição de Otavio Ladeira de Medeiros, responsável pela livre versão para o português do texto original, em inglês, além de acrescentar comentários sobre mudanças metodológicas institucionais e legais recentemente ocorridas no Brasil. 53 Vice-Chefe de Divisão do Departamento de Estatísticas do FMI. Esta seção foi escrita durante o período em que o autor era o Economista Principal para o Brasil no Banco Mundial. 54 Para maiores informações, acesse http://www.imf.org. 55 Para maiores informações, acesse http://epp.eurosat.ec.europa.eu e http://www.ecb.int, respectivamente. 56 Para maiores informações, acesse http://stats.oecd.org. 57 Para maiores informações, acesse http://devdata.worldbank.org/sdmx/jedh_dbase.html. 58 Para maiores informações, acess http://www.ifac.org/PublicSector/. 117 e do correlato External debt guide. Estes manuais, desenvolvidos em harmonia com o 1993 System of national accounts (1993 SNA), têm sido elaborados com base nos materiais e na assistência técnica providos pelo Fundo. O Manual GFSM 2001 define dívida como todos os passivos que requerem pagamento de juros e/ou principal pelo devedor a um credor em datas futuras – excluindo, desse modo, ações e equivalentes, bem como derivativos financeiros. Tais passivos deveriam ser separados em duas categorias, domésticos e externos, e considerar os seguintes instrumentos: moedas e depósitos, títulos, contratos, reservas técnicas de seguradoras e outros passivos pagáveis. Adicionalmente, o GFSM 2001 visa à classificação da dívida por contraparte. Assim, a dívida do setor público deveria ser classificada de acordo com as seguintes contrapartes, a saber: i) quanto à dívida doméstica: instituições financeiras, outras instituições depositárias não classificadas em outras rubricas, empresas não financeiras, instituições sem fins lucrativos e residentes pessoa física; ii) quanto à dívida externa: organismos internacionais, instituições financeiras e outros não residentes. Cabe destacar que, embora a definição de dívida seja a mesma em outros manuais estatísticos internacionais, tal estrutura de classificação busca abarcar as necessidades analíticas dos diferentes conjuntos de dados (por exemplo, o balanço de pagamentos ou a contabilidade nacional). Para registrar corretamente a dívida do setor público, permitindo a consolidação do endividamento incor- rido pelos diversos entes públicos, cumpre especificar as unidades de governo cobertas. Em relação à cobertura do setor público, a estrutura do GFSM 2001 utiliza o processo de separação por blocos. Nessa linha, o setor público é composto de unidades do governo geral que incluem o governo central, os estados, as províncias e os governos locais, de acordo com a divisão política de cada país. Desse modo, a dívida pública pode ser anali- sada relativamente a diferentes componentes do setor público, tais como o governo central, o governo geral, o setor público não financeiro e o setor púbico financeiro, dentre outros. A dívida do setor público abrangeria os passivos de todas as suas unidades, além de consolidar as transações de dívida entre tais unidades. Como será descrito a seguir, o Brasil não utiliza de forma estrita a estrutura de setor público por blocos. A estrutura do GFSM 2001 não contém uma definição de dívida líquida. Os dados são registrados por valores brutos.Não obstante, tal estrutura contém ativos (distinguindo os ativos financeiros dos não financeiros) em adição aos passivos (dívida e não-dívida).59 Nesse sentido, é possível usar o GFSM 2001 para calcular o patrimônio líquido (ativos menos passivos) ou o patrimônio líquido financeiro (ativos financeiros menos pas- sivos). Esses conceitos poderiam ser refinados para se aproximar do conceito de dívida líquida, entendido como ativos menos passivos ou ativos financeiros menos passivos. A estrutura detalhada deveria ser compilada de um modo suficientemente robusto para identificar claramente os componentes usados nesses cálculos. O GFSM 2001 recomenda a compilação tanto dos estoques quanto dos fluxos. Nesse sentido, um balanço consistente para os dados do setor público deveria ser contabilizado, mostrando os estoques iniciais para cada um dos ativos e passivos, as transações e outros fluxos econômicos (ambos apresentando ganhos e perdas, bem como outras variações nos volumes) e os estoques finais. Desse modo, o saldo final de cada ativo (incluindo a aquisição líquida de ativos não financeiros) ou passivo deve ser igual ao saldo inicial mais as transações e os outros fluxos econômicos. Além disso, esse balanço deveria ser plenamente consistente com os dados das transações que afetam o patrimônio líquido (receitas e despesas). 59 Segundo o IMF manual on fiscal transparency, 2007, os passivos não associados à dívida (non-debt liabilities) incluem obrigações previdenciárias não fundadas, exposição a garantias governamentais, dívidas vencidas e outras obrigações contratuais. Por exem- plo, um contrato que permite a uma empresa realizar atividade de mineração pode obrigar, explícita ou implicitamente, o governo a arcar com os custos de arrumação do local após o abandono da mina. 118 Dívida Pública: a experiência brasileira Para auxiliar o registro das transações com dívida e outros fluxos econômicos, o GFSM 2001 contém um anexo (Apêndice 2) que delineia a forma apropriada para os registros típicos, tais como os juros, o prin- cipal, as dívidas em atraso, assumidas, canceladas ou reestruturadas, os pagamentos de dívidas em nome de outros entes, as baixas de dívidas não recuperáveis (write-offs), os ajustes a valor de mercado (write-downs), as dívidas conversíveis em ações, as operações de leasing e as operações de encontro de ativos e passivos. Resumindo, a série de dados segundo o GFSM 2001 deveria ser internamente consistente e cobrir todas as transações e fluxos econômicos associados à dívida pública. A base de registro da dívida pública do GFSM 2001 utiliza ambos os critérios de caixa e competência. O balanço do GFSM 2001 é útil quando registrado pelo critério de competência. Entretanto, o sistema recomenda a compilação de uma demonstração de fluxo de caixa para registrar todas as transações também pelo critério de caixa. Ainda que a ênfase se tenha deslocado para o critério de competência, muitos países continuam a compilar suas estatísticas fiscais pelo critério de caixa, e o período de migração para o novo modelo pode ser longo para diversos deles. O Brasil, ao contrário, tem uma base contábil razoavelmente forte para compilar as informações tanto pelo critério de caixa quanto por competência. Nesse sentido, a migração de todo o conjunto de estatísticas fiscais para uma contabilidade plenamente por competência poderá ocorrer de modo razoavelmente rápido. Cabe destacar que, utilizando a mesma base contábil por competência e as mesmas definições, os dados do GFSM 2001 estão totalmente harmonizados com as principais bases de dados macroeconômicos, tais como as contas nacionais (compiladas segundo o 1993 SNA), o balanço de pagamentos e a posição internacional de investimentos (compilados segundo a 5ª edição do IMF’s balance of payments manual – BPM5), ou as estatísticas da dívida externa (compiladas segundo o External debt guide). Para aperfeiçoar a harmonização com as estatísticas da dívida externa, o FMI tem desenvolvido e está começando a pilotar com os países membros uma formatação que permite aos compiladores construir uma ponte entre seus bancos de dados fiscais e de dívida externa. O FMI também tem desenvolvido uma série de padrões de disseminação de dados que pode servir como referência para países que procuram possuir estatísticas transparentes e de alta qualidade. Em relação à dívida do setor público, essas referências e padrões são descritos a seguir.60 O sistema geral de disseminação de dados recomenda que as estatísticas anuais do governo central sejam divulgadas em dois trimestres após o fim do período, com aberturas por moeda, maturidade, detentores da dívida ou por instrumento. O FMI incentiva a divulgação das dívidas garantidas pelo governo. A disseminação dos padrões especiais de dados, ligeiramente mais trabalhosos, recomenda que os dados trimestrais da dívida do governo central (ou de todos os passivos, se a estrutura do GFSM 2001 estiver compilada) sejam disseminados no trimestre seguinte (dados mensais são incentivados). A divulgação das projeções para o serviço da dívida também é encorajada. 5.1.2 União Europeia: metodologias, estatísticas e disseminação de padrões Os dados de dívida dos governos membros da União Europeia são reportados à Eurostat para atender a propósitos legais e estatísticos. Primeiramente, os dados são utilizados para averiguar o cumprimento do Excessive deficit procedure (EDP) do Pacto de Estabilidade e Crescimento, conforme descrito na Resolução do Conselho EC nº 1.467, de 7 de julho de 1997. Relatórios regulares, utilizando os formatos-padrão, são requeridos pela Eurostat para os membros da União Europeia, por meio do ESA95 Transmission programme. Os dados 60 Para maiores informações, acesse o site: http://dsbb.imf.org/Applications/web/dsbbnewfeatures/. 119 fiscais dos países membros são definidos tendo por referência o manual europeu para contabilidade nacional, denominado European system of accounts 1995 (ESA95), que, por seu turno, é baseado no 1993 SNA. O Anexo B do ESA95, conforme Regulamento do Conselho EC nº 2.223, de 25 de junho de 1996, lista as tabelas legalmente requeridas, detalhando as séries, os critérios para a divulgação tempestiva e a amplitude das séries históricas. Ele também lista os casos de dispensa do cumprimento de alguns itens para países específicos. O referido anexo tem sido modificado frequentemente, mediante entendimentos entre a Eurostat e os provedores nacionais de dados. O anexo também apresenta a dívida do governo geral em bases trimestrais (por instrumento e ente público), estando as aberturas mais detalhadas disponíveis em relação às dívidas dos governos centrais. Os dados são reportados com defasagem de três meses e estão disponíveis no banco de dados públicos da Eurostat.61 O ESA95 tem sido suplementado por interpretações e orientações posteriores da Eurostat em seu ESA95 Manual on government debt and deficit (MGDD). Desde sua primeira divulgação, capítulos adicionais têm sido agregados ao MGDD. Nesse sentido, a segunda edição contém capítulos sobre securitização, aportes de capi- tal, modelos previdenciários de capitalização,62 pagamento único (lump sum) relacionado a transferências de obrigações previdenciárias e contratos de longo prazo entre unidades governamentais e entidades não gover- namentais. Embora o MGDD não seja um instrumento legal, ele fornece interpretação e orientação à Eurostat para avaliação da aderência das estatísticas fornecidas às práticas metodológicas consensuadas. A cobertura dos dados fiscais utilizados nesses documentos refere-se ao governo geral (governos central, regionais e locais). Cabe destacar que os dados da Eurostat se têm tornado crescentemente consistentes com os dados do GFSM 2001. Ambos são baseados nos princípios de contabilidade nacional, incluindo, em particular, setorização, princípios de valoração, base de registro (caixa e competência), estoques e fluxos, consolidação (ao menos em nível de governo geral) e distinção entre ativos financeiros e não financeiros. Nesse sentido, os dados de dívida gerados com base nas duas metodologias são consistentes. O site da Eurostat contém uma revisão das discrepâncias remanescentes entre as duas bases de dados. As estatísticas fiscais da União Europeia são também divulgadas no boletim mensal do Banco Central Europeu, bem como em seu banco de dados. As estatísticas de dívida baseiam-se na dívida mobiliária do governo geral. Contudo, esses dados não são diretamente comparáveis com aqueles coletados pela Eurostat para o Excessive Deficit Procedure (EDP). 5.1.3 OCDE: metodologias, estatísticas e disseminação de padrões A OCDE também mantém um banco de dados sobre finanças públicas. As estatísticas de dívida são originadas de fontes de cada país, baseadas em um questionário preparado sob o amparo do OCDE working party on government debt management. Conceitos e definições são baseados, quando possível, no 1993 SNA. Os dados individuais dos países membros são apresentados em uma estrutura-padrão abrangente para facilitar a comparação entre os países. Há dados disponíveis a partir de 1980, cobrindo a dívida do governo central para todos os membros da OCDE. Nesse sentido, os dados excluem as dívidas dos estados, dos municípios e dos fundos de seguridade social. Os dados são expressos em dólares dos EUA e em percentual do PIB e são acompanhados de notas 61 Para maiores informações, acesse http://epp.eurostat.ec.europa.eu. 62 Os modelos previdenciários de capitalização contrapõem-se aos modelos de repartição (pay-as-you-go). O modelo de capitali- zação tem por base a constituição de fundos de pensão; por essa razão trata-se de modelo “fundado” em oposição ao modelo de repartição, “não fundado”. 120 Dívida Pública: a experiência brasileira que descrevem os detalhes dos instrumentos de dívida em cada país membro, além de prover informações sobre a estrutura institucional e regulatória e as técnicas utilizadas para vender os instrumentos de dívida. Além de manter um site na internet sobre finanças públicas, a OCDE publica um livro anual sobre a dívida dos governos centrais. 5.2 Organismos internacionais: metodologias, estatísticas e disseminação de dívidas externas (públicas e privadas) 5.2.1 O Sistema de Divulgação de Dívida Externa do Banco Mundial (DRS) O Sistema de Divulgação de Dívida Externa do Banco Mundial (World Bank’s External Debt Reporting System – DRS) apresenta as estatísticas de dívida externa reunidas por instrumento, em nível agregado para ambos os setores, público e privado. As principais fontes para a dívida pública e para as dívidas garan- tidas pelo governo são os dados dos contratos de empréstimo, suplementados por informações de outros organismos multilaterais e bancos de desenvolvimento. Os dados do DRS são publicados pelo regime de caixa e pelos valores do registro contábil (book value). Essas estatísticas anuais mostram estoques e fluxos em dólares dos EUA e contêm abertura da dívida por maturação de curto e longo prazos subclassificadas por credor. A composição por moeda da dívida pública (inclusive a garantida) é apresentada em percentuais. O banco de dados mostra um exercício de conciliação entre estoques e fluxos. Detalhes sobre o DRS podem ser encontrados em The World Bank’s debtor reporting system manual (WORLD BANK, 1989), o qual define os dados a serem incluídos nos relatórios do DRS e as instruções sobre como reportar os dados. O banco de dados também é disseminado por intermédio da publicação intitulada World Bank’s global development finance. 5.2.2 O banco de dados conjunto sobre dívida externa: BIS-FMI-Banco Mundial À semelhança do DRS, o banco de dados conjunto sobre dívida externa do BIS, do FMI e do Banco Mundial considera as dívidas pública e privada de cada país analisado. Os padrões utilizados por essas organizações para definir dívida externa e compilar as estatísticas a ela referentes são apresentados em Debt stocks, Debt flows and the balance of payments (OECD, 1994). O caso do DRS, sistema do Banco Mundial, foi descrito anteriormente. Outro exemplo é o do BIS, que divulga um conjunto de dados cujos principais componentes são: empréstimos e depósitos bancários, dívidas externas de curto prazo e emissões de títulos em mercado. 5.3 Comparando as informações da dívida pública no Brasil com a proposta dos organismos internacionais 5.3.1 Estatísticas de dívida do Banco Central e do Tesouro Nacional As estatísticas brasileiras de dívida pública estão disponíveis na base de dados do Banco Central e nas publicações do Tesouro Nacional.63 A cobertura institucional da dívida do setor público no Brasil consolida o governo federal (incluindo a Previdência Social), os estados e os municípios, suas empresas não financeiras e 63 Os dados do Banco Central sobre a dívida do setor público são divulgados por meio das Nota para a imprensa – política fiscal (Dívida Líquida do Setor Público – DLSP – e Dívida Bruta do Governo Geral – DBGG, principalmente) e do Setor Externo (dívidas 121 o Banco Central. Entretanto, o Brasil não usa estritamente o conjunto internacional de elementos-padrão do setor público. Os dados brasileiros são diferentes, por consolidarem o Banco Central junto ao setor público não financeiro, chamando esse agrupamento de “setor público não financeiro”. Na compilação das estatísticas de acordo com o GFSM 1986, o Banco Central está incluído na apuração da DLSP e da NFSP, por transferir seu resultado automaticamente para o Tesouro Nacional. Nesse sentido, a DLSP incorpora a base monetária e as operações compromissadas64 dentre outros passivos do Banco Central. O relacionamento entre o Tesouro e o Banco Central é apresentado de forma apartada na divulgação da DLSP. Nesse sentido, as estatísticas fiscais brasileiras cobrem todas as entidades públicas dotadas ou não de autonomia orçamentária. Contudo, os dados excluem as empresas públicas financeiras (bancos), que são atores importantes do sistema financeiro brasileiro. Como as estatísticas fiscais visam principalmente a apurar o impacto das atividades do setor público sobre a demanda agregada, a exclusão das empresas financeiras deve-se às características próprias dessas empresas, que atuam como intermediárias financeiras e apresentam impacto macroeconômico diferenciado. Por sua vez, os dividendos pagos por elas ao setor público são incluídos no cálculo das necessidades de financiamento, bem como as despesas com eventuais aportes de recursos públicos para integralização de capital dessas empresas financeiras. As estatísticas de endividamento público são compiladas em bases bruta e líquida (dívida menos ativos financeiros). A abrangência dos instrumentos consiste de base monetária, operações de mercado aberto do Banco Central, dívidas interna e externa e ativos financeiros (incluindo as reservas internacionais), dentre outros. Também há dados compilados para o governo geral (governo central e governos subnacionais), no âmbito do Special Data Dissemination Standard (SDDS), do Fundo Monetário Internacional, e para o governo nacional. Este último se refere à Dívida Líquida Harmonizada do Governo Nacional do Mercosul, que inclui governo central, empresas públicas não financeiras e o Banco Central, excluindo-se a base monetária harmonizada.65 Já os dados do Tesouro Nacional, constantes do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal, possuem abrangência institucional mais restrita, por definição. A tempestividade e a periodicidade dos dados tanto do Banco Central quanto do Tesouro Nacional aten- dem aos mais altos padrões: dados mensais são disseminados em até trinta dias do período de referência. Como dito anteriormente, os dados brasileiros ainda se baseiam na metodologia do GFSM 1986, que compatibiliza os resultados “acima da linha” e “abaixo da linha”. A coerência entre estoques e fluxos é man- tida pela utilização da dívida líquida do setor público não financeiro para se determinar a necessidade líquida de financiamento do setor público não financeiro. São observadas discrepâncias entre os resultados fiscais externas pública e privada), ambas com periodicidade mensal (http://www.bcb.gov.br). As características das estatísticas do Banco Central são apresentadas no Manual de estatísticas fiscais divulgadas pelo Departamento Econômico do Banco Central (Bacen) em junho de 2006. O Tesouro Nacional compila e divulga mensalmente estatísticas sobre a Dívida Pública Federal, por meio do Relatório Mensal da DPF (http://www.tesouro.fazenda.gov.br), e sobre a Dívida Líquida do Tesouro Nacional, por meio do Resul- tado do Tesouro Nacional. O Tesouro Nacional divulga na internet quadro consolidado das informações de dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito e concessão de garantias, conforme determinado no art. 32 da LRF. Também por determinação da LRF, quadrimestralmente os estados e os municípios publicam um Relatório de Gestão Fiscal, contendo demonstrativo de sua Dívida Consolidada Líquida. 64 Cabe destacar que, para fins de comparação internacional, as abrangências mais utilizadas são a Dívida Bruta e Líquida do Governo Geral (que inclui o governo federal, os estados e os municípios e exclui, além do Banco Central, as empresas estatais). 65 Exclui o valor da Base Monetária no conceito harmonizado, ou seja, exclui o papel-moeda emitido (PME) e os fundos das reservas bancárias, remuneradas e não remuneradas, depositadas no Banco Central. 122 Dívida Pública: a experiência brasileira acima (fluxos) e abaixo (variação de estoques) da linha, que podem ser atribuídas a outros fluxos econômicos não registrados, bem como erros de cobertura ou de momento de registro.66 Essas discrepâncias reduziram-se significativamente nos últimos anos. A dívida pública brasileira não é registrada com base em valores de mercado (conforme a recomendação do GFSM 2001). A Dívida Pública Federal (interna e externa) é registrada pelo valor nominal, ou seja, o montante devido em determinado momento, inclusive juros por competência, calculados com base na taxa de juros do contrato ou título, bem como descontos ou prêmios, se houver.67 O Tesouro Nacional registra todos os dados da Dívida Pública Federal pelo critério da competência (tanto nos Relatórios Mensais e no Relatório Anual da Dívida Pública quanto no Plano Anual de Financiamento), levando em conta todos os fluxos de principal e juros relativos a títulos e contratos sob a responsabilidade do governo federal. As informações de endividamento publicadas pelo Banco Central e pelo Tesouro Nacional são compatíveis, considerando as emissões e os resgates do período e a apropriação de juros por competência. As emissões e os resgates permitem calcular as necessidades de financiamento no conceito primário, que é medido pelo critério de caixa. Não há descasamento entre o valor de resgate da dívida e o valor registrado do estoque. Quando há troca de dívida (como no caso do programa de resgate antecipado da dívida externa, por exemplo), o valor de resgate da dívida (marcado a mercado) não será igual ao valor nominal registrado pela contabilidade. A diferença é registrada como mudança no patrimônio líquido, mas sem afetar o resultado fis- cal ou seu financiamento. No GFSM 2001, variações do estoque da dívida entre dois períodos em função de alterações em seu valor de mercado seriam classificadas como “outros fluxos econômicos”. As empresas públicas também registram seus ativos e passivos pelo valor nominal, em linha com os padrões da contabilidade pública brasileira. Com relação às informações relativas aos governos subnacionais, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu art. 51, determinou a padronização dos demonstrativos fiscais das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) para fins de consolidação das contas públicas. Nesse sentido, desde 2000 a Secretaria do Tesouro Nacional elabora e divulga o Manual de elaboração do anexo de riscos fiscais e relatório de gestão fiscal e o Manual de elaboração do anexo de metas fiscais e relatório resumido da execução orçamentária.68 Em 2007, o Tesouro criou Grupos Técnicos de Padronização de Relatórios e de Procedimentos Contábeis, com a participação de diversas instituições públicas e da sociedade civil, gerando a 1ª edição do Manual técnico de demonstrativos fiscais, que entrou em vigor em janeiro de 2009. As informações da DLSP publicadas pelo Banco Central incluem, além da dívida do governo com os demais setores da economia, a dívida entre governos. As informações são apresentadas de forma que não haja duplicidade na consolidação dos dados, permitindo que sejam visualizados os débitos e os créditos do governo, inclusive de um nível de governo com outro. As informações de estoques e fluxos apresentadas pelo Banco Central são totalmente integradas.69 Mudanças no endividamento decorrentes, por exemplo, de alterações na taxa de câmbio, de privatizações e 66 Cabe destacar que as privatizações e o reconhecimento de dívidas não geram discrepâncias entre os dados acima e abaixo da linha porque não são consideradas em nenhuma das duas metodologias na apuração do resultado fiscal do período. No caso da apuração abaixo da linha, privatizações e reconhecimento de dívidas são considerados ajuste patrimonial, não gerando impacto nas necessidades de financiamento. 67 O que equivale, na prática, ao valor presente líquido dos pagamentos futuros de principal e juros, descontados pela taxa de juros do contrato ou título. 68 O Anexo II do Volume III do Relatório de Gestão Fiscal trata da padronização da Dívida Consolidada Líquida. 69 Conforme apresentado em quadros da Nota para imprensa – política fiscal e nas séries temporais especiais, disponíveis no site do Banco Central. 123 reconhecimento de dívidas são explicitadas como ajustes patrimoniais e metodológicos nas publicações fiscais, compondo, com as necessidades de financiamento, os fluxos do período. Além da conciliação entre estoques e fluxos, são explicitados os efeitos da taxa de juros, do resultado primário e do crescimento econômico sobre a relação dívida/PIB. É importante destacar que as estatísticas fiscais publicadas pelo Banco Central são apuradas com base nos registros contábeis do credor (devedor) do setor público, ou seja, das fontes financiadoras (financiadas). Os dados são oriundos da contabilidade do setor financeiro, dos sistemas de liquidação e de custódia de títulos públicos e dos registros do balanço de pagamentos. Uma interessante inovação, e um ponto forte das estatísticas fiscais brasileiras e, indiretamente, das estatísticas da dívida pública está contida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).70 Essas leis contêm im- portantes informações complementares apresentadas em um anexo, relativas a riscos fiscais, especialmente detalhes sobre ativos e passivos contingentes. Tal informação é exigida nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, 2000). A LRF também determina a criação de limites de dívida (estoques e fluxos) para os governos federal, estaduais e municipais71 e contém limites legais sobre despesas de pessoal, dentre outras restrições de gastos correntes, proibições de financiamento intergovernamental e de financiamento do Banco Central ao governo federal, entre outras boas práticas de política fiscal.   5.3.2 Comparações com as bases de dados internacionais Como informado anteriormente neste capítulo, as estatísticas de dívida do setor público brasileiro são divulgadas no site do Banco Central na internet e em suas publicações. O Tesouro Nacional também divulga dados da dívida do governo central. O Banco Central é o principal órgão que fornece informações sobre a dívida pública às agências internacionais72 e o ponto de contato para a participação do Brasil no SDDS. Os dados da dívida do setor público brasileiro aparecem no GFS do FMI e os dados da dívida pública externa estão disponíveis na base de dados do DRS do Banco Mundial e do sistema integrado BIS-FMI-Banco Mundial. O Brasil fornece mensalmente informações de endividamento e resultado fiscal para o FMI, inte- grando a base de dados do SDDS. 5.3.3 O padrão da dívida do setor público do FMI O FMI desenvolveu um padrão de dívida do setor público73 que incentiva os países participantes a decomporem seu balanço em diferentes componentes do setor público não financeiro, como se segue. 70 Lei aprovada anualmente pelo Congresso Nacional, cujo objetivo é apresentar as linhas gerais que nortearão a proposta orça- mentária para o ano seguinte, a ser encaminhada ao Congresso Nacional assim que a LDO for aprovada. 71 Tais limites de endividamento são definidos em leis e resoluções (do Senado Federal) e baseiam-se, normalmente, em percentuais da receita corrente líquida de cada ente governamental. Maiores detalhes sobre os limites para a dívida pública definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser encontrados no Capítulo 4 da Parte 2 (subseção 4.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal no contexto da dívida pública) e no Capítulo 5 da Parte 2 (subseção 2.4.1 Condições, vedações, limites e penalidades). 72 Exceto Agências de Classificação de Risco (do inglês rating agencies), que mantêm contato permanente com a Gerência de Rela- cionamento Institucional da Secretaria do Tesouro Nacional, pertencente ao Ministério da Fazenda. Essa gerência também mantém rede extensa de comunicação com investidores da Dívida Pública Federal, analistas de mercado, jornalistas e outros formadores de opinião sobre Dívida Pública Federal e política fiscal. 73 Sua versão mais recente foi divulgada em setembro de 2006. 124 Dívida Pública: a experiência brasileira A Tabela 6A registra a dívida por vencimento original, residência e instrumento; a Tabela 6B registra a dívida por moeda, vencimento residual e instrumento; a Tabela 6C registra a dívida por moeda, taxa de juros e instrumento, e a Tabela 6D registra a  dívida pelo setor dos  detentores dos títulos. Além disso, a Tabela 6E registra as dívidas em atraso, se houver. Dois anexos fazem parte do padrão de dívida: o Anexo 3A registra o cronograma de pagamentos do serviço da dívida (principal e juros) por residência, enquanto o Anexo 3B registra esse cronograma por moeda. O FMI está colaborando com outras organizações internacionais para promover a utilização dessa ferramenta. Em relação a esse novo padrão, o governo brasileiro criou, em 2007, um Grupo de Trabalho Interministerial, composto pelo Ministério da Fazenda, pelo Ministério do Planejamento e pelo Banco Central, com o objetivo de identificar as condições para viabilizar e sistematizar a elaboração da estatística fiscal segundo o Government finance statistics manual – GFSM 2001. O valor de tal exercício é indiscutível, mesmo se for completado apenas para fins internos. Uma tentativa de preencher esse modelo poderia revelar lacunas de dados e outras deficiências estatísticas que poderiam ser resolvidas ao longo do tempo. Referências BANCO CENTRAL DO BRASIL. Manual de estatísticas fiscais, publicado pelo Departamento Econômico do Banco Central do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29/01/2009. ______. Nota para a imprensa – política fiscal. Disponível em: < http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC>. Acesso em: 29/01/2009. ______. Nota para a imprensa – setor externo. Disponível em: < http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPEXT>. Acesso em: 29/01/2009. ______. Séries temporais. Disponível em: . Acesso em: 29/01/2009. ______. Time series. Disponível em: . Acesso em: 29/01/2009. CERQUEIRA, Ceres Aires. Dívida externa brasileira. 2. ed. Brasília: Banco Central do Brasil, 2003. Di- sponível em: < http://www.bcb.gov.br/htms/Infecon/DividaRevisada/prefacio_introducao.pdf> Acesso em: 29/01/2009. EUROPEAN CENTRAL BANK. EUROSYSTEM. Statistical data warehouse – government finance. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. EUROSTAT. Government finance statistics. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. INTERNATIONAL FEDERATION OF ACCOUNTANTS (IFAC). International public sector accounting standards board. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). Dissemination standards bulletin board. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. ______. Government finance statistics manual 2001. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. 125 ______. Government finance statistics on-line. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD Stat extracts. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL (STN). Dados das dívidas de estados e municípios. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. ______. Estoque da dívida interna securitizada por títulos. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. ______. Plano Anual de Financiamento (PAF). Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. ______. Relatório anual da dívida pública. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. ______. Relatório mensal da Dívida Pública Federal. Disponível em: < http://www.tesouro.fazenda.gov.br/ hp/relatorios_divida_publica.asp> Acesso em: 29/01/2009. ______. Tesouro direto. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. WORLD BANK. JEDH database. Disponível em: Acesso em: 29/01/2009. 126 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo Estatísticas fiscais Conforme comentado na seção 2 deste capítulo, a dívida é uma obrigação de determinada entidade com terceiros, gerada a partir da existência de defasagem entre receitas e despesas dessa entidade. No caso brasileiro, essa defasagem pode ser calculada sob diferentes conceitos, conforme apresentado a seguir. O resultado nominal do setor público, também conhecido como Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP), é o conceito mais amplo de resultado fiscal e corresponde à diferença entre receitas e despesas nominais no período, incluídas as financeiras.74 Atualmente, no Brasil, o resultado nominal é calculado com base na variação da Dívida Fiscal Líquida,75 que exclui, dentre outros, o efeito dos passivos contingentes registrados (chamados “esqueletos”) e das receitas de privatização, visto que estes não representam resultado de esforço fiscal no exercício em que foram contabilizados. Em períodos de inflação elevada e em função dos mecanismos de indexação existentes, era evidente que o resultado nominal não refletia corretamente a postura expansionista/contracionista da política fiscal, pois o resultado era função basicamente da incorporação dos efeitos da correção monetária. Por exemplo, enquanto em 1992, 1993 e 1994 o déficit nominal do setor público foi de 44%, 58% e 48% do PIB, respectivamente, em 1995 esse resultado foi de 7,3%, uma diferença superior a 40% do PIB em relação ao ano anterior, explicada em sua quase totalidade pela forte queda da inflação advinda do Plano Real. Com o objetivo de eliminar o efeito distorcivo da inflação sobre as estatísticas fiscais, divulgava-se, no Brasil, o chamado resultado operacional do setor público,76 que correspondia ao aumento real da Dívida Líquida do Setor Público, descontando-se os efeitos inflacionários sobre a evolução nominal dos estoques de passivos e ativos. Esse indicador media o aumento real da absorção, por parte do setor público, da poupança financeira dos agentes privados. O Resultado Primário do Setor Público é o resultado nominal, excluído o efeito dos juros nominais incidentes sobre a dívida pública interna e externa. Esse indicador mede o efetivo esforço determinado pela política fiscal, “descontaminada” dos efeitos da taxa de juros nominal sobre o estoque da dívida existente, que é função dos déficits acumulados no passado. O resultado primário pode ser mensurado de duas formas: i) pela diferença entre receitas (exceto aplicações financeiras) e despesas (exceto juros), a qual é denominada “acima da linha” e é calculada e divulgada mensalmente pelo Tesouro Nacional; e ii) pela variação da Dívida Fiscal Líquida – resultado nominal calculado pelo Banco Central segundo o conceito “abaixo da linha” – descontada dos valores referentes aos juros nominais. Discrepância estatística Teoricamente, os valores obtidos para o resultado primário pelos conceitos “acima da linha” e “abaixo da linha” deveriam ser equivalentes para um mesmo ente de governo. No entanto, isso não ocorre, em vista de diferenças metodológicas utilizadas. A essa diferença as estatísticas oficiais chamam de “discrepância 74 As receitas financeiras correspondem àquelas resultantes de aplicações financeiras ou retornos de empréstimos a terceiros, enquanto as despesas financeiras se referem aos juros nominais dos empréstimos realizados. 75 Para maiores detalhes sobre a Dívida Fiscal Líquida, ver box na seção 2. 76 A partir de 1998, esse conceito deixou de ser divulgado na Nota para a imprensa – política fiscal, embora seus dados históricos continuem a ser calculados pelo Banco Central e disponibilizados em seus bancos de dados, que podem ser consultados por meio do Sistema Gerenciador de Séries Temporais (SGS). Para maiores detalhes, acesse www.bcb.gov.br. 127 estatística”, a qual decorre, principalmente, em função das divergências entre os conceitos de caixa e competência, além de questões operacionais referentes à apuração das informações que representam o resultado fiscal. É importante destacar que a “discrepância estatística” vem sendo objeto de aprimoramentos constantes, a partir de discussões e aperfeiçoamentos dos procedimentos por parte do Tesouro Nacional e do Banco Central, o que proporcionou sua redução substancialmente. 128 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 O Gerenciamento da Dívida Pública Brasileira 129 130 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 Capítulo 1 Estrutura institucional e eventos recentes na administração da Dívida Pública Federal Karla de Lima Rocha 1 Introdução A importância de uma eficiente gestão da dívida pública tem sido objeto de debate recorrente, dada sua função de ajudar os países a imunizarem as políticas monetária e fiscal ante contágios e choques financeiros. Segundo o Banco Mundial (2001), a administração da dívida pública é o processo de estabeleci- mento e execução de uma estratégia de gerenciamento da dívida do governo, com o intuito de levantar os recursos necessários para seu financiamento, perseguir seus objetivos de custo e risco e alcançar outros objetivos traçados, tais como o desenvolvimento e a manutenção de um mercado líquido e eficiente de títulos públicos. A busca pelo desenvolvimento de uma estrutura eficiente de administração de dívida pública incentivou instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial a formularem um conjunto de diretrizes para a gestão da dívida pública, compiladas em um documento intitulado Guidelines for public debt management publicado em março de 2001. O objetivo desse documento é incentivar os diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, a programarem reformas visando ao aprimora- mento da gestão da dívida. Procura-se com elas identificar temas, de ampla convergência internacional, considerados práticas prudentes de gestão. Esses temas correspondem a uma efetiva coordenação entre políticas monetária e fiscal, gestão da dívida pública, boa governança, adequada estrutura institucional, capacidade técnica da equipe e sistemas tecnológicos de informação seguros e precisos, possibilitando a aplicação de estratégias de médio e longo prazos para a dívida pública. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é descrever a experiência brasileira, ilustrando a forma como a administração da dívida pública se adequou às melhores práticas internacionais.1 Além desta Introdução, este capítulo está dividido em seis seções. A seção 2 aborda a importância da coordenação da gestão da dívida pública com as políticas fiscal e monetária. A seção 3 mostra o processo de desenvolvimento de uma governança sólida e eficaz. A seção 4 trata da importância do desenvolvimento de uma estratégia prudente e consistente de dívida pública e da existência de uma estrutura de gerenciamento de riscos. As medidas que têm sido tomadas para aprimorar a capacidade técnica da equipe e os sistemas tecnológicos de informação são descritas na seção 5. A seção 6 mostra como o Brasil passou da fase de implementação de reformas 1 Destaca-se que as diversas medidas implementadas na administração da dívida pública brasileira, que serão descritas ao longo deste capítulo, contaram com o apoio do Projeto de Fortalecimento do Gerenciamento Fiscal e Financeiro (Proger), financiado pelo Banco Mundial. Esse projeto visa à modernização da atuação do governo nas áreas fiscal e financeira e à melhoria da qualidade na prestação dos serviços públicos. 131 e desenvolvimento da capacidade de gestão da dívida pública à fase de contribuição para a disseminação de boas práticas em administração da dívida. Por fim, a seção 7 traz algumas considerações finais sobre os principais pontos que envolvem uma administração eficiente da dívida pública e como o Brasil está em linha com as melhores práticas internacionais. 2 Coordenação da gestão da dívida pública com as políticas fiscal e monetária De acordo com as diretrizes estabelecidas pelo FMI e pelo Banco Mundial, os gestores de dívida pública e de política fiscal e as autoridades do Banco Central devem compartilhar o mesmo entendimento sobre quais são os objetivos das respectivas políticas, tendo em vista a interdependência entre os diferentes instrumentos utilizados por estas. A implantação de uma política de administração de dívida deve ser consistente com as demais políticas macroeconômicas, objetivando manter a dívida pública em níveis suste ntáveis. Em países nos quais existem mercados financeiros mais desenvolvidos e eficientes, existe uma sepa- ração clara entre a gestão da dívida e os objetivos e as responsabilidades da política monetária, reduzindo assim possíveis conflitos. Países que se encontram em estágios menos avançados na separação de objetivos e de responsabilidades enfrentam maiores desafios. Na maioria dos casos, isso ocorre em virtude, princi- palmente, da ausência de um mercado desenvolvido de títulos, de pouca independência do Banco Central e do fato de a política monetária e de endividamento muitas vezes dispor de instrumentos de mercado similares. Quanto a este último ponto, uma das características do modelo brasileiro era que, até a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, o Banco Central utilizava, além dos títulos do Tesouro Nacional existentes em sua carteira, títulos próprios para fazer política monetária, levando o mercado a não detectar com clareza os objetivos de determinada emissão, prejudicando, assim, a condução tanto da política monetária quanto da política de gerenciamento de dívida. Nesse sentido, a LRF proibiu a emissão de títulos em mercado pelo Banco Central. Por essa lei, a partir de 2002, o Banco Central, no âmbito da política monetária, passou a realizar operações compromissadas e definitivas exclusivamente com títulos do Tesouro Nacional registrados em seu ativo. Essa foi uma importante medida tomada, buscando a separação clara entre as funções de política monetária e fiscal. Outro passo importante foi a transferência da administração das operações da Dívida Pública Federal externa do Banco Central para o Tesouro Nacional. Até outubro de 2003, o Banco Central era quem vinha desempenhando quase a totalidade das atribuições relacionadas ao processo de emissão de títulos da dívida externa por meio de um convênio firmado entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central. Com o fim do convênio e buscando alinhar-se às melhores práticas internacionais, o Tesouro Nacional e o Banco Central deram continuidade ao processo de unificação das decisões relativas à emissão de títulos. O processo de transferência da dívida externa ocorreu ao longo de 2004, de modo que, a partir de janeiro de 2005, o Tesouro Nacional passou a centralizar todas as decisões relacionadas ao gerenciamento da Dívida Pública Federal (DPF) interna e externa. Destaca-se que a administração da dívida externa em conjunto com a dívida interna tende a proporcionar uma gestão de risco mais eficiente, possibilitando sinergias no planejamento integrado das operações correlacionadas e gerando transparência em relação aos objetivos, às diretrizes e às estratégias da Dívida Pública Federal. No que diz respeito à coordenação das políticas monetária e fiscal, a determinação da necessidade de financiamento do governo baseia-se nas projeções econômicas, dentre elas a taxa de juros, as expectativas de resultado primário e de inflação, propostas no orçamento e aprovadas pelo Congresso Nacional. Dessa forma, a gestão da dívida pública é baseada nas diretrizes de políticas fiscal e monetária. 132 Dívida Pública: a experiência brasileira Pode-se observar então a existência de uma relação estreita entre as autoridades do Tesouro Nacional e as do Banco Central, as quais realizam reuniões periódicas para compartilhar informações acerca de suas percepções de mercado e suas futuras ações. 3 Governança A governança pode ser entendida como a regulamentação da estrutura administrativa pelo estabeleci- mento dos direitos e dos deveres dos gestores e da dinâmica e organização da instituição. Uma estrutura de governança deve estabelecer a definição clara dos objetivos, das responsabilidades e das regras para as instituições envolvidas na administração da dívida pública. Alguns dos requisitos de uma boa prática de governança são: a existência de uma estrutura legal e institucional definida, transparência e prestação de contas (accountability). 3.1 Estrutura legal As melhores práticas internacionais estabelecem que a competência para contrair e emitir novos instru- mentos de dívida, investir e realizar transações em nome do governo deve estar claramente definida por meio de legislação. Uma legislação bem definida é importante para eliminar a existência de múltiplos emissores e estabelecer responsabilidades. No Brasil, a definição de responsabilidades é dada pelo Decreto nº 4.643, de 24 de março de 2003, sendo o Ministério da Fazenda o responsável pela “administração das dívidas públicas doméstica e externa”. O referido decreto define o Tesouro Nacional como a área do Ministério da Fazenda responsável por “ad- ministrar as dívidas públicas mobiliária e contratual, interna e externa, de responsabilidade direta e indireta do Tesouro Nacional”. A legislação da política de endividamento está definida com base em cinco instrumentos:2 i) a Consti- tuição Federal do Brasil, que estabelece as diretrizes gerais para a dívida pública;3 ii) a LRF, que define normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal bem como diversos limites para a DPF; iii) a Lei nº 10.179, de 2001, que dispõe sobre os títulos da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional; iv) a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO);4 e v) a Lei Orçamentária Anual (LOA).5 Destaca-se também que a Constituição Federal atribui ao Senado Federal a competência privativa para autorizar operações externas de natureza financeira de todas as instâncias de governo; fixar limites globais6 e condições de crédito externo das instâncias de governo e dispor sobre os limites e as condições para a concessão de garantias em operações de crédito externo. Até o limite aprovado, o Tesouro Nacional tem autonomia decisória com relação à escolha de mercados, aos volumes, ao momento e aos tipos dos títulos. Renovações desses limites, adequados às necessidades de financiamento do governo, não têm sido um aspecto problemático da administração da dívida. 2 Para maiores informações, ver Parte 2, Capítulo 5 (Marcos regulatórios e auditoria governamental da dívida pública). 3 Dentre as diretrizes destaca-se a Regra de Ouro (limite de endividamento que prevê que o valor das receitas de operações de crédito não deve superar o valor das despesas de capital), a competência do Senado Federal para autorizar e propor limites para operações externas e a proibição do financiamento do Tesouro Nacional pelo Banco Central. 4 A LDO estabelece, anualmente, as metas e as prioridades para o exercício financeiro subsequente e orienta a elaboração do orçamento. 5 A LOA contém a discriminação da receita e da despesa pública, evidenciando a política econômico-financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade. 6 O teto atual para a emissão de títulos federais nos mercados internacionais é de US$ 75 bilhões, dado pela Resolução do Senado Federal nº 20, de 2004. 133 3.2 Estrutura institucional Internacionalmente, a prática de concentrar as funções de gerenciamento da dívida pública em uma unidade governamental vem se tornando consenso. Isso porque se reconhece, nessa medida, um passo im- portante para aumentar a eficiência do gerenciamento da dívida pública como um todo e, consequentemente, estruturar uma administração estratégica mais eficiente e coordenada. Nos países onde a responsabilidade pela administração da dívida pública é dividida entre diversas instituições, podem-se observar inconsistências nos processos e nas estratégias, bem como duplicidade de funções. De acordo com Wheeler e Jensen (2000), diversos países têm procurado centralizar e aprimorar sua administração de dívida pública constituindo um departamento autônomo de gerenciamento de dívida que pode estar localizado fora ou dentro da estrutura do Ministério da Fazenda ou do Tesouro. Esse departamento é conhecido como Debt Management Office (DMO-Departamento de Administração da Dívida), que preconiza a separação das atribuições do órgão por funções, usualmente em back, middle e front office, dados os diferentes objetivos e responsabilidades dos gestores de dívida pública. No caso brasileiro, essas funções são centralizadas pelo Ministério da Fazenda na estrutura do Tesouro Nacional. Dentre os motivos para a manutenção das atribuições de gestão da dívida no Ministério da Fazenda, destaca-se a importância de se manter um relacionamento estreito com outras partes do governo ligadas, por exemplo, à execução orçamentária e da política fiscal. A figura a seguir demonstra como o Tesouro Nacional se insere na estrutura administrativa do governo federal. Figura 1. Estrutura administrativa do governo federal * Secretaria Executiva (SE), Secretaria de Política Econômica (SPE), Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) e Secretaria de Assuntos Internacionais (Sain). Nota: Em 2008, foi criada a Secretaria-Adjunta V, responsável, dentre outros temas, por estudos econômico-fiscais, no âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional. 134 Dívida Pública: a experiência brasileira A partir de 2000, o Tesouro Nacional, buscando aprimorar sua estrutura institucional de gerenciamento de dívida pública, programou um novo modelo de gerenciamento baseado na idéia de DMO e em linha com as experiências internacionais. A figura a seguir reflete o processo de reestruturação do Tesouro Nacional no âmbito das duas áreas até então responsáveis diretamente pela administração da dívida pública: a Coordena- ção Geral de Administração da Dívida Interna (Codip) e a Coordenação Geral de Assuntos Externos (Corex). Estas duas coordenações gerais foram reorganizadas e distribuídas em três novas áreas, conhecidas como Codiv, Cogep e Codip. Figura 2. Estrutura da Secretaria-Adjunta da Dívida Pública A Coordenação Geral de Controle da Dívida Pública (Codiv) (back office) responsabiliza-se pelo registro e pelo controle da Dívida Pública Federal, pelo relacionamento com as centrais de custódia, pela elaboração da proposta orçamentária anual da dívida pública, bem como de sua execução financeira e orçamentária, incluindo os pagamentos e os registros contábeis, além das emissões de títulos decorrentes de operações especiais,7 tais como Proex,8 FCVS9 e reforma agrária. A Coordenação Geral de Planejamento Estratégico da Dívida Pública (Cogep) (middle office) tem como funções o desenvolvimento e o acompanhamento das estratégias de financiamento de médio e longo pra- zos, a elaboração e o acompanhamento de parâmetros de risco da dívida pública, a realização de pesquisas diversas para dar suporte aos tomadores de decisão, a análise da conjuntura econômica e o relacionamento com investidores. A Coordenação Geral de Operações da Dívida Pública (Codip) (front office) é responsável pela estratégia de curto prazo para a dívida pública, pelos processos de emissões com a finalidade de financiar o déficit do 7 Operações especiais são aquelas de emissão/resgate de títulos públicos para finalidades específicas definidas em lei que não sejam feitas mediante oferta pública. 8 Programa de Financiamento às Exportações. 9 Fundo de Compensação de Variações Salariais. 135 governo, pela criação de novos produtos e pelas operações especiais. Todas essas coordenações estão sob a supervisão da Secretaria Adjunta da Dívida Pública do Tesouro Nacional. A formalização das boas práticas de governança também pode se dar por meio da criação de comitês no próprio departamento, com o objetivo de compartilhar informações e decisões que possam afetar a ad- ministração da dívida pública. Para tanto, o Tesouro Nacional formalizou a criação do Comitê de Gerenciamento da Dívida Pública Federal, que é composto pelo secretário-adjunto da Dívida Pública do Tesouro Nacional, como presidente, e pelos coordenadores gerais (chefes de cada office) e coordenadores da Secretaria Adjunta. O presidente do comitê pode solicitar a presença de outros integrantes do Tesouro Nacional para participarem das reuniões. O referido comitê reúne-se na última semana de cada mês para discutir e propor a estratégia de gestão da dívida pública para o mês seguinte, divulgando o cronograma de leilões da dívida pública mobiliária interna até um dia útil antes da data do primeiro leilão referente ao mês em questão. As principais decisões estabe- lecidas nas reuniões mensais são levadas ao secretário do Tesouro Nacional para aprovação. O comitê reúne-se também uma vez por ano para, dentre outros temas, definir as diretrizes de médio e longo prazos para a DPF e propor a estratégia de financiamento dessa dívida para o ano fiscal seguinte, bem como os limites dos indicadores de referência, que seriam oficializados no âmbito do Plano Anual de Financiamento. O secretário do Tesouro Nacional, após aprovar a proposta do comitê, apresenta-a ao ministro da Fazenda para avaliação e aprovação final. O comitê tem, portanto, um caráter propositivo, sendo de autonomia do secretário do Tesouro Nacional e, em última instância, do ministro da Fazenda a decisão final em relação ao tema. Ressalta-se que esse modelo de administração tem resultado em ganhos substanciais no processo de gerenciamento da dívida pública, pois ampliou a padronização dos controles operacionais e o moni- toramento dos riscos e permitiu planejamentos de médio e longo prazos (estratégico) e de curto prazo (tático) mais eficientes. 3.3 Transparência Segundo Wheeler e Jensen (2000), uma política de transparência pode ser definida como: […] an environment in which the objectives of policy, its legal, institutional and economic framework, policy deci- sions and their rationale, data and information related to [...] policies, and the terms of agencies accountabilities are provided to the public on an understandable, accessible and timely basis. A divulgação pública dos objetivos e das responsabilidades da administração da dívida pública é essencial para a conquista de credibilidade. De acordo com as diretrizes definidas pelo FMI e pelo Banco Mundial, os objetivos de gestão da dívida, incluindo as medidas de custo e risco adotadas, bem como infor- mações regulares de composição e estoque de seus ativos financeiros e de dívida, deverão ser claramente definidos e divulgados ao público. Dentre as vantagens da adoção de uma política de transparência, pode-se destacar a redução das incertezas do mercado acerca dos objetivos da política de administração de dívida e da consistência das decisões políticas relacionadas a esses objetivos, podendo acarretar a redução da volatilidade de mercado e do prêmio de risco exigido pelos investidores. Se as metas e os instrumentos de política de gestão de dívida são conhecidos pelo público e as autoridades são comprometidas com eles, a eficácia do gerenciamento da dívida é reforçada. 136 Dívida Pública: a experiência brasileira No Brasil, as funções e as responsabilidades dos administradores de dívida pública estão formalmente definidas mediante instrumentos jurídicos e amplamente divulgadas na página do Tesouro Nacional na in- ternet.10 Também é divulgada toda regulamentação relacionada à gestão da dívida e às atividades inerentes aos mercados primário e secundário. No contexto da adoção de uma política de transparência, faz-se necessário destacar o papel desem- penhado pela Gerência de Relacionamento Institucional11 do Tesouro Nacional dada a sua função de dar transparência e publicidade aos atos do Tesouro como gestor da dívida pública, além de buscar a ampliação da base de investidores, conduzir reuniões periódicas com agências de classificação de risco e manter atualizada a página na internet com informações relevantes para os investidores e para o público afim, dentre outras atribuições (ver Box 1). Dentre os instrumentos divulgados pelo Tesouro Nacional com objetivo de dar transparência e previsi- bilidade à gestão da dívida pública podem-se destacar: l Plano Anual de Financiamento da Dívida Pública: publicação anual editada desde janeiro de 2000, na qual são divulgadas as metas, as premissas e as prioridades do Tesouro Nacional de forma estruturada e pública. l Relatório Anual da Dívida Pública: propõe uma análise retrospectiva do gerenciamento da dívida pública para o ano a que se refere, permitindo discutir o processo de definição dos objetivos e das metas desse gerenciamento, inclusive em termos de recursos humanos e tecnológicos, e seus resultados. l Relatório Mensal da Dívida Pública: apresenta informações e estatísticas sobre emissões, resgates, evolução do estoque, prazo médio e vida média, perfil de vencimentos e custo médio, dentre outros, para a Dívida Pública Federal, nela incluídas as dívidas interna e externa de responsabilidade do Tesouro Nacional em mercado. l Cronograma Mensal de Emissões: no início de cada mês o Tesouro Nacional divulga o cronograma, infor- mando as datas de realização e de liquidação dos leilões, o volume máximo que será ofertado no período, bem como os títulos a serem ofertados. l Informes da Dívida: apresenta informações esporádicas sobre assuntos relevantes relacionados à dívida pública. l Apresentação para Investidores: apresentação, atualizada semanalmente, para investidores, com as princi- pais informações pertinentes à dívida pública, nas versões em português e em inglês. Tal apresentação inclui um breve panorama macroeconômico e descreve os principais avanços e desafios na administração da dívida pública, com destaque para a estratégia de financiamento do Tesouro Nacional. l Apresentações diversas: dada a elevada participação de representantes do governo em eventos nacionais e externos, busca-se disponibilizar o material apresentado para consulta do público. l Programa de teleconferências: realizado em caráter regular, o secretário do Tesouro Nacional acessa as bases de investidores domésticas e estrangeiras para divulgar os avanços da administração da dívida pública, os aspectos fiscais e qualquer outro ponto que seja importante para o conhecimento dos investidores e do público. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/leg_divida.asp. 10 A Gerência de Relacionamento Institucional (Gerin) foi criada em 2001, no âmbito do processo de reestruturação do Tesouro 11 Nacional, integrando a Coordenação Geral de Planejamento Estratégico da Dívida Pública (Cogep). 137 Todos os instrumentos de divulgação do Tesouro Nacional são enviados a diversos segmentos, tais como investidores domésticos e estrangeiros, organismos multilaterais, agências de rating e imprensa por meio de mala direta. Com esse instrumento, tem sido possível promover maior transparência sobre a gestão da dívida pública brasileira com uma maior divulgação dos eventos a ela relacionados. Box 1. O reconhecimento pelo mercado do Programa de Relacionamento Institucional De acordo com o Institute of International Finance (IIF), instituição que reúne as principais instituições finan- ceiras do mundo, o Brasil é, atualmente, o país emergente que possui a melhor estrutura de relações com investidores e transparência na divulgação de informações sobre contas públicas e endividamento. Esse estudo12 abrangeu um grupo de trinta países, tais como China, Índia, Coreia do Sul, Rússia e África do Sul, países estes que já alcançaram o grau de investimento. O relatório oferece aos investidores uma extensa avaliação comparativa sobre comunicação e transparência na disseminação de dados para os países em questão. Gráfico 1. Ranking de relações com investidores Fonte: IIF No Brasil, duas instituições diferentes são responsáveis pelo relacionamento com investidores: i) a Gerência Executiva de Relacionamento com Investidores (Gerin) do Banco Central, cujo objetivo é aperfeiçoar a comunicação entre este e o setor privado, com foco sobre os investidores domésticos e externos disponibilizando informações sobre diversos aspectos da economia brasileira, em especial sobre as políticas econômica e monetária; e ii) a Gerência de Relacionamento Institucional (Gerin) do Tesouro Nacional, cujas principais funções são desenvolver, manter e aperfeiçoar o contato com entes participantes dos mercados financeiros nacional e internacional, provendo-os de transparência e de melhor nível de informação sobre a gestão da Dívida Pública Federal e a política de financiamento do Tesouro Nacional, assim como contribuir para a ampliação da base de investidores. 12 http://www.iif.com/press/press+14.php. 138 Dívida Pública: a experiência brasileira De acordo com o IIF, as duas instituições vêm, consistentemente, atendendo de maneira satisfatória a padrões prescritos tanto pelo próprio IIF quanto pelo FMI no que se refere à pontualidade e à periodicidade na divulgação de informações a respeito das estatísticas fiscais. O estudo destacou o esforço realizado por essas duas áreas que, mesmo atuando paralelamente, fizeram com que o Brasil alcançasse elevado grau de transparência, colocando-o em primeiro lugar, comparativamente, aos demais países emergentes. O ranking obtido no estudo do IIF reflete a adoção, pelo governo brasileiro, das melhores práticas de relacio- namento com investidores e de transparência na divulgação de informações, podendo trazer importantes benefícios para a administração da dívida pública, como a melhor proteção contra as incertezas do mercado, não somente em momentos favoráveis, mas também em períodos de alta volatilidade ou baixa liquidez internacional. 3.4 Auditoria externa13 As boas práticas de administração de dívida pública sugerem que as atividades relacionadas à dívida pública devam ser avaliadas anualmente por auditores externos. Essa auditoria deve incluir uma avaliação do ambiente institucional (estrutura organizacional e sistemas de informação), risco operacional, atividades de controle, informação e fluxos de comunicação, avaliação e monitoramento dos controles internos. A gestão da dívida brasileira submete-se anualmente a uma auditoria interna, que está a cargo da Controladoria Geral da União (CGU), órgão do Poder Executivo e a uma auditoria externa, pelo Tribunal de Contas da União (TCU), órgão do Poder Legislativo. 4 Estratégia para a gestão da dívida pública e o gerenciamento de risco Os elementos mais importante da administração da dívida pública são o desenvolvimento de uma estratégia consistente e sustentável para a dívida pública, baseada em análises de custo e risco, e o desen- volvimento do mercado doméstico, considerando as restrições macroeconômicas e de mercado e, por fim, a eficiente execução dessa estratégia (WORLD BANK, 2007). As diretrizes defendidas por especialistas para a elaboração e a execução de estratégias de endivida- mento ressaltam a importância de se monitorar e avaliar riscos inerentes à estrutura da dívida, considerando, por exemplo, seu perfil de vencimentos e a exposição a flutuações de variáveis econômico-financeiras. Em particular, o gestor deve preocupar-se com riscos associados aos impactos da taxa de câmbio e de juros e em assegurar o pagamento e o refinanciamento da dívida. A elaboração de uma estratégia de dívida pública deve explicitar uma estrutura de médio e longo prazos para a definição da composição ótima da dívida, permitindo que os gestores identifiquem e administrem trade-offs entre custo e risco. O processo de elaboração de uma estratégia para a dívida pública deve ser interativo, levando-se em consideração as restrições macroeconômicas e o nível de desenvolvimento do mercado. Esse processo pode ser observado na figura a seguir. 13 Para maiores informações, ver Parte 2, Capítulo 5. 139 Figura 3. Elementos de uma estratégia de dívida pública Informações de Restrições custo e risco Consistência e Restrições de restrições Informações de demanda custo e risco Iniciativas Fonte: World Bank No Brasil, a estratégia de gerenciamento da dívida pública, apresentada em seu Plano Anual de Financia- mento, define como objetivo principal a minimização dos custos de financiamento no longo prazo, assegurando a manutenção de níveis prudentes de risco e contribuindo para o bom funcionamento do mercado de títulos públicos. O Plano Anual de Financiamento é uma ferramenta de planejamento, de ampliação da transparência e busca dar previsibilidade no gerenciamento da dívida pública brasileira. Nos últimos anos, o Tesouro Nacional procurou aprimorar a gestão de riscos da dívida pública buscando adequar-se às melhores práticas internacionais. Para isso, promoveu discussões técnicas cobrindo a experiência internacional, os conceitos relevantes para o desenvolvimento do gerenciamento de risco, as metodologias e os indicadores atualmente empregados pelo setor privado e pelas agências internacionais de gerenciamento de dívida, dentre outros tópicos. Posteriormente, foram realizadas visitas técnicas a agências internacionais selecionadas de acordo com seu desenvolvimento e reputação na gestão de passivos públicos. Nesse contexto, foram visitadas as agências de Portugal, do Reino Unido, da Suécia, da Dinamarca e da Bélgica. As discussões com especialistas desses países contribuíram para uma proposta de aprimoramento do gerenciamento de risco da dívida brasileira, traduzida em um relatório interno do Tesouro Nacional, visando a orientar os próximos passos desse trabalho. O trabalho foi encerrado com a realização de um seminário sobre gerenciamento de dívida pública que teve como objetivo principal o debate de tópicos relativos à administração de risco da dívida pública e o enquadramento do atual modelo brasileiro no contexto das melhores práticas internacionais. O evento, organizado em conjunto com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial, no início de 2003, foi sediado pela Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro e contou com a participação do secretário e de analistas do Tesouro Nacional, de acadêmicos, especialistas internacionais e representantes dos principais Tesouros do mundo. 140 Dívida Pública: a experiência brasileira De acordo com as diretrizes do FMI e do Banco Mundial, um dos papéis mais importantes que desem- penham os gestores de dívida pública consiste em identificar os riscos associados à dívida, mensurar sua magnitude e elaborar a melhor estratégia para gerenciar trade-offs entre custo e risco. A maior ênfase que se tem dado ao gerenciamento de riscos requer que ferramentas mais sofisticadas sejam implantadas para identificar, medir e controlar riscos. Segundo os estudos de caso de diversos países14 apresentados no documento preparado pelo FMI e pelo Banco Mundial – Guidelines for Public Debt Management: Accompanying Document and Selected Case Studies –, vários países examinados utilizam arcabouços distintos para mensurar o trade-off entre custo es- perado e riscos do portfólio da dívida. Muitos fazem uso de modelos bastante simples, baseados em cenários determinísticos. Entretanto, modelos mais sofisticados vêm sendo desenvolvidos em alguns países, e a maioria também emprega testes de estresse como forma de avaliar riscos de mercado e a sensibilidade de estratégias distintas de financiamento. No caso brasileiro, observaram-se importantes avanços técnicos e institucionais no que se refere ao gerenciamento de riscos, tanto da dívida interna quanto da dívida externa. Dentre os avanços, destacam- se: i) aperfeiçoamento dos modelos estocásticos de risco; ii) aprimoramento do sistema de processamento de informações e o desenvolvimento de novas ferramentas de análise; iii) aperfeiçoamento do sistema de gerenciamento integrado de ativos e passivos (GAP);15 e iv) desenvolvimento do modelo de benchmark16 da dívida pública. Os modelos estocásticos utilizados pelo Tesouro Nacional para análise dos riscos de mercado e de refinanciamento, tais como o Cost-at-Risk (CaR) e o Cash-Flow-at-Risk (CFaR), apresentaram significativos progressos, tanto no processo de estimativa dos parâmetros associados a fatores de risco (taxa de juros, in- flação, câmbio) quanto no desenho das adaptações necessárias para a aplicação desses modelos à avaliação dos riscos ligados à dívida externa. Não apenas os modelos estocásticos, mas também o sistema de processamento e análise de dados passou por reformulações visando a tratar de maneira mais adequada as informações da dívida externa, aproveitando as sinergias com a dívida interna. Além disso, efetuou-se o desenvolvimento de novas ferramen- tas computacionais com o objetivo de facilitar a realização de exercícios de simulação de gerenciamento de passivos, bem como traçar fronteiras eficientes para a Dívida Pública Federal (ver Box 2). O sistema GAP reúne informações dos ativos e dos passivos do governo federal que direta ou in- diretamente contribuem para a dinâmica da dívida pública, ampliando a abrangência das análises focadas exclusivamente nela. Esse instrumento também vem passando por significativas mudanças, sobretudo no que concerne a tornar mais efetivo o estudo integrado da dívida interna e externa, considerando-se as fontes empregadas para seu financiamento. Essa abordagem permite avaliar riscos e custos da dívida, auxiliando na determinação de uma estrutura ótima de endividamento. Assinala-se, por fim, que os estudos e as discussões acerca do desenvolvimento do benchmark da dívida pública brasileira apresentaram expressivos progressos, em consonância com o aprimoramento do GAP e dos modelos estocásticos. Destaca-se que o Plano Anual de Financiamento (PAF), 2007, abordou, pela primeira vez, a existência do benchmark da Dívida Pública Federal, explicitando suas diretrizes. 14 Brasil, Colômbia, Dinamarca, Índia, Irlanda, Itália, Jamaica, Japão, México, Marrocos, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Eslovênia, África do Sul, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. 15 Também conhecido como ALM (do inglês, Assets and Liabilities Management). 16 O benchmark é uma estrutura de dívida ótima de longo prazo que norteia a estratégia de financiamento de curto e médio prazos e constitui importante instrumento de gerenciamento de risco e planejamento estratégico. 141 Box 2. Sistema de Planejamento Estratégico e Gerenciamento de Risco (Gerir) O Gerir encontra-se em funcionamento desde dezembro de 2002 e foi criado com o intuito de subsidiar a elaboração e a análise de estratégias alternativas de emissão de dívida pública. O sistema fornece, para cada estratégia elaborada, indicadores de custo e risco, bem como de perfil de maturação e de composição. De posse dessas informações, os gestores da dívida podem melhor avaliar diferentes planos de ação aderentes a cenários específicos. Dentre os objetivos do sistema destacam-se: i) permitir uma análise integrada entre ativos e passivos; ii) aprimorar a elaboração e a avaliação da estratégia de dívida pública; iii) estimar os indicadores financeiros e de risco dos ativos e dos passivos de responsabilidade do Tesouro Nacional; e iv) auxiliar nas avaliações de outras operações do Tesouro Nacional com o mercado. As principais entradas do sistema compreendem: l cenários macroeconômicos: o sistema permite a utilização de diferentes cenários macroeconômicos ou sua construção baseada em informações de mercado; l Carteira de Ativos e Passivos: o usuário pode escolher toda a carteira ou apenas uma seleção específica; l estratégia: o sistema permite a simulação e a comparação entre diversas estratégias de dívida interna e externa, assim como a elaboração de estratégias de curto a longo prazos usando sua própria metodologia. Os principais resultados oferecidos pelo sistema consistem em relatórios com os indicadores de dívida e os principais riscos (maturação, estoque, prazo médio, percentual vincendo em 12 meses, composição etc.), indicadores estocásticos como o CaR, o CFaR, o BaR17 e o VaR18 e um mapeamento dos ativos e dos passivos do Tesouro Nacional. Figura 4. Tela inicial do Gerir 17 Budget-at-Risk. 18 Value-at-Risk. 142 Dívida Pública: a experiência brasileira 5 Capacidade técnica da equipe e sistemas tecnológicos de informação 5.1 Capacidade técnica da equipe A administração da dívida pública requer uma equipe que detenha conhecimentos do mercado financeiro, da economia e das políticas públicas. Independentemente da estrutura institucional adotada, a habilidade para atrair e manter uma equipe qualificada é crucial, tanto para desenvolver e executar uma estratégia efetiva de dívida pública como para mitigar o risco operacional (WORLD BANK, 2007). O recrutamento e a manutenção de uma equipe experiente e qualificada são grandes mudanças a ser perseguidas pelos países que estão em processo de aprimoramento da gestão da dívida pública, contribuindo para o aumento da qualidade na administração desta. No Brasil, o processo de contratação de pessoal apresentou avanços significativos nos últimos anos. Apesar da existência da competição com outras instituições, seja do setor público seja do privado, o Tesouro Nacional tem conseguido contratar e manter uma equipe qualificada mediante a reestruturação da carreira de analista de Finanças e Controle. A carreira de Finanças e Controle foi criada para dar sustentação às atribuições do Tesouro Nacional, sendo formada por técnicos e analistas. A forma de ingresso na carreira dá-se por meio de concurso público, estruturado conforme a complexidade das atribuições do Tesouro Nacional. O rigoroso e competitivo processo de seleção é dirigido principalmente a profissionais com formação sólida em economia e finanças. O último concurso público para o cargo de analista de Finanças e Controle do Tesouro Nacional foi realizado em 2005, e a Secretaria-Adjunta responsável pela administração da dívida pública acolheu 25 novos analistas.19 A administração da dívida pública brasileira conta, atualmente, com aproximadamente noventa analistas. O Tesouro Nacional também tem investido na capacitação de seu corpo técnico mediante o ofe- recimento de programas de desenvolvimento e capacitação, em parceria com instituições dedicadas à especialização profissional e com organismos internacionais. Destaca-se que parcela significativa da equipe possui curso de especialização na área econômico-financeira, incluindo doutorado, mestrado e cursos de especialização lato sensu. Outra medida tomada para aprimorar a administração da dívida pública foi a adoção do Código de Ética e de Padrões de Conduta Profissional para os servidores do Tesouro Nacional. Esse código foi criado em função, principalmente, da necessidade de fixação de regras e princípios claros que orientassem as relações com o mercado financeiro, principal demandante primário de títulos públicos. A elaboração do Código de Ética contemplou análise de experiências internacionais e domésticas, formação de servidores em gestão da ética pública, apresentação de propostas e coleta de sugestões em todas as unidades do Tesouro Nacional. Esse documento apresenta as responsabilidades, os deveres e as vedações como padrões de conduta, passando por questões comportamentais em ambiente de trabalho e aplicações financeiras de recursos particulares. É importante ressaltar que essa medida está em linha com as diretrizes do FMI e do Banco Mundial, que estabelecem que os administradores de dívida pública deverão estar sujeitos a um código de conduta e a diretrizes sobre conflitos de interesses em relação à gestão de assuntos financeiros pessoais. 19 Em junho de 2009 são esperados novos analistas advindos de um processo seletivo iniciado em 2008. 143 5.2 Sistemas tecnológicos de informação De acordo com as diretrizes elaboradas pelo FMI e pelo Banco Mundial, a administração da dívida pública também deverá estar respaldada por um sistema de informação preciso e seguro. Países que buscam aprimorar a administração da dívida devem definir como prioridade o desenvolvimento de sistemas de registro e informação de dívida. São necessários para a elaboração de dados da dívida, para assegurar seu pagamento, como também para melhorar a qualidade da informação e a transparência das contas públicas. A existência de sistemas múltiplos pode dificultar tarefas que requerem informações consolidadas de dívida, como, por exemplo, a produção de relatórios de dívida e análises que dão suporte ao desenvolvimento da estratégia. Buscando se adequar às melhores práticas internacionais por meio do desenvolvimento de uma gestão moderna e eficaz para a Dívida Pública Federal, o Tesouro Nacional decidiu pelo desenvolvimento de um sistema integrado para a dívida pública, incorporando as funcionalidades dos sistemas hoje existentes (Dívida Pública Interna – DPI, Dívida Externa, Elabora20 e Gerir, dentre outros) e as novas necessidades e processos, imprescindíveis no desenvolvimento de uma gestão moderna de dívida pública. A decisão pelo desenvolvimento desse sistema deu-se pela falta de adequação dos pacotes comerciais disponíveis em mercado à realidade do DMO brasileiro. O Sistema Integrado da Dívida (SID), que teve início em 2004, está sendo desenvolvido em módulos, dividido em duas fases, sendo a Fase I constituída pelo chamado Núcleo Operacional do Sistema, que, ao final de dois anos, deverá unificar toda a base de dados da Dívida Pública Federal, eliminando redundâncias e reduzindo os riscos operacionais, uma vez que diversas ações estarão automatizadas. Essa medida repre- sentará um ganho de qualidade na análise estatística e na tomada de decisões, ao permitir uma imediata visão integrada de toda a DPF. Por sua vez, a Fase II, com duração estimada em dois anos e meio, compreenderá os processos específicos, prevendo a construção de suporte tecnológico aos processos relacionados com análise de riscos, planejamento e definição de estratégias, leilões, gestão do programa Tesouro Direto,21 programação orçamentária e financeira, dentre outros, permitindo a desativação dos sistemas hoje existentes. Em síntese, o SID abrangerá o ciclo completo das principais atividades da administração da Dívida Pública Federal, possuindo funcionalidades capazes de simplificar a extração de dados, a geração de informações e a emissão de relatórios. Espera-se que como resultado final o sistema seja capaz de: i) integrar as ações das três coordenações que compõem a Secretaria Adjunta da Dívida Pública; ii) eliminar redundâncias de cálculos; iii) integrar o maior número possível de dados e funcionalidades; iv) integrar os principais sistemas existentes, ao reescrevê-los em nova plataforma e tecnologia; v) ampliar a capacidade de extração de informações gerenciais; e vi) minimizar consideravelmente os riscos operacionais. 20 Sistema para elaboração e monitoramento do orçamento da Dívida Pública Federal. 21 O Tesouro Direto é um programa de venda de títulos a pessoas físicas desenvolvido pelo Tesouro Nacional, em parceria com a BM&FBovespa. Para maiores informações, consultar a Parte 3, Capítulo 7 (Venda de títulos públicos pela internet: Programa Tesouro Direto). 144 Dívida Pública: a experiência brasileira Figura 5. Visão integrada dos módulos e dos submódulos do SID 6 Integração e disseminação de práticas de gestão de dívida pública Todos os avanços obtidos pelo Tesouro Nacional na administração da dívida pública permitiram que este passasse a disseminar boas práticas de gestão de dívida e a integrar o debate internacional. Um dos exemplos dessa mudança foi a criação do Grupo de Especialistas em Gerenciamento da Dívida Pública da América Latina e Caribe (LAC Debt Group) por iniciativa do Tesouro Nacional e apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), bem como de diversos países da região. O grupo, criado em 2005, é formado por profissionais relacionados à gestão de dívida soberana na América Latina e Caribe, permitindo o intercâmbio de experiências técnicas abrangendo as diversas funções e atividades de gestão da dívida, buscando o aperfeiçoamento institucional dos órgãos responsáveis pela administração da dívida pública nos países da região; a harmonização das normas e dos regulamentos relacionados ao setor na América Latina e Caribe; e o desenvolvimento do mercado secundário de títulos públicos, em paralelo ao aperfeiçoamento do mercado de capitais de cada país. O I Encontro Anual de Especialistas em Gerenciamento de Dívida Pública da América Latina e Caribe foi realizado em março de 2005, no Rio de Janeiro,22 onde foram debatidos temas como a estrutura institucional dos departamentos de dívida pública; o desenvolvimento do mercado secundário para títulos públicos; as metodologias de cálculo de indicadores da dívida; a experiência e os avanços recentes no gerenciamento de risco da dívida pública; e as perspectivas da abertura do mercado doméstico de dívida pública para o investidor estrangeiro. 22 O evento contou com a adesão de 19 países da região, especialistas convidados da Espanha, de Portugal, da Dinamarca e da Itália e representantes do Banco Mundial, do BID, do FMI, da OCDE, e da United Nations Conference on Trade and Development (Unctad). 145 No encontro também foi eleito o primeiro Steering Committee, composto pelo Brasil (presidente), Colômbia (vice-presidente), Chile, Jamaica, México e Panamá. O papel de secretário-executivo foi designado ao BID. O II Encontro Anual de Especialistas em Gerenciamento de Dívida Pública da América Latina e Caribe ocorreu em abril de 2006, em Cartagena, Colômbia. Entre os principais assuntos discutidos estiveram a adoção de melhores práticas no que tange à estrutura institucional da administração da dívida pública e ao desenvolvimento do mercado secundário de títulos públicos, a relação entre administração da dívida e política fiscal e a homogeneização das estatísticas de dívida dos países da região. Em particular, no que se refere às atividades específicas desenvolvidas pelo Brasil no âmbito do grupo, destacam-se a exposição sobre o processo de desenvolvimento do mercado secundário para títulos públicos na região e a criação de sistemas de informações regionais para a dívida pública e para o mercado de derivativos. Essa apresentação representou o passo inicial de um projeto, iniciado quando se discutiu, no primeiro encon- tro do grupo, a importância do desenvolvimento do mercado secundário dos títulos públicos na região. Ao Brasil coube coordenar a execução desse projeto, cujas principais conclusões, bem como propostas sobre experiências de sucesso em países da região, tanto em termos de organização como de sistemas de negociação de títulos públicos, foram apresentadas no III Encontro Anual do grupo, que ocorreu em abril de 2007 na Costa Rica. Uma visita dos países participantes do grupo ao Brasil, ocorrida em Brasília em outubro de 2008, tida como atividade extraordinária, foi muito expressiva, reunindo 35 especialistas em gestão da dívida pública de 21 países, participação maior do que a observada nos encontros anuais. A oportunidade foi utilizada para apresentar a governança, a estrutura institucional, os macroprocessos e os instrumentos utilizados para gestão da dívida pública no Brasil, assim como sua interação com diversas instituições, em particular as clearings locais, os reguladores, o Banco Central, os organismos multilaterais, uma associação de instituições locais e a bolsa de valores. Para tanto, contou com palestrantes de diversos setores do Tesouro Nacional, em particular das áreas de Planejamento Estratégico, de Operações e de Registro e Controle da Dívida Pública. Além disso, houve apresentações sobre os setores de responsabilidades financeiras e haveres mobiliários da União e de análise econômico-fiscal de projetos de investimento público. O evento contou ainda com palestrantes convidados da Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima), da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros (BM&FBovespa), da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), do Departamento de Operações do Mercado Aberto (Demab) e do Departamento Econômico (Depec), ambos do Banco Central do Brasil. Por fim, alguns participantes visitaram as instalações físicas da Secretaria e contataram a área de programação financeira para conhecer mais sobre os aspectos técnicos do assunto. Além da participação no Grupo de Especialistas, o Brasil tem sido convidado a compartilhar sua ex- periência em administração da dívida pública em diversos fóruns. Dentre eles destacam-se: l Conferência Anual Public Debt Managers´ Forum, promovida regularmente pelo FMI, da qual a equipe do Tesouro Nacional já participou como palestrante sobre o tema Fortalecimento do Gerenciamento da Dívida nos Mercados Emergentes e Evoluções Recentes no Desenvolvimento do Mercado Local de Capitais. l XXII Meeting of the Latin American Network of Central Banks and Finance Ministries, realizado pelo BID, no qual o Tesouro Nacional foi convidado para apresentar o trabalho Brazilian Public Debt Strategic Planning and Benchkmark Composition. l Latin American Regional Workshop on Debt Sustainability and Development Strategies, realizado pela Unctad, no qual o Brasil foi convidado a participar como palestrante na seção Lessons from Countries. l Road shows diversos nas principais praças dos EUA, da Europa, da Ásia e do Oriente Médio, bem como encontros com investidores em eventos diversos. 146 Dívida Pública: a experiência brasileira Para ilustrar, a Tabela 1 mostra os eventos para os quais o Tesouro Nacional enviou seus representantes ao longo de 2008 apenas. Tabela 1. Principais eventos internacionais em 2008 com participação do Tesouro Nacional Fonte: Tesouro Nacional Box 3. O prêmio em 2008 “Emissor do Ano – América Latina” da organização Emerging Markets é resultado das boas práticas de gestão da dívida pública A emissão do Global 2017, o título de dez anos de referência, foi considerada pela organização como a melhor emis- são de 2008. No dia 7 de maio, o Tesouro Nacional conduziu a segunda reabertura do título, alcançando USD 525 milhões no mercado global (espalhados pelos EUA, pela Europa e pela Ásia). A Emerging Markets é parte da organização Euromoney Institucional Investor, um dos mais respeitados provedores de informações financeiras no mundo. Eles divulgam editoriais complementados por contribuições de líderes reconhecidos nas economias em desenvolvimento, notícias da Euromoney, informações de ministérios de finanças, bancos centrais, acadêmicos, banqueiros e economistas. A operação referida teve um spread de apenas 140 pontos básicos acima da Treasury com vencimento em fevereiro de 2018, e dois aspectos valem nota: primeiro, a demanda foi significantemente superior à oferta, o que reflete o apetite dos investidores sobre o título. Além disso, o Tesouro Nacional deparou-se com uma base de investidores maior e mais heterogênea do que as encontradas nas operações precedentes, algo muito positivo para a República. Segundo, o preço de concessão ao mercado secundário foi menor do que o praticado por vários emissores daquele momento. Na ocasião, tratou-se da primeira emissão realizada após o grau de investimento, de acordo com a análise das agências de classificação de risco. Esse prêmio confirma, de forma inequívoca, a confiança que o Brasil estabeleceu para com os atores de mercado, bancos e investidores. É importante lembrar que o Tesouro Nacional monitora de perto o gerenciamento de seus passivos e foca em emissões de caráter qualitativo em detrimento de objetivos de financiamento, uma vez que o país se posiciona como credor internacional. 147 7 Considerações finais As melhores práticas internacionais mostram que uma eficiente administração de dívida pública consiste, dentre outros fatores, em: i) uma estrutura institucional adequada, com a consolidação das funções em um único departamento; ii) uma efetiva coordenação entre a política de gestão da dívida pública e as políticas fiscal e monetária; iii) uma estrutura de governança sólida e eficaz na qual os objetivos, a responsabilidade e as regras para as instituições envolvidas na administração da dívida pública estejam definidos claramente; iv) elaboração e execução de uma estratégia de dívida pública de médio e longo prazos baseada em análises de custo e risco; e v) uma adequada capacidade técnica da equipe responsável pela administração da dívida pública e sistemas tecnológicos de informação seguros e precisos. A experiência brasileira mostra que, ao longo dos últimos anos, o Tesouro Nacional empreendeu esforços para se adequar às melhores práticas internacionais. Pode-se observar que o elevado nível de capacidade de administração da dívida pública brasileira foi alcançado devido ao investimento do governo em governança, a separação entre a gestão da dívida pública e a política monetária, além da construção de uma estrutura institucional baseada na separação das funções e das responsabilidades em back, middle e front office. A gestão da Dívida Pública Federal também conta com definição clara de seus objetivos e diretrizes e a existência de uma estratégia de médio e longo prazos consolidada em seu Plano Anual de Financiamento. O governo também investiu em uma política de transparência e aprimoramento da qualidade de suas es- tatísticas, além de investir no desenvolvimento de sistemas de informação e em seu corpo técnico, permitindo que o Brasil esteja alinhado com as melhores práticas internacionais. Referências INTERNATIONAL MONETARY FUND AND THE WORD BANK. Guidelines for public debt management. Washington, DC, 2001. ______. Accompanying Document to Guidelines for Public Debt Management. Washington, DC, 2002. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Secretaria do Tesouro Nacional. Relatório anual da dívida pública. Brasília: MF, jan. 2007. Vários números. SITE DO TESOURO NACIONAL. http://www.tesouro.fazenda.gov.br. THE WORLD BANK. Managing public debt: from diagnostics to reform implementation. Washington, DC, 2007. WHEELER G.; JENSEN, F. Governance Issues in Managing the Government’s Debt: World Bank Handbook on Public Debt Management. Washington, DC: The World Bank, 2000. 148 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 Capítulo 2 Planejamento estratégico da Dívida Pública Federal Luiz Fernando Alves Anderson Caputo Silva 1 Introdução A importância de se adotar boas práticas na gestão da dívida pública como meio para assegurar, ou ao menos não afetar, a estabilidade macroeconômica se tornou clara especialmente após a ocorrência de vários eventos que atingiram adversamente os mercados emergentes no final da década de 1990. Nesse debate, é central a necessidade de se desenhar estratégias adequadas e coerentes para a administração da dívida que levem em conta, dentre outros elementos, a composição ótima da dívida no longo prazo, os riscos inerentes a tais estratégias e o compromisso com o desenvolvimento do mercado de dívida. O Brasil é um bom exemplo de país que promoveu muitas mudanças no processo de desenho de uma estratégia de administração de dívida pública. Essas mudanças ocorreram após vários estudos das melhores práticas internacionais e o reconhecimento de que um planejamento estratégico é necessário para se alcançar um melhor balanceamento entre custos e riscos ao longo do tempo. As mudanças observadas englobam vários aspectos, tais como a estrutura institucional e os mecanismos de governança. O arcabouço institucional atual está estruturado com o propósito de melhor distribuir as fun- ções na Secretaria-Adjunta responsável pela administração da dívida pública. O formato adotado a partir do início desta década contribui para maior grau de eficiência no uso da capacidade técnica e maior integração nas análises das dívidas doméstica e externa. Os mecanismos de governança são reforçados pelo chamado Comitê de Gerenciamento da Dívida, que se reúne mensalmente,1 e pelas publicações periódicas do Plano Anual de Financiamento (PAF) e do Relatório Anual da Dívida.2 Por fim, o desenvolvimento de ferramentas analíticas para planejamento estratégico e gestão de riscos também ocupa um papel importante e tem influência no atual processo de desenho de estratégias de financiamento. Em particular, o lançamento do Plano Anual de Financiamento, em 2001, representou um dos principais elementos do processo de ampliação do escopo da administração da dívida no Brasil rumo ao desenvolvimento e à implementação de estratégias de financiamento de longo prazo. Desde então, o PAF vem ganhando importância na comunidade financeira e atualmente constitui o principal veículo por meio do qual são transmitidos à sociedade os objetivos de administração da dívida, suas diretrizes e metas específicas para o período de um ano para os principais indicadores do perfil da dívida. A elaboração do PAF é coordenada pelo Middle-Office, mas constitui um esforço conjunto de todas as três áreas da dívida. 1 A esse respeito, participam do comitê de gerenciamento da dívida, assim como de todo o processo de planejamento estraté- gico, representantes das três coordenações responsáveis pela gestão da dívida pública (back-, front- e middle-offices), além do secretário-adjunto responsável pela dívida pública e o secretário do Tesouro Nacional. 2 O Plano Anual de Financiamento e o Relatório Anual da Dívida são publicados em português e em inglês no começo de cada ano e estão disponíveis no website do Tesouro Nacional em www.stn.fazenda.gov.br. 149 Box 1. Plano Anual de Financiamento – objetivos e diretrizes no Brasil Desde o ano de 2001, o Tesouro Nacional apresenta o seu Plano Anual de Financiamento (PAF), de acordo com o objetivo e com as diretrizes de administração da Dívida Pública Federal (DPF) brasileira, especialmente no que concerne à busca de maior transparência e previsibilidade. O objetivo da gestão da DPF é “minimizar seus custos de financiamento no longo prazo, respeitando-se a manutenção de níveis prudentes de risco; adicionalmente, buscando contribuir para o bom funcionamento do mercado de títulos públicos”. Em linha com esse objetivo, o PAF 2009 buscou atender às seguintes diretrizes gerais para a gestão da DPF, observadas as condições de mercado: l alongamento do prazo médio e redução do percentual da DPF vincendo em 12 meses; l substituição gradual dos títulos remunerados pela taxa Selic por títulos com rentabilidade prefixada ou vinculada a índices de preços; l aperfeiçoamento do perfil da Dívida Pública Federal externa (DPFe), por meio de emissões de títulos com prazos de referência (benchmarks), programa de resgate antecipado e operações estruturadas; l incentivo ao desenvolvimento da estrutura a termo de taxas de juros para títulos públicos federais nos mer- cados interno e externo; l ampliação da base de investidores. Fonte: PAF, 2009 Este trabalho procura discutir os principais aspectos envolvidos no processo de planejamento estraté- gico da dívida pública à luz da experiência brasileira. O texto está organizado em cinco seções, além desta Introdução. A próxima seção descreve sucintamente os principais antecedentes econômicos e as mudanças no arcabouço institucional do Tesouro Nacional que influenciaram o desenho de estratégias de dívida no Brasil. A seção 3 discute os elementos básicos do planejamento no Brasil, em especial a definição dos ob- jetivos de administração da dívida. A seção 4 aborda a questão da estrutura ótima da dívida no longo prazo (benchmark), passo que precede a elaboração de estratégias de financiamento de curto prazo. As diversas etapas do desenho de uma estratégia de transição do curto para o longo prazo serão exploradas na seção 5. A seção 6 traz algumas considerações finais. 2 Antecedentes macroeconômicos e arranjo institucional O advento do Plano Real em 1994 inseriu o Brasil num contexto de estabilidade macroeconômica, re- forçada posteriormente pela melhoria em outros fundamentos econômicos do país. Estabeleceram-se, então, as precondições para a adoção das melhores práticas de administração de dívida, de tal forma que, nesse ambiente, tanto gestores quanto investidores são capazes de desenhar estratégias de médio e longo prazos utilizando cenários e previsões mais realistas. Nesse sentido, com a crescente confiança no controle inflacionário, o país logrou promover a desindexação gradual de sua dívida e construir estratégias visando a mudar sua composição e seu perfil de vencimentos. De 150 Dívida Pública: a experiência brasileira fato, em julho de 1995, 79,1% da dívida doméstica era indexada a taxas de juros flutuantes (overnight rate). Além disso, a dívida prefixada representava 8,5% do total, mas com maturação em até dois meses. Gradualmente, o Tesouro Nacional buscou substituir dívida flutuante por dívida prefixada e, como passo adicional, promoveu o alongamento do prazo médio dessa dívida. Mais de uma década depois, a gestão da dívida pública brasileira ganhou mais graus de liberdade graças à consolidação de um ambiente de estabi- lidade econômica no país, o que conferiu maior flexibilidade aos gestores na definição das estratégias de financiamento público. Como ilustração, note que, em dezembro de 2008, 32,4% da DPF era indexada a taxas de juros flutuantes, enquanto a parcela prefixada correspondia a 29,9% do total. Além disso, outros 26,6% eram remunerados por índices de preços, indexador correlacionado positivamente com as receitas do governo e, portanto, desejável do ponto de vista da gestão de riscos da dívida pública do Brasil. As mudanças observadas no perfil da dívida pública brasileira estão em consonância com a construção de capacidade no planejamento estratégico e no gerenciamento de risco como elementos para uma adequa- da condução das políticas de dívida. E uma das principais lições extraídas desse histórico refere-se ao papel fundamental do desenho de uma estratégia de financiamento que é elaborada à luz de objetivos claramente definidos para a administração de dívida e executada em uma eficiente estrutura institucional e de tomada de decisão (governança). Como foi discutido no Capítulo 1 da Parte 2, o Tesouro Nacional adota uma organização por funções para a gestão da dívida, compreendendo back-,3 front-4 e middle-offices.5 Outro elemento importante nesse arranjo é a integração das análises das dívidas interna e externa. De uma perspectiva mais específica, isso confere maior grau de eficiência ao agregar, num mesmo espaço, pessoas com habilidades similares. Adicionalmente, esse arranjo contribui para a criação de uma cultura organizacional menos focada em atingir objetivos de curto prazo. Ao contrário, o planejamento estratégico e o gerenciamento de risco ganham importância nas atividades diárias da gestão da dívida brasileira. Uma consequência direta da integração das dívidas doméstica e externa, e também da segregação institucional por funções, é a necessidade de se aprimorar os canais de comunicação entre as diferentes coordenações. A interdependência entre as atividades do front, do middle e do back-offices torna claro que o processo de tomada de decisão deve articular-se de acordo com o novo arcabouço institucional. Uma questão que surge com respeito à estratégia de longo prazo é a necessidade de estrita coorde- nação entre as ações que ela induz e de monitoramento dos resultados durante sua execução. Para evitar inconsistências, mensalmente há reuniões do Comitê de Gerenciamento da Dívida, o que é uma tradição no Tesouro Nacional. Usualmente, esse comitê reúne-se na última semana de cada mês e provê uma oportunidade para consolidar visões e informação das três áreas acerca do desempenho passado, das ações presentes e das perspectivas futuras. Uma análise da probabilidade de sucesso em se atingir as metas propostas no PAF é conduzida e, se necessário, estratégias corretivas são desenhadas. Um resultado-chave dessas reuniões é a definição da estratégia para o mês subsequente ao comitê, incluindo suas características como prazo de maturação e tipo de remuneração (prefixada, flutuante, cambial ou índices de preços), após se analisar as condições de mercado e a definição de um cronograma público de colocações de títulos. 3 O back-office é responsável pelo registro, pelo controle, pelos pagamentos e pelo monitoramento dos orçamentos para as dívidas interna e externa. 4 O front-office é responsável pelo desenvolvimento de estratégias de curto prazo relacionadas com a emissão de títulos nos mer- cados doméstico e externo e, também, pelos leilões nesses dois mercados. 5 O middle-office é responsável pelo desenvolvimento de estratégias de médio e longo prazos, pesquisa e desenvolvimento, geren- ciamento de riscos, monitoramento de aspectos macroeconômicos e relacionamento com investidores domésticos e externos. 151 3 Construindo uma estratégia de dívida: a experiência brasileira O primeiro passo, antes de despender tempo no desenho da estratégia, é definir claramente o objetivo global da administração da dívida, tarefa que não é trivial. A esse respeito, algumas questões devem ser respondidas antes de se adentrar em um processo mais pragmático de definição da estratégia: l Um país deveria buscar minimizar os custos de financiamento de sua dívida? l Como o trade-off entre custos e riscos deveria ser levado em conta nessa discussão? l Qual deveria ser o peso dado ao papel do governo no desenvolvimento do mercado de dívida doméstico? l Como balancear financiamento interno versus externo? É claro que não há respostas absolutamente corretas para todas as questões anteriores, mas uma vez que os principais objetivos são discutidos e definidos, um outro desafio surge: como traduzir esses objetivos nas estratégias atuais? Muitos países, incluindo o Brasil, definem seu objetivo principal como a minimização dos custos de longo prazo, condicionada à assunção de níveis prudentes de risco. Duas coisas devem ser esclarecidas nesse objetivo.6 Primeiramente, o fato de que custos de longo prazo são mencionados, ao invés de custos de curto prazo ou, simplesmente, custos. Esse fato introduz a relevância de políticas que podem ser mais eficientes no médio e no longo prazos e reduz o comportamento míope que estratégias orientadas para o curto prazo podem induzir. Segundo, o objetivo leva em consideração não apenas os custos, mas também níveis prudentes de risco. A administração de riscos tem se tornado crescentemente sofisticada e uma parte importante da gestão da dívida. Isso é particularmente desafiador e, possivelmente, mais importante em economias emergentes, que usualmente estão mais sujeitas a mudanças abruptas no ambiente macroeconômico e que muitas vezes não dispõem de mercados de dívida plenamente desenvolvidos e líquidos. Do ponto de vista do gestor da dívida, preocupado em definir como cumprir o objetivo traçado, uma maneira útil de tratar essa questão é pensá-la como um problema de minimização, no qual a função objetivo é o “custo de longo prazo” e as restrições são os “níveis prudentes de risco”. De fato, essa é a abordagem adotada em muitos países, como Portugal e Dinamarca (ver Box 2), e permite que se estabeleça o escopo da ação para a elaboração da estratégia de dívida. Uma prática comum é dividir o processo em dois estágios: i) a busca de um benchmark – que considera questões de longo prazo, tais como a composição ótima da dívida em termos de tipos de instrumentos, prazos e moedas; e ii) a elaboração de uma estratégia de transição – que se baseia nos objetivos indicados pelo benchmark, respeitadas as condições iniciais (isto é, a composição corrente da dívida e sua estrutura de vencimentos), e procura tratar a questão de quão rápida deveria ser a convergência para o perfil de dívida desejado no futuro. Esse estágio inclui a elaboração de estratégias do curto ao longo prazos, a administração de risco e o monitoramento de sua execução. Os próximos itens abordarão esses dois estágios. 6 Ver Guidelines for Public Debt Management, publicado em 2001, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, para a definição exata dos objetivos de gerenciamento da dívida pública em diversos países. 152 Dívida Pública: a experiência brasileira Box 2. Objetivos da gestão da dívida em países selecionados O subprograma de administração de passivos (Liability Management), que compõe o Plano Estratégico do Tesouro Nacional, almeja o atendimento dos seguintes produtos: a) financiar as necessidades de financiamento brutas do governo; b) proporcionar políticas seguras de administração da dívida doméstica e externa; África do Sul c) reduzir o custo de serviço da dívida; d) contribuir para o desenvolvimento dos mercados financeiros; e) estabelecer sólidas relações com investidores. Fonte: National Treasury Strategic Plan, 11/2008 a) atender às necessidades de financiamento do governo central ao menor custo de financiamento de longo prazo possível, levando em consideração o grau de risco assumido; Dinamarca b) facilitar o acesso do governo central aos mercados financeiros no longo prazo e dar suporte ao bom funcionamento do mercado financeiro doméstico. Fonte: Danish Government Borrowing and Debt, 2007 O objetivo da gestão da dívida do governo central é atender às necessidades de financiamento e manter os custos de longo prazo do serviço da dívida tão baixos quanto seja possível em relação aos riscos Finlândia resultantes da dívida, de tal maneira que os riscos sejam aceitáveis em termos da capacidade nacional de suportá-los. Fonte: Debt Management Annual Review, 2007 Os objetivos básicos do National Treasury Management Agency são, primeiramente, proteger a liquidez para assegurar que as necessidades de financiamento correntes e futuras do Exchequer sejam financiadas prudentemente e cost-effectively. E, secundariamente, assegurar que os custos do serviço da dívida sejam Irlanda minimizados e sujeitos à manutenção do risco dentro de limites aceitáveis. Adicionalmente, para atingir es- ses objetivos, o desempenho da agência de dívida é mensurado relativamente a um portifólio de referência aprovado e auditado externamente (benchmark). Fonte: Report and accounts for the year ended, 31 December 2006 Reduzir os custos de financiamento e limitar a exposição a riscos financeiros. A administração da dívida busca reduzir no médio e no longo prazos a exposição ao risco de taxa de juros (nominal e real) e ao Itália risco de refinanciamento, assim como manter sob controle os gastos com juros como proporção do PIB. Fonte: Guidelines for Public Debt Management, 2008 a) atender às necessidades de financiamento do governo federal ao menor custo possível, respeitando- México se níveis de riscos compatíveis com uma evolução saudável das finanças públicas; b) desenvolver os mercados financeiros locais. 153 Diretrizes: a) financiar o déficit do governo federal totalmente no mercado de dívida doméstico, privilegiando a emissão de títulos de longo prazo a taxas nominais prefixadas; México b) alcançar a meta de redução da dívida pública externa líquida e melhorar o custo e a estrutura a termo das obrigações externas. Fonte: Plano Anual de Financiamento, 2008 O objetivo da gestão da dívida é assegurar os recursos financeiros necessários à execução do orça- mento do Estado, conduzindo suas atividades para: a) minimizar o custo direto e indireto da dívida pública numa perspectiva de longo prazo; b) garantir uma distribuição equilibrada dos custos da dívida pelos orçamentos de diversos anos; Portugal c) prevenir uma concentração excessiva de amortizações num determinado período; d) evitar riscos excessivos; e) promover um funcionamento eficiente e equilibrado dos mercados financeiros. Fonte: Lei quadro da dívida pública (Lei nº 7/98 de 3 de fevereiro de 1998) Ver Currie, Dethier e Togo (2003, p. 32) para outro conjunto de países selecionados 4 Em busca de um benchmark A definição de uma estratégia de financiamento envolve escolhas com relação ao balanço entre custos esperados e riscos que determinada estrutura da dívida pública pode acarretar. Nesse sentido, o gestor da dívida precisa definir qual o perfil desejado para seu passivo no longo prazo, com base em suas preferências entre custos e riscos, de modo que seu financiamento ocorra da maneira menos onerosa possível sem, no entanto, ocasionar elevada exposição a riscos. Diversos países já utilizam modelos de benchmark com esse fim, dentre eles Portugal, Suécia, Irlanda, Dinamarca e África do Sul.7 Além disso, organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional recomendam que os gestores de dívida soberana adotem modelos de benchmark como ferramenta de gerenciamento de risco e planejamento estratégico.8 7 Ver Cabral (2005) e Alves (2009) para uma descrição mais completa acerca da experiência internacional com modelos de bench- mark para a dívida pública. 8 Os aspectos analíticos do modelo brasileiro serão explorados em maiores detalhes no Capítulo 3 da Parte 2. 154 Dívida Pública: a experiência brasileira Box 3. Experiência internacional: o modelo de benchmark português Portugal foi um dos primeiros países a formular e a adotar um benchmark como referência para quantificação do objetivo de longo prazo da gestão da dívida pública, em termos de uma carteira desejada de longo prazo para o passivo público. Esse tipo de referência aumentaria a consistência entre as decisões de gerenciamento da dívida diárias com os objetivos de longo prazo. O instrumental utilizado para a definição do benchmark foi apresentando no Relatório Anual de Gestão da Dívida Pública, de 1999, publicado pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público (IGCP) de Portugal. O IGCP determina um benchmark de steady-state, que institucionalmente é aprovado pelo ministro das Finanças. O modelo português é um misto de simulação e otimização, no qual as variáveis de decisão, assim como as medidas de custo e risco, são definidas em termos de fluxos de caixa dos passivos (não se incorporam ativos do governo), tendo como premissa que oscilações das variáveis financeiras causam volatilidade orçamentária e, portanto, podem reduzir os graus de liberdade do gestor da política fiscal. Por fim, introduzem-se restrições explícitas ao risco de refinanciamento (limites à concentração temporal dos vencimentos da dívida). O modelo é simulado em steady-state sob a hipótese de dívida constante em termos nominais, tendo basicamente três insumos: i) simulação estocástica das taxas de juros; ii) diferentes estratégias de financiamento que atendem a restrições predefinidas de rolagem e gerenciamento; e iii) cenários determinísticos para outras variáveis macroeco- nômicas. Em seguida, um mecanismo computacional realiza simulações da dinâmica da carteira de dívida, gerando um conjunto com várias carteiras eficientes do ponto de vista do trade-off entre custo e risco. Um conjunto restrito das melhores soluções do modelo, considerando eficiência e robustez a alterações nas hipóteses do modelo, é submetido à escolha final pelas autoridades. Assim, o tomador de decisão (ministro) determina o trade-off entre custo e risco aceitável definindo a estratégia eficiente mais apropriada para o longo prazo, o benchmark. A decisão final leva em conta também restrições de mercado, já que a estratégia escolhida deve ser factível para um emissor soberano. Fonte: Relatório Anual de Gestão da Dívida Pública, 1999. Portugal – Gestão da Dívida Pública Em resumo, o benchmark representa uma estrutura de dívida ótima de longo prazo que orienta o to- mador de decisão na definição de sua estratégia de financiamento. Em uma situação de estado estacionário, ele indica uma única composição ótima para a dívida pública ou um conjunto de possíveis composições que são eficientes do ponto de vista do trade-off entre custo esperado e risco. Nessa abordagem, para a determi- nação do benchmark é necessário selecionar o nível máximo de risco ou custo que o governo deve suportar e, então, o correspondente perfil de dívida. Aqui é onde os gestores seniores ocupam um papel crucial, assim como procedimentos de governança bem estruturados se tornam importantes na determinação das principais diretrizes para a condução da dívida. Estas incluem os tipos de instrumentos a serem emitidos, seus prazos de vencimento, o perfil de maturação global da dívida (incluindo limites ao montante de dívida maturando no curto prazo) etc. 155 Box 4. Experiência internacional: o modelo de benchmark da África do Sul O Tesouro Nacional da África do Sul, responsável pela gestão da dívida desse país, também avançou no desen- volvimento de uma metodologia para a definição de um benchmark para sua carteira de dívida. Seu modelo foi desenvolvido inicialmente em 2000 e propunha um benchmark baseado numa meta para a duração modificada da carteira. Tal proposta foi fundamentada na estimação do comportamento, em termos de custo e risco, de um número limitado de estratégias para o portfólio da dívida, avaliadas sob vários cenários macroeconômicos. Esse modelo foi revisado em 2006 e a nova proposta se fundamentou numa metodologia de Cost-at-Risk, em que se procurou mensurar o custo (em termos absolutos) de desvios do custo orçamentário esperado do serviço da dívida. As estimativas basearam-se num modelo de simulações econométricas, utilizando dados atuais e históricos de yield curves, taxas de câmbio, PIB, inflação e necessidades de financiamento. Com base na análise de mais de 20 mil diferentes portfólios, ao longo de um histórico de mais de trinta anos, construiu-se uma fronteira estocástica que expressa o trade-off entre custo e risco, donde se extraiu o perfil desejado para a dívida. O modelo revisado propõe uma referência de longo prazo para a carteira da dívida não apenas em termos de dura- ção modificada, mas propõe uma composição ótima para a dívida (fixa versus flutuante, doméstica versus externa) e, então, calcula a duração da carteira desejada. Fonte: National Treasury: Republic of South Africa Com base nas informações geradas pelo modelo, o gestor da dívida é capaz de conduzir suas operações de financiamento, tanto as novas emissões quanto aquelas associadas exclusivamente com a administração de risco, de maneira que gradualmente a dívida seja conduzida para uma composição ótima do ponto de vista da solução do problema de minimização de custos condicionado à assunção de níveis prudentes de risco. De acordo com as melhores práticas internacionais, a equipe técnica tipicamente elabora e apresenta os resultados da fronteira eficiente ao gestor da política fiscal (o ministro da Fazenda, o secretário do Tesouro ou algum tipo de Comitê Executivo), que é responsável por escolher o nível aceitável de risco. Questões rela- cionadas com a sustentabilidade da dívida também devem ser consideradas na definição de um nível máximo aceitável de custo e/ou de risco. Algumas vezes, podem se verificar claras e evidentes discrepâncias entre o conjunto de composições eficientes e a composição corrente da dívida. Essas diferenças são, em muitos casos, relacionadas com um ambiente macroeconômico adverso e/ou, recorrentemente volátil, com a ausência de mercados de dívida desenvolvidos e, consequentemente, com uma demanda ainda incipiente para os tipos de instrumentos que o administrador da dívida consideraria ótimo para se ofertar. Em tais circunstâncias, análises teóricas robustas, algumas simulações de dinâmica da dívida e o aprofundamento de discussões para a definição dos objetivos de longo prazo podem ser igualmente ou mesmo mais importantes que concentrar esforços na identificação de um exato benchmark por meio do qual a composição ótima possível para a dívida é definida em detalhes específicos.9 Este último comentário não deve enfraquecer a relevância de se elaborar cuidadosos estudos de benchmark. A preocupação aqui é argumentar que o tempo dedicado à construção de uma metodologia 9 É importante reconhecer que qualquer modelo para simulação de dinâmica de dívida e definição de um benchmark constitui uma representação simplificada da realidade e, portanto, tem várias limitações. Como ressaltado por Bolder (2008), embora o modelo acrescente benefícios à tomada de decisão, ele não pode substituir o conhecimento e o julgamento do gestor da dívida. 156 Dívida Pública: a experiência brasileira apropriada pode variar de um país para outro e que todos os modelos representam um esforço para sim- plificar a realidade. Desprezar esse fato pode induzir à armadilha de se postergar importantes políticas que poderiam ser definidas com base em sólidos referenciais teóricos e na expertise dos gestores, por aguardar a conclusão de um modelo. Um bom balanço entre o uso de sofisticadas ferramentas e o debate prático das políticas geralmente provém a melhor combinação para o desenho de estratégias de dívida. O Tesouro Nacional avançou recentemente no desenvolvimento de um modelo de estrutura ótima de longo prazo (benchmark) para a dívida pública brasileira, utilizando um arcabouço teórico que busca minimizar os impactos de choques que afetam a dívida pública sobre o resultado fiscal do governo (tax smoothing). Entretanto, mesmo antes da realização deste estudo, a elaboração de estratégias já dispunha de várias ferramentas para avaliá-las em seus múltiplos aspectos. Dentre os esforços para se quantificar os trade-offs entre custos esperados e riscos, o Tesouro Nacional emprega indicadores simples de risco de mercado (como a participação de dívida prefixada versus a de dívida flutuante) e de risco de refinanciamento (como o percentual vincendo em 12 meses e o prazo médio da dívida). Além disso, efetua-se o mapeamento de ativos e passivos para se acompanhar os principais descasamentos existentes nesse mapa, segundo os principais fatores de risco de mercado e a estrutura de vencimentos – Assets and Liability Management (ALM). Ademais, os riscos são avaliados por meio de indica- dores estocásticos do tipo at-Risk (Cost-at-Risk – CaR e Cash-Flow-at-Risk – CFaR), análises de sensibilidade da dívida a mudanças em variáveis macroeconômicas e testes de estresse de mercado.10 Independentemente de uma formulação mais específica para a definição do benchmark, esses últi- mos estudos e indicadores tradicionais atuam como guias para a definição e a quantificação das principais diretrizes para o financiamento, tais como evitar a emissão de dívida indexada a câmbio; procurar reduzir o peso dos títulos com taxas de juros pós-fixadas; e ampliar a participação de títulos prefixados e remunerados por índices de preços. Cabe lembrar que, embora a gestão do trade-off entre custo esperado e risco sugira o uso de ins- trumentos tradicionais de análise financeira, há vários fatores peculiares ao governo que impedem o uso indiscriminado da teoria de finanças às análises de dívida pública. Nesse sentido, o governo pode ter obje- tivos mais complexos que simplesmente reduzir custos, mantendo-se níveis prudentes de risco. Indicadores relacionados a fluxo de caixa e impactos sobre o orçamento anual, por exemplo, têm implicações sobre a escolha da estrutura ótima da dívida. Além disso, o tamanho e a natureza das emissões de títulos públicos e a composição da dívida pública fazem com que o governo tenha forte influência sobre preços e, portanto, sobre o custo esperado e o risco de suas estratégias de financiamento. 5 Desenho da estratégia de dívida pública O planejamento estratégico da dívida pública tem muitas dimensões e, como tal, deve-se verificar se alguns dos principais ingredientes para seu sucesso não estão sendo ignorados. Nesse sentido, já foi escla- recida aqui a importância, para o caso do Brasil, de se construir capacidade nos aspectos institucional e de governança. Também já discutimos o papel da definição de um benchmark e a importância dos indicadores tradicionais de risco. Esta seção apresentará o processo de desenho de uma estratégia enfatizando seus principais passos, desde o estabelecimento do objetivo de gestão da dívida até a execução da estratégia e seu monitoramento. 10 A esse respeito, ver Baghdassarian (2004) e Bonomo et al. (2003). 157 Serão omitidos alguns pontos relacionados com técnicas de modelagem para se privilegiar um objetivo mais amplo, que é fornecer ao leitor um panorama sistemático de como o Brasil constrói sua própria estratégia com referência direta aos aspectos práticos desse processo. A estratégia de administração da dívida, como se discutirá a seguir, compreende o plano de curto prazo (até um ano) e uma “estratégia de transição” de médio/longo prazo (mais que um ano) e guarda grande relação com o benchmark de longo prazo (steady state) e com a definição dos objetivos do gerenciamento da dívida e suas diretrizes. Para fins didáticos, o processo de planejamento estratégico será apresentado em sete passos: 1. definição dos objetivos de longo prazo; 2. desenvolvimento de cenários macroeconômicos; 3. discussões preliminares de cenários e restrições; 4. desenho da estratégia de curto prazo (até um ano); 5. definição de metas: resultados esperados das estratégias; 6. desenho da estratégia de transição (médio e longo prazo); 7. planejamento tático da dívida, execução e monitoramento. A figura a seguir ilustra o processo de planejamento da gestão da dívida pública no Brasil de uma pers- pectiva mais ampla. Definido o objetivo dessa gestão, passa-se às etapas de modelagem, discussão e definição dos objetivos de longo prazo (benchmark). Em seguida, inicia-se o desenho da estratégia de transição, que permite o mapeamento de fatores de riscos, oportunidades e restrições para se alcançar o perfil ótimo para a DPF. Esses elementos são cruciais para a etapa seguinte, quando se define a estratégia de curto prazo, que é expressa no PAF e seus desdobramentos nas decisões táticas tomadas no Comitê Mensal da Dívida. Figura 1. Esquema simplificado do planejamento estratégico da DPF 158 Dívida Pública: a experiência brasileira Passo 1. Definição dos objetivos de longo prazo Este primeiro estágio no processo de planejamento estratégico já foi abordado em alguns detalhes e inclui a definição da função de otimização dos gestores da dívida (baseada em objetivos e restrições bem definidos), a elaboração de uma metodologia e o exercício para ajudar a estabelecer uma estrutura de dívida ótima (ou um conjunto de composições) e a definição de um benchmark (steady state). Passo 2. Desenvolvimento de cenários macroeconômicos As discussões neste estágio incluem a metodologia para a elaboração de cenários e a identificação dos fatores de risco mais relevantes (economia brasileira, economia mundial, ambiente político etc.). Em seguida, cenários determinísticos são construídos baseados em diferentes hipóteses considerando os fatores de risco identificados e as perspectivas macroeconômicas internas e externas, assim como as perspectivas políticas domésticas que possam influenciar a gestão da DPF. Figura 2. Esquema simplificado da construção de cenários Positivo Positivo Perspectivas Perspectivas políticas internas macroeconômicas externas Negativo Positivo Perspectivas macroeconômicas Negativo internas Negativo Embora em muitas circunstâncias se possam encontrar projeções feitas por analistas do mercado privado, na maior parte dos casos, elas servem apenas como referências para os cenários básicos. É nesse ponto que uma equipe técnica com boa formação em macroeconomia ocupa um papel importante. Cenários alternati- vos raramente estão disponíveis e publicados. Assim, os gestores de dívida devem desenvolver sua própria tecnologia para construir os cenários de maneira tal que reflita os ambientes potencialmente mais positivos ou mais negativos do que o caso básico que se pode enfrentar no futuro. No caso do Tesouro Nacional, pelo menos quatro cenários são esboçados: um otimista, um pessimista, um neutro (o caso básico) e um cenário de estresse (em que as condições para a emissão de dívida se tornam mais severas). Este último cenário é útil para o desenho de estratégias contingentes e para a avaliação da vulnerabilidade da dívida aos principais choques macroeconômicos. 159 Passo 3. Discussões preliminares de cenários e restrições Enquanto a elaboração de cenários é uma tarefa árdua realizada pela equipe com background macroe- conômico, suas implicações em termos das estratégias de dívida geram profundas discussões no Tesouro Nacio- nal, com o envolvimento de todas as unidades da área da dívida (front, middle e back-offices). Nesse ponto, os cenários macroeconômicos são combinados com as diretrizes para a dívida pública e as restrições relacionadas com o orçamento, a demanda, o risco e os passivos contingentes, dentre outros. O principal tema abordado neste estágio é quão rápido os objetivos de longo prazo podem ser alcançados, considerando-se as restrições mencionadas anteriormente. A qualidade da resposta a tal questão depende do nível de coordenação das discussões internas e do grau de envolvimento dos membros com expertise em fatores que afetam o desenho da estratégia. Passo 4. Desenho da estratégia de curto prazo (até um ano) Após discutir os cenários, inicia-se esta que é a principal etapa do processo de planejamento estratégico. A maior parte do trabalho quantitativo é feita neste estágio, e, embora não seja crucial, a disponibilidade de alguma ferramenta tecnológica pode adicionar precisão e flexibilidade ao processo de preparação e análise da estratégia. No caso do Brasil, o desenho de estratégias conta com o auxílio do Sistema Gerir para análise de riscos e planejamento estratégico.11 De posse dos diferentes cenários, procede-se ao levantamento das necessidades de financiamento para o período de planejamento. Especificamente com relação ao Plano Anual de Financiamento (PAF), são observados: i) os vencimentos projetados para o ano, tanto de compromissos internos quanto externos; e ii) os recursos orçamentários destinados ao abatimento da dívida pública, como se vê na figura a seguir, extraída do PAF 2009. Figura 3. Projeção da necessidade de financiamento do Tesouro Nacional em 2009 Necessidade bruta Recursos Necessidade líquida de financiamento R$ 400,5 bilhões - orçamentários R$ 91,3 bilhões = de financiamento R$ 309,2 bilhões Dívida interna em Encargos no Dívida externa R$ 16,1 bilhões + mercado R$ 363,6 bilhões + Banco Central R$ 20,8 bilhões Fonte: PAF 2009 Para o curto prazo, o desenho de estratégias deve detalhar todas as emissões que serão efetuadas para o financiamento da dívida pública. Nesse sentido, um exercício inicial procura contemplar várias estratégias alternativas de financiamento que explicitem as possibilidades de ação para a gestão da dívida pública, as restrições e os trade-offs existentes. Consistente com cada cenário delineado, as estratégias exploram lógicas 11 Ver Box 2 acerca do Gerir no Capítulo 1 da Parte 2. 160 Dívida Pública: a experiência brasileira de financiamento diferentes, ora com maior ênfase na redução de riscos, ora com maior ênfase na redução de custos, considerando-se as necessidades de financiamento e as diretrizes para a administração do endi- vidamento público. Após várias simulações combinando os cenários e as estratégias, os resultados são consolidados e submetidos ao debate no âmbito da área da dívida, assim como com as autoridades tomadoras de decisão. De maneira resumida, a tabela seguinte ilustra, com dados hipotéticos, a comparação de projeções dos principais indicadores da DPF derivados de três estratégias alternativas para a definição dos limites indicativos do PAF. Tabela 1. Comparação de estratégias e definição de metas do PAF Fonte: PAF 2009 e colunas de Estratégias do PAF 2009 – dez. 2009 com dados hipotéticos Com base nas simulações das estratégias, efetua-se ainda uma análise dos riscos associados com cada estratégia. Dentre os principais estão o risco de mercado,12 avaliado principalmente pela composição da DPF (Gráfico 1a), já que cada tipo de título do Tesouro Nacional reage a variações nos fatores que os remunera de maneira particular; e o risco de refinanciamento,13 expresso em termos de concentração de vencimentos no curto prazo (Gráfico 1b), do prazo médio do estoque e de variação do fluxo de caixa.14 12 O risco de mercado associa-se a variações no custo de financiamento dos títulos públicos em função das mudanças nas taxas de juros de curto prazo, de câmbio, de inflação ou na estrutura a termo das taxas de juros. 13 O risco de refinanciamento relaciona-se com a possibilidade de o Tesouro Nacional ter de suportar elevados custos para se financiar no curto prazo ou, no limite, não conseguir captar os recursos necessários para tal. 14 Uma discussão sobre os riscos monitorados e as ferramentas utilizadas pelo Tesouro Nacional será feita no Capítulo 3 da Parte 2. 161 Gráfico 1. Evolução do perfil da Dívida Pública Federal Composição da DPF (a) Concentração de vencimentos no curto prazo (b) Fonte: Tesouro Nacional Finalmente, é importante lembrar a estreita ligação que existe entre este passo e o primeiro, em que os objetivos da administração da dívida são definidos. Embora se elaborem várias estratégias, todas elas devem ser condizentes com a estrutura ótima que se deseja. Na prática, a principal diferença entre os planos alternativos refere-se à velocidade de convergência da estrutura de dívida atual para aquela do benchmark, respeitando-se as condições de financiamento que se vislumbram para cada cenário traçado para não causar pressões sobre o mercado de dívida e evitar custos exacerbados durante a transição para o longo prazo. 162 Dívida Pública: a experiência brasileira Passo 5. Definição de metas: resultados esperados das estratégias Neste estágio, mais uma vez os procedimentos de governança ocupam o papel principal. Com os resultados esperados para cada estratégia, chega-se ao momento de ocorrerem discussões no nível superior da hierarquia da gestão da dívida. No caso do Brasil, essas discussões incluem, dentre outros, o secretário do Tesouro e o ministro da Fazenda. Surge aqui um processo iterativo deste passo com os passos 4 e 5, mas este estágio é finalizado com a definição de metas para os indicadores de endividamento para o período de um ano. Essas metas são publicadas no Plano Anual de Financiamento (PAF) como limites indicativos para os resultados esperados para o perfil dívida (Tabela 2) e se tornam, ao longo do ano, as principais referências para se monitorar o desempenho dos gestores da dívida. Tabela 2. PAF 2009: resultados da Dívida Pública Federal (DPF) Fonte: PAF 2009 Passo 6. Desenho da estratégia de transição (médio e longo prazos) Além do PAF, que trata da estratégia de curto prazo (um ano), e da definição da composição ótima de longo prazo (benchmark), o planejamento estratégico da Dívida Pública Federal envolve um processo de elaboração de uma “estratégia de transição”, com o propósito de estabelecer ligações entre o curto e o longo prazos. Além do estudo das alternativas de financiamento que o Tesouro Nacional dispõe para o médio e o longo prazos, esse processo procura responder principalmente à questão de qual deve ser a trajetória e a velocidade de convergência do atual perfil de endividamento para o que se deseja no futuro, respeitadas as condições iniciais (isto é, a composição corrente da dívida e sua estrutura de vencimentos) e as restrições de curto e médio prazos. O desenho da estratégia de transição também é precedido de uma etapa de elaboração e discussão de cenários macroeconômicos que envolve debates acerca de seus aspectos qualitativos e, posteriormente, a quantificação de cenários para as principais variáveis que têm impactos para a estratégia e para os custos e os riscos da DPF. 163 Box 5. Análise das oportunidades e desafios para os próximos anos Elemento presente no desenho de uma estratégia de transição é a análise de oportunidades e desafios para os próximos anos. A esse respeito, os gráficos abaixo fornecem exemplos de informação útil para tal propósito. Elas combinam um contexto de declínio nas taxas de juros que se esperava no início do ano de 2005 e a concentração de maturidades de dívida flutuante nos anos seguintes. Gestores de dívida no Brasil avaliaram esse quadro como um cenário benigno para no futuro se promover a redução de sua exposição a taxas flutuantes e emitir mais dívida a taxas prefixadas em substituição àquela. Expectativas de taxas de juros e estrutura de maturação da dívida pública Após um diagnóstico inicial dessas oportunidades e desafios, devem ser avaliadas várias estratégias alternativas de financiamento que explicitem as possibilidades de ação para a gestão do endividamento público, as restrições e os trade-offs existentes. 164 Dívida Pública: a experiência brasileira Com base nesses cenários, passa-se ao levantamento das necessidades de financiamento para o horizonte do planejamento, à análise do perfil atual da DPF e à quantificação de estratégias alternativas de financiamento. Uma vez que diferentes cenários são preparados, para cada um deles distintas estratégias são avaliadas, variando-se suas velocidades de convergência para o benchmark de longo prazo. Para cada estratégia são simulados resultados para os indicadores relevantes de custos, riscos, perfil de vencimentos e composição da DPF. As estratégias desenhadas no contexto do planejamento de médio e longo prazos devem explorar diferentes possibilidades de ação, bem como refletir as restrições e os trade-offs existentes no gerencia- mento da DPF. Assim, uma alternativa de atuação pode contar com maior proporção de títulos prefixados, enquanto outra pode conferir maior peso aos títulos remunerados por índices de preços no financiamento do endividamento público. O objetivo de se examinar esses planos alternativos é mostrar as consequências que determinada linha de ação pode ter para os indicadores da dívida. Assim, por meio da projeção dos resulta- dos de cada estratégia obtêm-se subsídios para o debate de custos, riscos e restrições que o gestor tem de considerar na tomada de decisão e também para avaliação da velocidade de convergência para a estrutura de dívida de benchmark. O passo seguinte consiste em analisar os resultados dessas estratégias e deliberar as diretrizes para a condução da política de financiamento do endividamento público. Isso envolve: 1) a escolha preliminar de limites para os indicadores da DPF; 2) a definição preliminar do perfil de emissão de títulos públicos, com indicativos para a composição segundo indexadores e prazo médio de emissão e, também, indicativos para limites de maturação e percentual vincendo em 12 meses; 3) a apresentação de tais definições preliminares a um “comitê de planejamento de longo prazo para a dívida pública”. Assim, passa-se à etapa de um “ciclo de debates sobre planejamento de longo prazo” para a dívida pú- blica, envolvendo representantes do back-, middle- e front-offices. Nessa reunião, apresentam-se as estratégias alternativas de financiamento de longo prazo e os resultados projetados, enfatizando-se seus aspectos qualita- tivos, com o objetivo de explicitar trade-offs que o administrador da dívida pública enfrenta em suas escolhas e, a partir daí, levantar temas para discussão acerca do diagnóstico resultante das análises apresentadas. Nesse sentido, o processo de planejamento aponta possíveis gargalos que impedem uma aceleração das modificações do perfil da dívida pública e a superação de algumas restrições que se apresentam no curto prazo, bem como permite discutir quais ações devem ser colocadas em prática como resposta aos desafios identificados. Como exemplo, a demanda por alguns títulos públicos pode ser tipicamente de curto prazo em algum momento do tempo, como é o caso dos prefixados no mercado brasileiro. Então, aumentar rapidamente o peso desses títulos no financiamento público pode ser uma estratégia que reduz o prazo médio da dívida, o que explicita um conflito entre risco de refinanciamento e risco de mercado (estratégia 2 versus estratégia 3 do Gráfico 2). Entretanto, o debate das alternativas de médio e longo prazos pode induzir ações voltadas para a superação de fatores que impedem o crescimento da demanda por títulos prefixados de prazo maior e implicar uma estratégia de aumento gradual dos títulos prefixados na medida em que seja possível aumentar o prazo de emissão desses instrumentos (estratégia 1). Esse ponto ilustra um tipo de debate que o gestor da dívida deve conduzir antes da tomada de decisão diante de diretrizes aparentemente conflitantes. 165 Gráfico 2. Comparação de estratégias: risco de mercado versus risco de refinanciamento Dados hipotéticos. Por fim, há estudos no sentido de integrar num mesmo arcabouço os processos de simulação da com- posição ótima de longo prazo e a definição da velocidade ótima de convergência. Atualmente, o modelo de benchmark trabalha apenas uma estrutura ótima para a dívida uma vez que a economia já tenha alcançado o estado estacionário, sem, no entanto, considerar como seria a transição entre a situação atual e aquela de estado estacionário. Como discutido nesta seção, a transição é examinada com base em um arcabouço operacional distinto daquele usado no modelo de benchmark. É necessário, portanto, ampliar esse estudo para considerar como se daria a convergência do cenário atual para o cenário de longo prazo (estado esta- cionário), bem como para se discutir qual deve ser a velocidade da mudança do perfil atual da DPF para o desejado no longo prazo. Em síntese, tendo em vista o alcance do objetivo da gestão da dívida pública brasileira, o processo completo de seu planejamento estratégico envolve estudos acerca da composição ótima dessa dívida num cenário de equilíbrio em estado estacionário, que são seguidos de simulações de estratégias de transição 166 Dívida Pública: a experiência brasileira que permitem avaliar os custos e os riscos de distintas velocidades de convergência para o perfil almejado no longo prazo. Em conjunto, a definição do benchmark e da estratégia de transição fornece subsídios para o Tesouro Nacional validar as diretrizes da DPF que conduzem a elaboração do planejamento de curto prazo (PAF) e as decisões táticas do comitê mensal da DPF. Passo 7. Planejamento tático da dívida, execução e monitoramento Após a publicação do Plano Anual de Financiamento e da elaboração da estratégia de transição, o pla- nejamento estratégico abre espaço para o planejamento tático da dívida e sua execução. Neste texto, inclui-se este estágio como parte de um processo global em função da necessidade de sua estrita coordenação com as demais etapas discutidas aqui. O planejamento tático é focado no curtíssimo prazo (um mês) e aborda questões específicas que podem afetar a estratégia em um momento particular, sem comprometer o compromisso com a estratégia de longo prazo. Esse planejamento é discutido em detalhes nos encontros mensais do Comitê de Gerenciamento da Dívida (ver seção 2 deste capítulo) e cobre questões tais como: a exata característica dos títulos que serão ofertados nos leilões do mês seguinte, a posição de caixa do Tesouro e a definição de um cronograma das emissões para o próximo período. Ressalte-se que a estratégia tática da dívida é conduzida pelo Tesouro em coordenação com outras instituições, tais como o Banco Central e o Ministério do Planejamento, na medida em que a política monetária e a execução orçamentária podem afetar, ou serem afetadas, pela gestão da dívida. Outro elemento importante a ser abordado no planejamento estratégico, sobretudo como guia interativo com o passo anterior e para a identificação de oportunidades, é o monitoramento contínuo da estratégia de transição e avaliação de riscos de não se atingir as metas estabelecidas no Plano Anual de Financiamento, que constituem o núcleo das responsabilidades de um gestor da dívida. É por meio desse monitoramento que ações corretivas podem ser adotadas sempre que necessário, com o propósito de manter-se a convergência para as metas estabelecidas. Em alguns contextos, pode não ser possível cumprir as metas predefinidas, mas identificar o problema com antecedência pode adicionar credibilidade e reputação ao gestor da dívida e ajudá-lo a revisar essas metas, tornando-as mais realistas. Esse tipo de monitoramento é frequentemente feito no Brasil. A cada mês, a execução da estratégia é analisada pelo Comitê de Gerenciamento da Dívida, e os resultados alcançados para os principais indicadores da dívida são examinados à luz dos eventos relevantes observados no mercado de títulos públicos nos meses prévios e com o propósito de identificar se, relativamente às estratégias inicialmente desenhadas, há alguma defasagem no cumprimento dos limites indicativos do PAF. Adicionalmente, os indicadores da dívida são projetados para o final do ano. A esse respeito, tais projeções permitem explorar diretamente se há alguma possibilidade de que as metas estabelecidas no PAF não sejam alcançadas. Porém, mais importante do que essa análise direta é o debate acerca da viabilidade da estratégia subjacente a esse exercício. Projeções críveis devem contar com um plano factível, e a ausência desse elemento pode levar a situações de atraso na tomada de decisão que possa evitar o descumprimento das metas. O Gráfico 3 serve para ilustrar esse ponto, por meio do monitoramento do volume emitido por tipo de instrumento de financiamento. Análises desse tipo de gráfico ajudam a identificar os principais desvios entre as estratégias de emissão inicialmente planejadas e o que está, de fato, se realizando. Digamos que no PAF se estabeleça o objetivo de emitir R$ 120 bilhões utilizando o título público A, sendo R$ 10 bilhões em cada mês do ano (estratégia PAF). Ao final do mês de junho, contudo, se constata que apenas no primeiro mês de 167 execução da estratégia foi possível realizar a emissão prevista, sendo emitidos R$ 2 bilhões por mês de feve- reiro a junho devido à baixa demanda por esse título. Para os meses futuros, um plano descrito no Gráfico 3 é manter o que estava previsto inicialmente no PAF (estratégia A), independentemente da frustração ocorrida no primeiro semestre. Outro plano (estratégia B) é aumentar o volume de emissão previsto para R$ 20 bilhões por mês de julho a outubro, para garantir a emissão total prevista para o ano (R$ 120 bilhões). Gráfico 3. Monitoramento das programações das emissões do Tesouro Nacional Dados hipotéticos. O primeiro plano pode levar à projeção de descumprimento da meta para algum indicador de compo- sição da DPF, se nenhuma outra medida é tomada para compensar a menor emissão desse título. Entretanto, poder-se-ia questionar se essa emissão de R$ 10 bilhões por mês no segundo semestre do ano seria factível em função das emissões dos últimos meses. Também seriam objeto de dúvidas os resultados projetados com base na estratégia B, que pressupõe uma forte retomada da demanda pelo título A. Naturalmente a análise prospectiva do mercado de títulos e das condições macroeconômicas para o segundo semestre do ano devem ser preponderantes e podem permitir concluir não apenas que aquele volume de emissão é factível, como também é possível trabalhar com a estratégia B. É esse debate que dará validade a qualquer tipo de projeção de indicadores e sua comparação com as metas estabelecidas para o perfil da dívida, além de ser a base para a escolha entre as estratégias A e B ou para a definição de uma nova estratégia. Análises de reprogramação das emissões como a apresentada no Gráfico 3 podem ser feitas não apenas para as emissões previstas, mas também para emissão líquida (emissão menos resgate) e percentual de rolagem (emissão/resgates) por tipo de instrumento de financiamento, indicadores estes que auxiliam na avaliação da velocidade de mudança na composição da dívida segundo seus fatores de risco em direção ao benchmark. O confronto entre planejamento e valores realizados também é útil para indicadores de concen- tração de vencimentos, por meio da análise do prazo médio de emissão e do volume de títulos de curto prazo emitidos no financiamento total. Finalmente, com base no monitoramento da execução da estratégia inicial do PAF e de suas eventuais reprogramações e levando-se em consideração as análises de cenários para os próximos meses, procede-se à 168 Dívida Pública: a experiência brasileira análise dos indicadores projetados e, no caso em que algum deles se situe fora dos limites indicativos do PAF, discute-se que medidas adotar para adequar o perfil da dívida à meta proposta. O acompanhamento contínuo das estratégias de financiamento é importante, especialmente em cenários de maior volatilidade e incerteza nos mercados financeiros, como se verificou nos anos de 2002 e 2008, em que é necessário atuar para garantir o bom funcionamento do mercado de títulos públicos. Em alguns casos, o Tesouro Nacional pode decidir pela revisão de algumas das metas de curto prazo, como ocorreu em 2008, o que não significa alterar o referencial de longo prazo para o perfil da dívida. Nesse sentido, a atividade de monitoramento permite uma atuação tempestiva, de acordo com as condições de mercado, o que é elemento importante para a redução de custos do endividamento e, até mesmo, para a viabilidade da estratégia de longo prazo. 6 Considerações finais O processo de desenho de uma estratégia de administração de dívida no Brasil passou por várias mu- danças recentemente. Construir capacidade de análise no Tesouro Nacional e melhorar os mecanismos de governança e o arcabouço institucional são algumas das principais ações tomadas com vistas a aprimorar esse processo. Este trabalho procurou descrever cada etapa seguida pelas autoridades brasileiras na elaboração, na execução e no monitoramento da estratégia da dívida. A discussão focou apenas aspectos ilustrativos e descritivos, mas que são críticos para o sucesso na execução de uma estratégia de gestão de dívida, ainda que se deva levar em conta muitos outros detalhes técnicos. Para que o planejamento possa ser efetivamente colocado em prática, é necessário considerar a reali- dade do mercado de dívida do país. Em especial, deve-se levar em conta o conjunto de medidas do lado da oferta, do lado da demanda e de infraestrutura de mercado/intermediação que podem ser adotadas para que as chances de atingir os objetivos da administração da dívida se ampliem. Medidas do lado da oferta incluem aquelas cuja execução usualmente está sob o controle do gestor da dívida. Alguns exemplos são os tipos de títulos ofertados, a criação de emissões de benchmark e a definição de um calendário de leilões, ações estas que o Tesouro Nacional vem executando com sucesso nos últimos anos. Medidas do lado da demanda representam aquelas relacionadas com a base de investidores e sua capacidade (e desejo) de carregar o tipo de dívida que o governo deseja vender. A maior parte das medidas nessa área objetiva eliminar possíveis distorções que podem afetar a demanda por títulos do governo e não estão sob o controle exclusivo do gestor da dívida. Isso geralmente depende do suporte de várias instituições diferentes, tais como o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Secretaria de Receita Federal, entre outros. No Brasil, assim como em muitos mercados emergentes, medidas do lado da demanda trazem grandes desafios. Após um período de significativos aprimoramentos no lado da oferta (técnicas de emissão, desenho de estratégia, gerenciamento de risco etc.), a administração da dívida no Brasil tem mudado seu foco para o lado da demanda e para medidas de infraestrutura de mercado/intermediação. Como exemplo, cita-se a realização de operações de resgate antecipado de títulos de médio e longo prazos, geralmente remunerados por índices de preços, como instrumento para fomentar a liquidez no mercado secundário desses títulos e medidas para estimular a poupança de longo prazo, como um esquema de redução de impostos de acordo com a duração do investimento. 169 A diversificação da base de investidores está, em muitos casos, no centro dos objetivos do lado da demanda que um gestor de dívida deveria propor. Contribuem nesse campo as ações no sentido de promover a abertura do mercado de capitais ao capital estrangeiro, como a Resolução nº 2.689/2000 da CVM, que eliminou a maior parte das distinções entre investidores institucionais e outros investidores não residentes e também a Lei nº 11.312, de 27 de junho de 2006, que isenta os não residentes de Imposto de Renda nas aplicações em títulos públicos. Estes são alguns dos desafios para os quais o Brasil tem apresentado avanços nos últimos anos em termos de um mercado de dívida mais desenvolvido e menos propenso a turbulências. Dentre os vários benefícios obtidos, a possibilidade de o Tesouro Nacional progredir na execução de sua estratégia de longo prazo, com um balanço mais eficiente entre custos e riscos para a dívida pública. Referências ALVES, L. F. Brazilian public debt benchmark: a long-term strategy. Minerva Paper. The George Washington University. Minerva Program, Spring, 2009. Disponível em: http://www.gwu.edu/~ibi/pesquisa.html. Acesso em: 2009. BAGHDASSARIAN, W. Indicadores estocásticos de risco no processo de planejamento estratégico da dívida pública. Finanças Públicas: VIII Prêmio Tesouro Nacional – 2003. Coletânea de Monografias. Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, p. 275-328, 2004. BOLDER, D. J. The Canadian debt-strategy model. Bank of Canada Review, 2008. BONOMO, M.; COSTA, E.; LA ROCQUE E SILVA, A. A new framework for debt management in Brazil. Brasí- lia: Secretaria do Tesouro Nacional, 2003. Mimeografado. CABRAL, R. Benchmark para a dívida pública: um modelo estocástico de finanças. Tese de doutorado. Uni- versidade de Brasília, 2005. Mimeografado. CURRIE, E.; DETHIER, J. J.; TOGO, E. Institutional arrangements for public debt management. World Bank Policy Research Working Paper, 3021, 2003. DANMARKS NATIONALBANK. Danish governmment borrowing and debt 2007. Disponível em: http:// www.nationalbanken.dk/C1256BE9004F6416/side/Danish_Government_Borrowing_and_Debt_2007_ publikation!opendocument. Acesso em: 2007. FINNISH STATE TREASURY’S FINANCE AND ADMINISTRATIVE MANAGEMENT. Debt Management An- nual Review 2007. Republic of Finland. Disponível em: http://www.statetreasury.fi//Public/Default. aspx?culture=en-US&contentlan=2&nodeid=15808. Acesso em: 2008. INSTITUTO DE GESTÃO DA TESOURARIA E DO CRÉDITO PÚBLICO DE PORTUGAL. Lei quadro da dívida pública (Lei nº 7/98 de 3 de fevereiro de 1998). Disponível em: http://www.igcp.pt/gca/index.php?id=161. Acesso em: 2008. ______. Relatório Anual de Gestão da Dívida Pública – 1999. 1999. ______. Portugal: gestão da dívida pública. Disponível em: http://www,igcp.pt/fotos/editor2/Gestao_Divi- da_Publica.pdf. Acesso em: 2008. IRISH NATIONAL TREASURY MANAGEMENT AGENCY. Report and accounts for the year ended 31 December 2006. Ireland, 2006. Disponível em: http://www.ntma.ie/Publications/annualReportsEnglish.php. Acesso em: 2006. 170 Dívida Pública: a experiência brasileira ITALIAN DEPARTMENT OF TREASURY. Guidelines for public debt management 2008. Italy, 2008. Disponível em: http://www.dt.mef.gov.it/ENGLISH-VE/Public-Deb/Reports--P/Strategic-/Guidelines-for-Public-Debt- Management-2008.pdf. Acesso em: 2008. SECRETARÍA DE HACIENDA Y CRÉDITO PÚBLICO. Plan Anual de Financiamiento 2008. México, 2008. Disponível em: http://www.apartados.hacienda.gob.mx/ucp/esp/documentos/estrategia/paf2008.pdf. Acesso em: 2008. SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Dívida Pública Federal: Plano Anual de Financiamento 2008. Brasí- lia: Secretaria do Tesouro Nacional, jan. 2009, nº 9. SOUTH AFRICA’S NATIONAL TREASURY. The 2008/11 National Treasury Strategic Plan. Republic of South Africa. Disponível em: http://www.finance.gov.za. Acesso em: 2008. WORLD BANK/INTERNATIONAL MONETARY FUND. Guidelines for public debt management. Disponível em: http://info.worldbank.org/etools/docs/library/156527/africabondmarkets/pdf/guidelines_2001_final.pdf. Acesso em: 2001. 171 172 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 Capítulo 3 Gerenciamento de riscos da Dívida Pública Federal Anderson Caputo Silva Rodrigo Cabral William Baghdassarian 1 Introdução O gerenciamento de riscos há muito se consolidou como atividade essencial no mercado financeiro. No entanto, sua relevância e sofisticação aumentaram substancialmente nos últimos anos, principalmente em função da expansão do mercado de derivativos, da maior disponibilidade de ferramentas amigáveis de gerenciamento de riscos e de regras prudenciais e monitoramento de riscos mais estritos impostos por reguladores dos mercados de capitais e bancos centrais. Esforços para a implantação de práticas modernas de gerenciamento de risco também vêm ocupando a lista de prioridades de gestores de dívida pública. Depois da série de crises nos mercados de dívida no final dos anos 1990, um conjunto crescente de países tem incorporado explicitamente o gerenciamento de riscos no seu objetivo formal de gestão da dívida pública, definido por muitos países como “minimizar os custos de financiamento de longo prazo sujeito a níveis prudentes de risco”.1 Em consequência desse processo, diversos departamentos de dívida pública2 – DMOs no mundo pas- saram ou vêm passando por mudanças institucionais significativas para lidar com a demanda pela melhoria do capital humano e tecnológico.3 Nesse sentido, a mudança mais notória tem sido o foco em fortalecer as capacidades de middle-office, mais especificamente as áreas de gerenciamento de risco e planejamento de longo prazo.4 O gerenciamento de riscos da dívida pública tornou-se, assim, uma atribuição fundamental entre as funções de um DMO. Acompanhando essa tendência, o Tesouro Nacional iniciou em 2001 um programa com o Banco Mun- dial para desenvolvimento de capacidade técnica e construção de ferramentas e sistemas de gerenciamento de riscos.5 Dois anos depois, o arcabouço brasileiro de gerenciamento de riscos então construído foi apre- sentado e validado em um seminário do qual participaram especialistas de diversos países e organizações internacionais.6 1 Ver Guidelines for public debt management (2001). 2 Passaremos a usar o termo genérico e consagrado na literatura DMO (Debt Management Office) para nos referirmos à área/ departamento do governo encarregada da gestão da dívida pública. 3 Alguns exemplos são Reino Unido, França, Alemanha, Brasil e, mais recentemente, México. 4 Para uma boa referência de práticas de gerenciamento de riscos veja OCDE (2006). 5 Para ajudar na construção do arcabouço brasileiro de gerenciamento de riscos, foram contratados consultores de nível inter- nacional, tanto da Academia como do mercado financeiro, e uma firma especializada em desenvolvimento de sistemas para o mercado financeiro. 6 O Workshop on Public Debt Management in Brazil foi realizado no Rio de Janeiro, na Fundação Getulio Vargas (FGV), em março de 2003. Participaram especialistas seniores em gestão da dívida pública de nove países – Brasil, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Portugal, Reino Unido e República Tcheca, assim como representantes da OCDE e do Banco Mundial. 173 Desde então, diversos estudos foram produzidos pela equipe de gerenciamento de riscos do Tesouro Nacional, apresentados em seminários acadêmicos e profissionais e publicados7 em diversos meios. Esses es- tudos têm um papel relevante no esforço contínuo de aprimoramento das práticas de gerenciamento de risco no Brasil. No entanto, seu caráter altamente técnico deixa uma lacuna no entendimento de como agregar cada aspecto particular para formar o conjunto completo de atribuições do gestor de riscos da dívida pública. O objetivo deste capítulo é descrever o escopo das atividades e os principais desafios no gerenciamento de risco da dívida pública. Além de prover uma visão geral de como o Tesouro Nacional lida com o geren- ciamento de riscos, tem também a (ambiciosa) intenção de atender, ou minimizar, demandas recorrentes de pesquisadores e países em estágio inicial de desenvolvimento de capacidade na área por um mapa consistente de ferramentas e responsabilidades que essa atividade engloba. Ademais, uma boa visão das ferramentas que precisam ser desenvolvidas e as habilidades específicas requeridas por tal função podem ser um guia útil para aqueles dispostos a aprimorar suas práticas de gerenciamento de riscos. O capítulo está organizado do seguinte modo: na seção 2 apresentamos uma visão geral sobre o es- copo das atividades do gestor de riscos da dívida pública, dividindo suas atribuições em o que denominamos funções periféricas e funções principais de gerenciamento da dívida. Na seção 3 apresentamos os principais indicadores de risco usados por um DMO. Na seção 4 ressaltamos o papel importante do gestor de riscos em prover, baseado em análises quantitativas, uma referência de longo prazo (benchmark) para guiar as estratégias de dívida de curto e médio prazos, assim como seu papel no desenho e no monitoramento das estratégias de dívida e uma breve discussão sobre a gestão integrada de ativos e passivos (ALM).8 Uma discussão acerca das atribuições periféricas do gestor de riscos da dívida pública é conduzida na seção 5. Na seção 6 trazemos as considerações finais. 2 Escopo e principais desafios do gerenciamento de riscos da dívida pública O conjunto de atribuições de um gestor de riscos de dívida pública não é pequeno. Nesta seção apresen- tamos uma visão geral de tais atribuições e dos principais desafios com os quais os gestores de risco de dívida pública geralmente se deparam no atendimento de demandas de diferentes clientes (tipicamente técnicos graduados do governo ou autoridades) e contrapartes (gestores da dívida). A maior parte dos desafios está relacionada com a adaptação de ferramentas de gerenciamento de risco já usadas por acadêmicos, investi- dores e analistas de mercado às necessidades específicas de uma entidade pública que gere uma carteira de obrigações líquidas. Construir uma lista completa de atribuições de um gestor de riscos não é uma tarefa fácil, inevitavel- mente sujeita a contestações. Apesar disso, tentamos agrupá-las em duas categorias: funções periféricas e funções principais de gerenciamento da dívida. As atribuições mais comuns de um gestor de riscos na primeira categoria são exercícios de dinâmica da dívida e avaliações de sustentabilidade. Funções de gerenciamento da dívida incluem a identificação de referências de longo prazo (estrutura ótima da dívida), construção e constante avaliação de indicadores de risco (para a mensuração dos diversos riscos envolvidos) e o desenho, o monitoramento e as análises de trade-off entre diferentes estratégias de refinanciamento que podem ser implementadas pelo DMO. As funções periféricas citadas anteriormente não são atribuições exclusivas do gestor de riscos da dívida pública. De fato, exercícios de dinâmica da dívida e testes de sustentabilidade são conduzidos usualmente por 7 Referências de estudos mais técnicos são dadas ao longo do capítulo para o leitor mais interessado. 8 Do inglês Assets and Liabilities Management. 174 Dívida Pública: a experiência brasileira uma gama variada de partes interessadas, como analistas financeiros, acadêmicos e formuladores de política fiscal. Nesse ponto, a relevância ou diferencial do gestor de riscos advém de sua informação privilegiada quanto à estratégia de refinanciamento do governo, o que lhe confere uma posição vantajosa na condução de exercícios de dinâmica da dívida e sustentabilidade. A incorporação da estratégia real de refinanciamento gera estimativas mais acuradas da dinâmica da dívida e dos riscos envolvidos. Dessa forma, o gestor de riscos da dívida pública pode prover informações valiosas aos tomadores de decisão para a formulação e a avaliação de políticas públicas que afetam o nível de endividamento do país, como aquelas relacionadas às metas de resultado primário ou assunção de passivos contingentes. Muitas vezes, a expertise dos gestores de risco da dívida pública constitui-se em uma fonte preciosa de informação que não é explorada em sua totalidade pelos formuladores de política. Na seção 5 discorremos detalhadamente sobre essas atividades periféricas do gestor de riscos. O analista de riscos também é responsável por prover insumos relevantes para uma gestão prudente e apropriada da dívida pública. A lista, como mencionada anteriormente, é extensa. Talvez a melhor maneira de ilustrar tais assuntos fosse tratar separadamente seu papel em prover diretrizes gerais para a composição ótima da dívida, produzir um conjunto amplo de indicadores que meçam os diferentes tipos de risco que precisam ser monitorados e elaborar, supervisionar e avaliar os trade-offs de diferentes estratégias de financiamento. Uma questão fundamental para os gestores da dívida é aquela relacionada a qual composição e perfil de dívida o governo deveria perseguir, ou seja, qual é a estrutura ótima da dívida de longo prazo. O gestor de riscos da dívida pública tem um papel importante nessa discussão ao apontar prós e contras e possivelmente quantificar os custos e riscos associados a diferentes estratégias de dívida de longo prazo. A teoria de gerenciamento de dívida provê alguma luz sobre as características gerais da carteira de dívida pública. No entanto, para prover diretrizes mais específicas e quantitativas, diversos especialistas em gerenciamento de dívida engajaram-se em um debate que tem ganho atenção crescente entre os DMOs de todo o mundo, qual seja, a determinação de um benchmark. Outra atribuição importante do gestor de riscos da dívida pública é seu papel ativo na formulação, no monitoramento e na análise de trade-offs entre diferentes estratégias de refinanciamento que podem ser es- colhidas pelo DMO. O processo de desenho de uma estratégia de dívida é de responsabilidade conjunta com outras áreas do DMO, como o front-office, por exemplo, e foi explorado com detalhes no capítulo anterior. O gestor de riscos identifica possíveis riscos para a implementação da estratégia de dívida e refina as estimativas (alvos) para a composição e o perfil da dívida no futuro (tipicamente em horizontes de um ano, como acontece nos planos anuais de financiamento). É também seu papel o monitoramento da execução da estratégia e, quando necessário, a sugestão de medidas corretivas na condução da estratégia de emissões. Na seção 4 discutimos a questão da estrutura ótima da dívida, explicitando o modelo analítico atualmente usado pelo Tesouro Nacional, e tecemos alguns comentários adicionais sobre o papel do gestor de riscos na formulação e no monitoramento das estratégias de curto e médio prazos. Uma atribuição central do gestor de riscos é o cálculo e o monitoramento de um conjunto abrangente de indicadores de risco. Esses indicadores não são, em sua maior parte, necessariamente sofisticados. Na prática, um bom conjunto de indicadores simples, tais como composição, prazo médio, duração de repactuação e perfil de maturação (medido como um percentual da dívida que vence no curto prazo, por exemplo), pode prover informações úteis quanto aos riscos de taxa de juros e de refinanciamento da dívida. Medidas mais sofisticadas de risco, que usualmente envolvem simulações estocásticas, têm tido uso crescente nos DMOs, complementando as medidas tradicionais. Em sua grande maioria, tais medidas são 175 adaptações de indicadores que já tinham sido desenvolvidos do ponto de vista do investidor (como o tão conhecido Valor em Risco – VaR). O desafio principal torna-se então adaptar esses indicadores para o ponto de vista do devedor, em especial do gestor da dívida pública. Entre os indicadores comumente utilizados para esse fim estão o Cash-Flow-at-Risk (CfaR), o Cost-at-Risk (CaR) (ou Stock-at-Risk – SaR) e o Budget-at-Risk (BaR). Análises estocásticas também são frequentemente empregadas por gestores de risco da dívida pública para subsidiar decisões em transações específicas. Exemplos típicos são operações de troca e outras operações de gerenciamento de passivos que requerem análises de trade-offs em termos de custo e risco. O conjunto de indicadores de risco também precisa incluir mensurações do lado da demanda. Isto é, o gestor da dívida precisa monitorar o risco sob a ótica da demanda que pode vir a causar descontinuidades ou insucessos na estratégia programada de emissões. Tais medidas são particularmente importantes nos mercados emergentes, nos quais a quantidade de risco, notadamente risco de taxa de juros, que a base de investidores pode suportar, representa uma restrição significativa para uma implementação suave da estratégia de dívida. Da mesma forma que os participantes do mercado mensuram suas exposições à taxa de juros através de indicadores como o Present Value of a Basis Point (PVBP) ou o VaR, o gestor de riscos da dívida pública tam- bém deveria fazê-lo para identificar o ritmo e a quantidade de transferência de riscos do governo para o setor privado que uma dada estratégia de refinanciamento embute. Em algumas circunstâncias, por exemplo, níveis anormais de VaR causados por volatilidade macroeconômica podem reduzir significativamente a demanda por ativos prefixados, forçando o gestor da dívida a incorrer em custos maiores ou mesmo a provocar mudanças inesperadas na composição de suas emissões. Na seção 3 discutimos os indicadores de risco tradicionais e estocásticos, além de medidas de risco do lado da demanda. Finalmente, é mister ressaltar que para que um DMO esteja apto a lidar com todas essas funções há uma necessidade de investimento significativo no aprimoramento de seus recursos humanos e tecnológicos. O desenvolvimento de sistemas de gerenciamento de risco que permitam comparações adequadas de trade-offs em termos de custos e riscos entre diferentes estratégias potenciais de refinanciamento é um passo essencial que pode melhorar substancialmente o processo de tomada de decisões no DMO.9 3 Indicadores de risco da dívida pública A gestão de risco da dívida pública tem muitas dimensões. Nesta seção, ilustramos os principais indica- dores comumente usados por gestores de risco de dívida pública. A maioria deles é relativamente simples de ser calculada. Esses indicadores são chamados aqui de “indicadores tradicionais”. Outros envolvem simulações estocásticas e usualmente pertencem à chamada família de indicadores em risco ou at-Risk. Apesar de não serem extremamente complicados, esses indicadores representam adaptações de medidas frequentemente em- pregadas pelo setor privado, como o Valor em Risco (Var) (Value-at-Risk) para o ponto de vista do devedor. É mister ressaltarmos que, apesar da simplicidade dos chamados “indicadores tradicionais”, muitos países não os calculam e parece não haver um consenso metodológico internacional entre aqueles que 9 O Tesouro Nacional desenvolveu um sistema de gerenciamento de riscos e planejamento estratégico da dívida pública – o sistema Gerir. Ele provê a base para o trabalho de front e middle-office na formulação e na análise de estratégias de dívida. Por meio do Gerir, os analistas da dívida simulam diferentes estratégias de refinanciamento para a dívida pública brasileira e comparam seus resultados, medidos por um conjunto de indicadores relevantes. O sistema foi desenvolvido após uma investigação exaustiva da experiência internacional e passou pelo escrutínio de especialistas de risco de diferentes países. O Anexo 1 traz algumas ilustrações do sistema, também abordados no Box 2 do Capítulo 1, Parte 2. 176 Dívida Pública: a experiência brasileira o fazem. O primeiro problema origina-se de um problema crônico que muitos DMOs enfrentam em termos da falta de sistemas de back-office que sejam capazes de calcular de modo agregado e acurado mesmo o mais simples indicador de dívida, qual seja, o estoque da dívida. O segundo problema, a falta de consenso metodológico, também tem consequências relevantes já que torna a comparação de indicadores de risco entre países uma tarefa por si só arriscada. Para ilustrar este último ponto, mostramos a seguir uma tabela com o prazo médio da dívida pública brasileira usando duas metodologias diferentes, que geram discrepâncias significativas nas estatísticas pro- duzidas. Haja vista que não apenas os gestores de dívida, mas uma gama variada de investidores e agências de classificação de risco usam esses indicadores para comparações internacionais, esse exercício traz uma importante mensagem de cautela para aqueles que enveredam por tais comparações.10 Tabela 1. Diferenças entre prazo médio e vida média A metodologia tradicional11 usada pelo Tesouro Nacional considera todos os fluxos de desembolso (inclu- sive pagamentos de cupons) para calcular o prazo médio da dívida pública. No entanto, a metodologia usada pela maioria dos países limita-se a considerar os pagamentos de principal. Apesar de também não haver uma harmonização internacional quanto à nomenclatura nessa área, esses dois modos de cálculo são usualmente chamados de prazo médio e vida média, respectivamente. A primeira metodologia dá uma ênfase maior ao risco de refinanciamento da dívida, embora seja mais conservadora, e torne difíceis comparações internacionais. Nesse sentido, o Tesouro Nacional decidiu passar a publicar essa estatística com as duas metodologias. Na metodologia tradicional, o prazo médio da dívida doméstica era de 3,3 anos no final de 2008, en- quanto para comparações internacionais a vida média era de 4,9 anos. Essa vida média excedia, por exemplo, a vida média da dívida de vários países com melhores classificações de risco do que o Brasil. Mais que isso, enquanto a maioria dos países usa valores nominais dos fluxos, o Brasil calcula o valor presente de cada um deles. Em uma dívida que contém uma boa quantidade de papéis de longo prazo e com cupom, essas diferenças tornam-se muito significativas. Apresentamos as medidas de risco nas subseções a seguir, agrupando-as pelos tipos mais relevantes de risco12 aos quais a dívida pública está exposta, quais sejam: risco de mercado,13 risco de refinanciamento, risco orçamentário e risco de demanda. 10 De fato, esse exercício foi motivado pelas frequentes comparações de analistas financeiros e agências de classificação de risco do prazo médio da dívida pública brasileira com países similares. No Anexo 4 trazemos uma breve descrição das diferenças meto- dológicas no cálculo desse indicador. 11 Tal assunto, também explorado no Capítulo 4 da Parte 1, está detalhado no Anexo 4. 12 Note que há outros tipos de risco que não estão citados aqui, como o risco de crédito e o risco operacional, sobre os quais teceremos alguns comentários no final da seção. 13 Apesar de usarmos a denominação “risco de mercado”, um termo mais preciso seria “risco de valor”, já que o estoque ou valor da dívida no Brasil não é marcado a mercado, mas sim calculado como o valor presente dos fluxos usando-se para desconto a taxa de emissão de cada título. 177 3.1 Risco de mercado O risco de mercado pode ser definido como a incerteza relacionada aos custos esperados oriunda da volatilidade das variáveis de mercado (juros, câmbio, inflação etc.). No mercado financeiro, esse tipo de risco está associado à volatilidade dos preços dos ativos, mas no caso da dívida pública esse risco refere-se a mudanças no valor da carteira (estoque da dívida). Apesar de ser um conceito aparentemente bastante simples, há uma discussão relativamente ampla que envolve a metodologia para calcular o risco de mercado devido a divergências acerca da medida relevante de estoque, que é o elemento básico para uma medida de risco de mercado. O valor da dívida deveria ser marcado a mercado, como são tratados os ativos financeiros pelos bancos, por exemplo, ou marcado pela curva, isto é, pela taxa de rendimento pela qual cada título foi originalmente vendido? O estoque deveria ser expresso em termos nominais ou reais?14 Essas são algumas das perguntas frequentes no contexto desse debate, que tem merecido atenção dos DMOs. Apesar da discussão relevante mencionada anteriormente, muitos países calculam medidas de risco de mercado. Na categoria de “indicadores tradicionais”, a composição, a duração, duração de repactuação e a convexidade são as mais comuns, enquanto o chamado Cost-at-Risk é oriundo do grupo de indicadores estocásticos. Testes de estresse são comumente usados como complementares na análise de risco de mercado para medir as consequências de choques severos, usualmente nas taxas de juros e câmbio. Os conceitos de duração e convexidade estão bem estabelecidos na literatura e, em geral, não há diferenças metodológicas significativas entre o modo de calculá-las do ponto de vista de um investidor ou de um gestor de riscos de dívida pública.15 De fato, metas de duração são usadas por muitos países, como Dinamarca e Suécia. Por esses motivos, não dedicamos aqui muita atenção em descrevê-las.16 A duração de repactuação é um conceito menos usual. Ele mede o tempo médio que uma mudança nas taxas de juros impacta a dívida toda. Para títulos prefixados é uma medida equivalente à duração. No entanto, para títulos pós-fixados, indexados à taxa de juros, por exemplo, representa o tempo entre mudanças na taxa de juros relevante (na Libor, por exemplo). Devido ao fato de que o estoque da dívida na maioria dos países usualmente é composto de um mix de instrumentos nominais e indexados (em geral, às taxas de juros, à inflação ou ao câmbio), o uso desse indicador tem sido crescente. Duration , (1) em que: PV – valor presente do fluxo total; Ti= 1 dia – para títulos indexados à taxa Selic (overnight); 14 Essas e outras discussões sobre o estoque são exploradas em Baghdassarian (2003) e Bonomo et al. (2003). 15 Apesar de, em muitos casos, investidores usarem medidas marcadas a mercado enquanto gestores de dívida usam marcações à curva. 16 Há um debate interessante sobre o uso da duração como meta. Deve-se ter cuidado na avaliação de quão próximo deve ser perseguida essa meta, uma vez que pode gerar estranhas tomadas de decisão do ponto de vista do devedor. Pensemos em um aumento das taxas de juros causando uma redução na duração. Para seguir determinada meta preestabelecida, o gestor da dívida seria levado a aumentar a emissão de títulos de longo prazo para contornar essa redução. Mas, nesse caso, ele seria levado a emitir títulos mais longos justamente no momento em que as taxas de juros estão mais altas! 178 Dívida Pública: a experiência brasileira Ti = 6 meses – para títulos indexados à taxa Libor de 6 meses; Ti = t – para outros. O Cost-at-Risk (CaR)17 representa o valor esperado máximo que o estoque da dívida pode alcançar em um determinado período, dado um certo nível de significância. Enquanto os indicadores de risco de mercado que havíamos discutido até agora são indicadores da sensibilidade do estoque da dívida a mudanças repentinas nas variáveis de mercado, especialmente nas taxas de juros, o CaR provê uma medida de incerteza com relação ao valor esperado do estoque no futuro (por exemplo, em períodos de um, cinco ou dez anos). Esse indicador também tem a vantagem de incorporar os efeitos de uma gama maior de fatores de risco que podem afetar o estoque da dívida, como mudanças nas taxas de juros, na inflação, no câmbio e no PIB (quando apropriado), considerando também a possível correlação entre eles. Pode-se calcular o CaR relativo e absoluto. O CaR absoluto consiste na diferença entre o valor máximo do estoque futuro, dado certo nível de significância, e o valor inicial do estoque da dívida. Por sua vez, o CaR relativo mede a diferença entre esse mesmo valor máximo de estoque futuro a certo nível de significância e a média da distribuição de estoques futuros. O Gráfico 1 a seguir ilustra esses conceitos. Gráfico 1. Cost-at-Risk (CaR) O uso do CaR também está relacionado à discussão acerca do papel que o gestor de riscos da dívida pública pode ter nas análises de sustentabilidade da dívida.18 É de fato um instrumento que agrega incerteza assim como hipóteses sobre o refinanciamento da dívida. Outro ponto importante a ser considerado aqui é que, apesar de suas propriedades similares, há di- ferenças relevantes entre o CaR e o bem conhecido VaR. Poder-se-ia dizer que o CaR é uma adaptação do 17 Baghdassarian (2003) apresenta a metodologia para o cálculo do CaR, do CfaR e do BaR. 18 Essa discussão será explorada na seção 5. 179 VaR para as necessidades específicas do ponto de vista do emissor, preocupado com o valor do estoque da sua dívida (na maioria das vezes com base na marcação pela curva e não na marcação a mercado, como é o caso do VaR) em um período de tempo muito maior do que o usual para o VaR (tipicamente um dia). Essas diferenças “sutis”, incluindo a importância de se considerar a estratégia de refinanciamento, trazem desafios significativos na modelagem de tal instrumento, especialmente no que se refere à precificação dos diferentes instrumentos a serem emitidos no futuro (estratégia) e seus prêmios de risco relativos.19 Finalmente, complementando as medidas comentadas, gestores de risco de dívida pública conduzem, em geral, testes de estresse. Há vários modos de realizar esses exercícios. Uma abordagem comum consiste em aplicar choques a variáveis-chave, tais como taxas de juros e câmbio, em termos de desvios-padrão, ba- seados na distribuição dos seus valores históricos sobre um determinado período de tempo. A mensuração da sensibilidade de tais choques tornou-se uma prática importante no Brasil, seja para compreender como se comportaram no passado seja para ajudar a medir as consequências futuras da estratégia de dívida que está sendo implantada ou analisada. Também mereceu atenção especial nas análises de agências de classificação de risco e analistas financeiros.20 O Gráfico 2 mostra um exemplo de um teste de estresse para a dívida bra- sileira apresentado no Plano Anual de Financiamento 2006.21 Gráfico 2. Probabilidade de aumentos no estoque da DPF e da DPMFi de 3% e 5% em relação ao PIB como consequência de choques nas taxas de juros e de câmbio 19 Uma discussão acerca dessas complexidades está fora do escopo deste capítulo. Para maior profundidade, veja Bonomo, Costa, Rocque e Silva (2003) e Cabral (2004). 20 Esse tipo de análise de fato teve destaque nas discussões das autoridades brasileiras com agências de classificação de risco como Fith, Moody’s e Standard & Poors. 21 Para uma discussão mais detalhada, veja Plano Anual de Financiamento (2006). 180 Dívida Pública: a experiência brasileira 3.2 Risco de refinanciamento O risco de refinanciamento da dívida pública é definido como o risco de mudanças abruptas no perfil de pagamentos da dívida no momento do seu refinanciamento. Em casos extremos, pode levar à incapacidade de um governo de refinanciar parte ou a totalidade da dívida vincenda em determinado momento. De modo similar ao caso do risco de mercado, os indicadores de risco de refinanciamento também podem ser divididos em medidas “tradicionais” e uma medida em risco (at-Risk). O Tesouro Nacional usa três indicadores para mensurar esse tipo de risco: prazo médio, perfil de maturação da dívida (em especial o percentual da dívida vendendo no curto prazo) e o Cash-Flow-at-Risk (CfaR). Como mostraremos a seguir, cada um desses indicadores mede o risco de refinanciamento de uma perspectiva diferente e seu uso conjunto é recomendado. O prazo médio explicita um ponto de equilíbrio de todos os vencimentos de dívida. Como é uma média, um acompanhamento da evolução desse indicador ao longo do tempo pode ajudar a prevenir encurtamentos sistemáticos da dívida, o que poderia trazer problemas para os gestores. O segundo indicador é o percentual da dívida vencendo em 12 meses. É uma medida complementar ao prazo médio e está focada no curto prazo. Enquanto o prazo médio mede possíveis reduções sistemáticas nos prazos dos fluxos de pagamentos, o percentual da dívida vencendo em 12 meses está mais focado nas necessidades de caixa para honrar os pagamentos em um ano. Em outras palavras, está relacionado ao risco de liquidez. Uma generalização natural é o perfil completo de maturação, acompanhando, por exemplo, o percentual vencendo em um ano, dois anos, três anos, até cinco anos, depois de dez anos etc. O último indicador usado para medir a exposição ao processo de refinanciamento é o CashFlow-at-Risk (CfaR), o qual mensura a incerteza associada aos fluxos de caixa futuros. O CfaR mede, a um dado nível de significância, o valor máximo do fluxo de caixa (pagamentos) em datas ou períodos específicos no futuro. Um título prefixado denominado em moeda doméstica não traz esse tipo de risco, dado que não há nenhum fator de risco associado a seu fluxo de caixa.22 No entanto, é difícil saber ex-ante qual será o fluxo de caixa 22 Há um debate interessante, que não exploramos aqui, sobre o título sem risco, no que diz respeito a fluxo de caixa. A maioria dos países considera o título prefixado como tal. No entanto, outros mais preocupados com variáveis reais poderiam argumentar que os títulos indexados à inflação seriam os candidatos mais apropriados a ser considerados livres de risco. 181 de um título em moeda estrangeira expresso em moeda local. A mesma lógica aplica-se a outros tipos de instrumentos, tais como títulos com taxas flutuantes ou indexados à taxa de inflação. Os gráficos a seguir mostram como esse indicador tem sido usado na prática pelo Tesouro Nacional, ilustrando os trade-offs entre os diversos instrumentos em termos de risco de fluxo de caixa.23 Gráfico 3. Perfil de maturação e Cash-Flow-at-Risk (CfaR) Como podemos observar, os indicadores discutidos nesta seção são mais complementares que substitutos na mensuração do risco de refinanciamento. Enquanto o prazo médio e o percentual da dívida vencendo no curto prazo são mais focados na distribuição temporal dos pagamentos da dívida, o CfaR centra-se no volume, e sua sensibilidade a choques, dos pagamentos que o gestor da dívida terá de honrar em datas específicas no futuro. 23 Para mais detalhes sobre a metodologia de cálculo do CfaR, veja Relatório Anual da Dívida Pública (2004). 182 Dívida Pública: a experiência brasileira 3.3 Risco orçamentário O conceito de Budget-at-Risk (BaR), como usado no Brasil, consiste no risco de que o serviço da dívida dentro do ano fiscal ultrapasse o valor originalmente aprovado pelo Congresso no orçamento. Como o serviço da dívida no orçamento é medido em termos monetários (fluxo de caixa), o BaR é bas- tante similar ao CfaR no sentido de que ambos medem a incerteza de fluxos de caixa. A diferença essencial entre os dois é que o BaR é focado no período fixo de um ano (ano fiscal), enquanto o CfaR é mais flexível e pode ser computado para qualquer data ou período específico. Além disso, o BaR tem um valor de referência exógeno, aquele aprovado pelo Congresso, e portanto tem como resultado uma probabilidade de que aquele valor seja excedido. Por sua vez, o CfaR provê, para um dado nível de significância (risco), o valor máximo esperado para o fluxo de caixa em determinada data ou período. O cuidadoso monitoramento do risco orçamentário no Brasil, e em geral em outros países, é uma tarefa importante do gestor de riscos da dívida pública. Ao observar a probabilidade de exceder o orçamento, o gestor da dívida pode antecipar ou evitar uma missão potencialmente árdua e demorada de apresentar ao Congresso um requerimento de créditos suplementares para honrar a dívida. Apesar de ser razoável imaginarmos que o risco de um requerimento desse tipo não ser aprovado é pequeno, uma possível exposição da dívida soberana a esse processo pode ser algo sensível e justifica um monitoramento adequado. 3.4 Risco do lado da demanda Definimos o risco do lado da demanda como o risco de mudanças repentinas na demanda por títulos do governo. Apesar de isso poder ocorrer em consequência de diversos motivos diferentes, o fator mais comum de mudanças abruptas de curto prazo na demanda por ativos governamentais é a taxa de juros. Crescentemente, devido a regulações prudenciais mais estritas ou a políticas internas de investimento, os investidores têm feito uso de medidas de exposição às taxas de juros para monitorar seu risco de perdas. No mercado de renda fixa, duas das medidas mais comuns são o Present Value of a Basis Point (PVBP) e o Value-at-Risk (VaR). O PVBP 24 expressa o quanto o valor da carteira mudaria dada uma variação de um ponto base (0,01%) nas taxas de juros. É similar ao conceito de duração, tendo a vantagem de também ser uma função do volume total da carteira. PVBP = P(i) - P(i + 0,01%) (2) em que: i – taxa de retorno (rendimento); P(i) – preço do título. 24 Também conhecido como Dolar Value of 1 Basis Point – DV01. 183 O Value-at-Risk (VaR) complementa o PVBP ao incorporar a volatilidade do preço do ativo. Enquanto o PVBP mede a sensibilidade absoluta a mudanças nas taxas de juros, o VaR sofistica nosso conjunto de informação ao incorporar a probabilidade de tais mudanças.25 , (3) em que: p – taxa de retorno (rendimento); w – vetor de pesos para os vários ativos na carteira; ∑ – matriz de variância/covariância de R retornos na carteira. VaR = P0.s p. 1,95 , (4) em que: P0 – preço inicial; 1,95 – equivalente a um nível de 95% de confiança. Uma parte significativa dos demandantes de ativos governamentais, especialmente no Brasil, está sujeita à observância de limites quanto à exposição ao risco de taxa de juros. Tal fato traz restrições ao gestor da dívida para a transferência de risco de taxa de juros ao mercado. Durante momentos de volatilidade, agravando tal situação, o VaR pode atingir níveis elevados e levar a operações de stop-loss por parte dos investidores. O efeito de tais mudanças na demanda pode ser desastroso à implantação de uma estratégia de dívida. É, portanto, papel do gestor de riscos da dívida pública monitorar esse risco. Nessa análise, é im- portante monitorar não apenas o risco da carteira atual, mas também o ritmo implícito de transferência de risco no futuro dado por determinada estratégia. Esse acompanhamento é especialmente importante naqueles países que estão em processo de aumentar o prazo de seus títulos e a participação de títulos prefixados. O Brasil encaixa-se nessa situação, e o Tesouro Nacional monitora ambos os indicadores, como ilustrado nos Gráficos 4 e 5. 25 Em uma economia que está em processo de estabilização é perfeitamente possível, por exemplo, que o PVBP esteja aumen- tando, em função de um volume ou duração maior dos títulos prefixados (ou ambos), e que, ao mesmo tempo, o VaR esteja se reduzindo (em consequência de uma diminuição mais acentuada na volatilidade). 184 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 4. Evolução do Valor em Risco Gráfico 5. Evolução do PVBP nominal e a preços de dezembro/2006 4 A composição ótima de longo prazo (benchmark) Esta seção destaca uma das funções principais do gestor de riscos da dívida pública, qual seja, o estabelecimento das metas de longo prazo que servirão como guia para as estratégias de dívida de curto e médio prazos. É interessante começarmos voltando aos primeiros princípios da gestão da dívida pública e lembrarmos que sob as hipóteses da Equivalência Ricardiana, como definidas em Barro (1974), a gestão da dívida pública seria irrelevante.26 Apesar de útil e meritória a investigação teórica da Equivalência Ricardiana, há evidências abundantes e um amplo consenso de que as fortes hipóteses por trás dela não se verificam na vida real. 26 Ao discutirmos metas de longo prazo e estratégias de dívida é importante esclarecer que elas fazem sentido do ponto de vista teórico. 185 Tais hipóteses são: i) agentes com horizonte de planejamento infinito (informação completa); ii) mercados completos; iii) impostos não distorcivos. O bastante razoável relaxamento dessas hipóteses torna relevante a gestão da dívida pública. Suavização da carga tributária, completamento do mercado, sinalização de políticas públicas, entre outros, são alguns dos objetivos da gestão da dívida pública declarados pelos diversos países.27 Haja vista ser relevante a gestão da dívida pública, a identificação da estrutura da dívida pública dese- jável no longo prazo torna-se uma questão fundamental a ser respondida para guiar as operações de curto e médio prazos da dívida. No intuito de melhor compreendermos o papel dessa referência de longo prazo para o gestor da dívida, poderíamos fazer uma analogia com a situação de um aventureiro no meio de uma floresta que está equi- pado com uma bússola e, portanto, sabe exatamente que direção seguir. O fato de ter a bússola em mãos e ter certeza da direção a seguir é o único modo pelo qual ele pode estar seguro de que seus próximos passos o levarão ao local desejado. Para o gestor de riscos, a composição ótima de longo prazo (benchmark) representa a direção que ele deseja seguir, e sua bússola é a ferramenta de que dispõe para formular e monitorar sua estratégia. A literatura sobre gestão da dívida pública provê algumas diretrizes acerca das características gerais da carteira de dívida pública. No entanto, no intuito de prover diretrizes mais específicas e quantitativas, diversos especialistas têm suscitado um debate que tem ganho atenção crescente entre os diversos DMOs. A procura de metodologias apropriadas para a elaboração e a determinação de um benchmark tornou-se um tópico importante na pauta de pesquisa de gestores da dívida em diversos países. Brasil, Canadá, Dinamarca, Portugal e Suécia são exemplos bem conhecidos. A contribuição de instituições multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional para esse debate também tem sido notória. Em sua publicação conjunta denominada Guidelines for public debt management (2001), essas duas instituições definem o benchmark como uma ferramenta poderosa para representar a estrutura de dívida que o governo gostaria de alcançar, baseado nas suas preferências de risco e custo esperado. Em geral, o benchmark é representado por um conjunto de indicadores de dívida relevantes, tais como composição, duração, perfil da dívida etc. A ideia é que ele consista em uma meta de longo prazo, represen- tando as preferências da sociedade. Em termos matemáticos, poderíamos enxergá-lo como um problema de otimização no qual o governo quer maximizar sua função utilidade, dadas algumas restrições.28 Alguns países tomam a decisão quanto à sua estrutura ótima de dívida (benchmark) baseados em análises bastante simples e hipóteses ad-hoc. Um gestor de dívida poderia concluir, por exemplo, baseado nas suas crenças sobre benefícios da diversificação, que a composição ideal da dívida deveria ser um mix de títulos nominais e indexados à inflação. A lógica por trás de tal raciocínio seria a de que uma carteira com esses ativos pode gerar um perfil de serviço da dívida mais estável sob choques recorrentes de demanda e oferta. 27 A literatura teórica sobre a relevância da gestão da dívida pública não está restrita ao relaxamento das hipóteses da Equivalência Ricardiana. Para o nosso propósito aqui, é suficiente justificar sua relevância. Lopes (2003) e Bonomo et al. (2003) oferecem breves resenhas da literatura. 28 Como a maioria dos países define o objetivo principal da gestão da dívida como a minimização dos custos de longo prazo su- jeita a níveis prudentes de risco (ver Guidelines for public debt management, 2001), a identificação da função objetivo e de suas restrições é direta. 186 Dívida Pública: a experiência brasileira Outros poderiam seguir a (desejada) direção de desenvolver indicadores de risco e investigar os trade-offs que eles geram. O cálculo de um conjunto relevante de indicadores de risco para algumas composições diferentes (hipotéticas) de dívida pode ser um modo eficiente de examinar os prós e os contras de distintas carteiras. Finalmente, poder-se-ia usar um arcabouço ainda mais analítico, construindo-se um modelo do qual a carteira ótima surgiria endogenamente. De fato, é difícil imaginarmos um modelo suprarracional capaz de considerar todos os objetivos e restrições da gestão da dívida pública e, por si só, fornecer a resposta a esse problema de composição ótima. Como mencionado anteriormente, Canadá, Dinamarca, Portugal, Suécia e Brasil são alguns exemplos de países que usam arcabouços mais analíticos para determinar seu benchmark. Cabral (2004) descreve brevemente como alguns países lidam com esse assunto.29 Portugal foi um dos primeiros países a desenvolver uma metodologia com essa finalidade. Granger (1999) e Matos (2001) ilustram o funcionamento do modelo português. Basicamente, é um modelo de simulação de fluxo de caixa, tendo como insumos simulações estocásticas das taxas de juros, diferentes estratégias de financiamento e cenários determinísticos para as outras variáveis econômicas, resultando em algumas carteiras “eficientes”. O modelo sueco também é baseado em fluxo de caixa, com processos autorregressivos para inflação, PIB, taxa de juros de longo prazo e taxa de câmbio, além de uma regra de Taylor para a taxa de juros de curto prazo. Com algumas hipóteses sobre a necessidade de financiamento, um conjunto de diferentes carteiras de dívida é avaliado, com medidas de custo nominal e real. Bergstrom e Holmlung (2000) descrevem o modelo com mais detalhes. A abordagem brasileira, como descrita originalmente em Cabral e Lopes (2004), é basicamente uma análise de fronteira eficiente em que custos e riscos são medidos em termos de relações dívida/PIB. Composições de estado estacionário são simuladas por diversos períodos, baseadas em cenários estocásticos e premissas sobre os preços dos ativos. Com algumas carteiras avaliadas em termos de custo e risco e com a matriz de correlação é possível desenhar a fronteira eficiente.30 Olhando para a fronteira eficiente, o gestor da dívida poderia escolher, tendo em vista seu apetite ao risco, o ponto (carteira) para representar o benchmark. 29 Outras boas referências para a experiência internacional são Guidelines for public debt management (2001) e Nars (1997). 30 É importante ressaltar que essa é uma fronteira eficiente do ponto de vista do emissor; diferente, portanto, daquela construída por um investidor. 187 Gráfico 6. Fronteira eficiente No modelo brasileiro, os cenários estocásticos podem ser gerados por dois modos diferentes e, até certo ponto, complementares. No primeiro, alguns modelos financeiros estocásticos são empregados, quais sejam, um modelo de Cox, Ingersoll e Ross (CIR) para as taxas de juros doméstica e externa, um processo browniano para os índices de preços e um modelo de Chan, Karolyi, Longstaff e Sanders (CKLS) para a taxa de câmbio real. Os resíduos são correlacionados usando-se a decomposição de Cholesky. A segunda metodologia faz uso de um modelo macroestrutural para descrever a evolução das principais variáveis econômicas (curvas IS e Phillips, uma regra de Taylor e equações para o comportamento da taxa de câmbio e do prêmio de risco).31 Gráfico 7. Simulações estocásticas 31 O Anexo 3 traz uma breve descrição do modelo atualmente utilizado pelo Tesouro Nacional. Cabral (2004), Cabral e Lopes (2005) e Costa, Silva e Baghdassarian (2004) trazem exemplos de implementação desse tipo de modelo. 188 Dívida Pública: a experiência brasileira Usando os modelos descritos acima, podemos realizar simulações de Monte Carlo e obter uma distribuição de relações dívida/PIB sobre um determinado horizonte de tempo para cada carteira (composição de dívida) considerada. A média e o desvio-padrão são extraídos das distribuições e usados como medidas de custo e risco, e as correlações são calculadas baseadas na simulação de carteiras com ativos puros e misturados, levando ao desenho da fronteira eficiente. Tendo provido uma visão geral das metodologias usadas na determinação do benchmark, voltamo-nos a alguns tópicos importantes que merecem atenção na condução desses exercícios. Em primeiro lugar, um modelo de benchmark deveria, idealmente, ser independente das condições de mercado correntes. Apesar de poder soar estranho à primeira vista, devemos ter em mente de que é essa separação dos objetivos de longo prazo das restrições táticas e circunstanciais que torna singular o uso de um benchmark. Além disso, uma modelagem de benchmark deve incorporar, na medida do possível, restrições do lado da demanda, ou seja, eleger uma composição ótima baseados somente em objetivos do lado da oferta, sem exami- narmos a demanda potencial por aquela carteira, seria uma decisão míope, com chances de sucesso reduzidas. Passando a aspectos mais gerais, a formalização do benchmark também é algo de fundamental rele- vância. De fato, se este é determinado, mas não está formalizado, pode se tornar inútil.32 Por formalização entendemos algum tipo de aprovação superior, pelo ministro ou pelo Congresso, que poderia delegar ao DMO o direito e o dever de perseguir tais objetivos. Além disso, um benchmark formalizado agrega transparência à gestão da dívida pública e garante algum grau de continuidade e consistência entre diferentes governos. O estabelecimento de um processo bem definido de governança é ainda outro ponto crucial, estando fora de nosso escopo a exploração em maior profundidade desse tema. Outro ponto crítico envolve o desenho de uma estratégia de transição (médio e longo prazos) até a composição ótima (benchmark). Não se trata de uma tarefa fácil, particularmente em países menos desen- volvidos com carteiras de dívida muito distantes de suas carteiras ótimas ou almejadas. Voltando para a lin- guagem matemática, tal transição envolveria um problema complexo de otimização, na tentativa de achar-se a estratégia que otimiza a trajetória entre as condições correntes e as metas de longo prazo. Ademais, no caso desses países, pode acontecer de a existência de muitas restrições de mercado simplificarem a escolha ao eliminar muitas estratégias possíveis. Como dissemos anteriormente, seria um pouco ingênuo pensarmos que a realidade pudesse ser re- plicada por um modelo analítico muito sofisticado, capaz de incorporar todos os objetivos e restrições do gerenciamento da dívida pública e capaz de gerar como solução a composição ótima da dívida. Certamente esse não é o caso. No entanto, o uso de modelos analíticos pode ser muito útil em dois aspectos, no mínimo. Primeiramente, evita-se o risco de se confiar exclusivamente na intuição (a ciência já demonstrou amplamente como a intuição pode ser enganosa). Em segundo lugar, o processo de elaboração e discussão acerca dos modelos pode tornar-se um eficiente processo de capacitação, dado que conceitos relevantes e debates sobre trade-offs envolvidos fazem parte desse debate. Em vez de serem consideradas rivais, a modelagem analítica e a expertise subjetiva dos gestores da dívida devem ser vistas como recursos complementares. Além de ser uma ferramenta importante no planejamento estratégico, o benchmark também pode prover o gestor de riscos de um modo de medir a performance da gestão, comparando a carteira corrente 32 Obviamente o mesmo argumento se aplica às estratégias de médio e longo prazos. 189 com a carteira ótima (desejada). Se essas duas carteiras forem muito diferentes, carteiras intermediárias de benchmark podem ser escolhidas para a comparação. É importante ressaltar que algum grau de liberdade deve ser dado à condução da estratégia de financiamento no dia-a-dia, papel tipicamente do front-office para ações táticas de curto prazo, dado que as condições de mercado podem diferir dos cenários usados para o desenho da estratégia de médio prazo. 4.1 Gestão integrada de ativos e passivos (ALM)33 Em geral, o benchmark é elaborado sob uma visão de gestão integrada de ativos e passivos – ALM. Faz todo o sentido para o governo, ao avaliar seus riscos, não gerenciar seus passivos sem levar em conta a estrutura e as características de seus ativos. Os ativos financeiros do governo podem variar significativamente de um país para o outro, mas em geral têm algo em comum: seu maior ativo é a capacidade, ou o direito, de cobrar impostos. Dessa forma, as características dos superávits primários futuros torna-se um fator-chave para a determinação da estrutura ótima da dívida, ou seja, do benchmark. De fato, não há consenso na literatura sobre como conduzir um ALM na gestão da dívida pública, e as diferenças significativas nos balanços de cada governo contribuem para essa lacuna. No entanto, é difícil discordarmos do argumento de que não faz sentido gerenciar os passivos sem levar em consideração os ativos daquele ente. Dessa forma, toda a análise de risco que expusemos anteriormente, assim como a elaboração do benchmark, poderia ser baseada em uma carteira de ativos e passivos. Existem alguns debates importantes, que extrapolam o escopo deste capítulo, sobre que ativos soberanos deveriam ser levados em conta em uma análise desse tipo. Além disso, o escopo da análise também é controverso. Assim, questões como a inclusão ou não da base monetária e de reservas naturais, por exemplo, e a abrangência mais relevante, governo central, geral ou setor público, dentre outras, permanecem passíveis de discussão. Parece-nos não haver uma resposta única para a variedade e a diversidade de países. É mais provável que a realidade de cada economia seja suficientemente relevante para requerer uma customização da abordagem de ALM. Já há alguns anos o Tesouro Nacional tem seu arcabouço de risco e gestão da dívida pública subsidiado por uma análise de ALM. Os principais ativos financeiros do governo são levados em consideração para a cons- trução, o acompanhamento e a projeção de uma série de indicadores de risco baseados em estoques e fluxos financeiros do governo. Do mesmo modo, o modelo analítico de benchmark atualmente em uso, tal como brevemente descrito anteriormente, leva em consideração os principais ativos financeiros do governo e suas características nas simulações das diversas carteiras e suas implicações em termos de custo e risco. 4.2 O gestor de riscos e o planejamento estratégico da dívida Como ressaltamos no capítulo anterior, outra responsabilidade importante do gestor de riscos é sua participação no planejamento estratégico da dívida, que envolve a elaboração, o monitoramento e a análise dos trade-offs entre diferentes estratégias de refinanciamento que podem ser implementadas pelo DMO. O processo de elaboração de uma estratégia de dívida é uma responsabilidade compartilhada entre diferentes áreas no DMO, como o front e middle-offices, por exemplo. 33 Do inglês, Assets and Liabilities Management – ALM. 190 Dívida Pública: a experiência brasileira Uma das atribuições do gestor de riscos é identificar possíveis riscos que envolvam a implementação da estratégia de dívida e definir metas desejáveis para os indicadores de dívida, tais como estoque, prazo médio e outros. Usualmente, essas metas são estabelecidas para o final do ano34 (planejamento de curto prazo) e para alguns anos no futuro (planejamento de longo prazo). Outra atribuição é monitorar a implementação da estratégia para validá-la e, quando necessário, propor medidas corretivas. Para evitar inconsistências entre o planejamento da estratégia e sua implementação, algu- mas vezes são necessárias mudanças, oriundas mais frequentemente de variações significativas não previstas nas condições de mercado. Modificações relevantes nos cenários em geral afetam os custos e os riscos de diferentes estratégias potenciais, podendo tornar a estratégia original subótima. Anteriormente, apresentamos alguns modos de determinar os objetivos de longo prazo para a dívida pública (benchmark). Nesta subseção,35 sumarizamos a discussão já explorada no capítulo anterior de como atingir esses objetivos. Em outras palavras, abordamos o desenho da estratégia de transição e seu monitoramento. Como dissemos anteriormente e já explorado no capítulo anterior, uma estratégia de transição deve considerar não apenas os objetivos de longo prazo, mas também as restrições de curto prazo. Silva (2005) divide esse processo de desenho, implementação e monitoramento em oito estágios, quais sejam: 1º definição de objetivos de longo prazo e diretrizes; 2º construção de cenários macroeconômicos; 3º discussão preliminar de cenários e restrições; 4º desenho da estratégia de transição e avaliação preliminar de risco; 5º definição das metas: resultados esperados; 6º análise de oportunidades e desafios para os anos vindouros; 7º execução e planejamento tático da dívida (curto prazo); 8º monitoramento e implementação da estratégia de transição (Plano Anual de Financiamento). Apesar de participar de todas essas oito etapas, o papel do gestor de riscos é especialmente impor- tante em três delas: definição dos objetivos de longo prazo (benchmark), desenho da estratégia de transição (incluindo a definição das metas para os indicadores de dívida) e monitoramento da implementação da estratégia, atividades exploradas no capítulo anterior. 5 Funções periféricas do gestor de riscos da dívida pública Nesta seção discutimos o papel importante que gestores de risco da dívida pública podem exercer pro- vendo exercícios mais sofisticados e acurados de dinâmica de dívida e sustentabilidade. Mais especificamente, 34 O Tesouro Nacional publica o seu Plano Anual de Financiamento (PAF), com a estrutura corrente da dívida e as metas para o final do ano. 35 Aqui tratamos apenas de relacionar o conteúdo desta seção (benchmark) com a discussão sobre o planejamento estratégico explorada no capítulo anterior. Mais detalhes em Silva (2005) e Baghdassarian (2003). 191 ilustramos por meio de um exercício simples como o gestor de riscos, utilizando-se de suas habilidades desen- volvidas para conduzir análises de risco e de sua informação privilegiada quanto à estratégia de refinanciamento da dívida, pode agregar valor às análises de sustentabilidade da dívida comumente elaboradas. A questão da sustentabilidade da dívida sempre foi um assunto de destacada relevância para os formuladores de política econômica, os investidores e os acadêmicos. Apesar de as principais variáveis que impactam a trajetória da dívida serem bastante conhecidas, as análises convencionais de sustentabilidade da dívida, tipicamente baseadas em estimativas determinísticas, mostram-se limitadas em seu escopo. Entre suas principais limitações está a não incorporação de incerteza ao modelo, levando a indicadores esperados de dívida que carecem de uma medida de dispersão potencial (erro). Recentemente, temos visto amplos esforços no sentido do desenvolvimento de técnicas de modelagem mais sofisticadas para análises de sustentabilidade da dívida.36 Parte desse interesse crescente está certamente relacionado a uma maior atenção aos riscos associados a choques macroeconômicos e ao uso crescente de análises de sustentabilidade pelos formuladores de política econômica para definir metas fiscais visando a um controle efetivo sobre o nível de endividamento público. O gestor de riscos da dívida pública pode agregar valor a esse debate aprimorando a modelagem dos exercícios de sustentabilidade da dívida. As ferramentas e os modelos que ele usa para medir outros tipos de riscos (como o Cost-at-Risk, por exemplo) podem, com algumas adaptações, ser empregados para gerar trajetórias estocásticas de dinâmica da dívida. Dessa forma, pode-se complementar os indicadores esperados de dívida comumente originados de cenários determinísticos com uma distribuição completa de probabilidades de tais indicadores. A agregação de incerteza nas análises de sustentabilidade da dívida pode aprimorar o conjunto de conclusões que poder-se-ia extrair desse tipo de exercício, mas pode não ser condição suficiente para garantir estimativas mais precisas. Em geral, avaliações de sustentabilidade debruçam-se sobre vários períodos à frente (comumente cinco a dez anos). Durante esse período, a composição e o perfil da dívida podem mudar substancialmente e, consequentemente, sua sensibilidade a diferentes cenários e tipos de choques macroeconômicos. Torna-se relevante, portanto, ao conduzir tais análises, utilizar premissas acerca da estratégia de refinancia- mento. Nesse quesito, a posição privilegiada do gestor de riscos da dívida pública é única. Sendo um participante ativo no processo de formulação e monitoramento da implantação da estratégia de dívida, ele se torna detentor de informação privilegiada para conduzir testes de sustentabilidade, incluindo a estratégia de refinanciamento. A importância de incluir-se a estratégia de refinanciamento é ainda maior em países que têm perfis de dívida instáveis, que estão promovendo mudanças significativas no perfil da dívida ou que têm uma proporção alta da dívida vencendo no curto prazo. Somemos a isso o fato de que é exatamente nesses países que os testes de sustentabilidade são mais relevantes. Para ilustrarmos as vantagens da inclusão de incerteza e da estratégia de refinanciamento em análises de sustentabilidade da dívida, conduzimos um exercício simples, usando dados hipotéticos. A simplicidade analítica desse exercício permite-nos abstrair as complexidades metodológicas inerentes a esse tipo de exercício e focar nos potenciais benefícios para a formulação de políticas que a agregação desses dois fatores pode gerar. 36 Veja Barnhill (2003), Xu e Guezzi (2002), Costa, Silva e Baghdassarian (2004). 192 Dívida Pública: a experiência brasileira 5.1 Aprimorando análises de sustentabilidade da dívida – agregando incerteza e a estratégia de refinanciamento Começamos com algumas premissas básicas para os principais determinantes da dinâmica da dívida para um período de dez anos, quais sejam: taxas nominais de juros, inflação, crescimento do PIB e superávit primário.37 Tomando como ponto de partida uma relação dívida/PIB de 51,70% totalmente composta de instrumentos de taxa flutuante, determinamos a trajetória dessa relação ao longo dos dez anos seguintes. Esse cenário determinístico nos permite conduzir o mais simples, embora mais usual, teste de sustentabilidade. O Gráfico 8 mostra a trajetória esperada para a relação dívida/PIB. Gráfico 8. Trajetória esperada para a relação dívida/PIB Essa análise é complementada, então, pela geração de trajetórias estocásticas para todas as variáveis, ge- rando uma distribuição das relações dívida/PIB para os diferentes horizontes nos quais conduzimos os testes. 37 Ver o Anexo 2 para detalhes. 193 Gráfico 9. Distribuição das relações dívida/PIB em diferentes horizontes Tabela 2. Resultados determinísticos versus estocásticos (100% dívida flutuante) * DL = Dívida/PIB. Note que podemos calibrar esses modelos para que reflitam os valores esperados de um cenário base. Ambas as análises nos levam a indicadores esperados (médios) similares, como explícito na Tabela 1, mas o conjunto de informação disponível para os formuladores de política econômica torna-se mais amplo com a incorporação dos cenários estocásticos. O tomador de decisão responsável por deliberar as metas fiscais, por exemplo, pode entender melhor a margem potencial de erro que tais metas embutem em termos de dinâmica da dívida. Em outras palavras, fixando um superávit primário de 4,25% do PIB ele esperaria, baseado somente no seu cenário determinístico, que a relação dívida/PIB caísse para 41,53% em cinco anos e para 28,68% em dez anos. Paralelamente, os modelos estocásticos podem ajudá-lo a avaliar o risco de que essas relações possam se desviar de seus valores esperados. Esse exercício informaria o tomador de decisão, por exemplo, que há uma probabilidade de 95% de que a relação dívida/PIB não exceda 57,86% em dez anos. 194 Dívida Pública: a experiência brasileira Como mencionado anteriormente, outra dimensão importante nesses exercícios de sustentabilidade é a inclusão de “hipóteses” sobre a estratégia de refinanciamento. O fato de ter em mãos a real estratégia de dívida que o gestor pretende implantar se constitui em uma importante vantagem comparativa para o gestor de riscos da dívida pública. Os gráficos a seguir ilustram os resultados dos testes de sustentabilidade da dívida usando os mesmos cenários e simulações estocásticas dos exercícios anteriores, mas incluindo adicionalmente a estratégia de refinanciamento focada em aumentar a parcela de dívida prefixada de longo prazo. Tabela 3. Resultados determinísticos versus estocásticos (incluindo a estratégia de refinanciamento) * DL = Dívida/PIB. Gráfico 10. Trajetória esperada da relação dívida/PIB incluindo a estratégia de refinanciamen- to focada em aumentar a parcela de dívida prefixada de longo prazo 195 Tabela 4. Simulações incluindo e não incluindo a estratégia de refinanciamento (abordagem determinística) Gráfico 11. Distribuição da relação dívida/PIB em diferentes horizontes incluindo a estratégia de refinanciamento focada em aumentar a parcela de dívida prefixada de longo prazo 196 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 5. Simulações incluindo e não incluindo a estratégia de refinanciamento (abordagem estocástica) Lembremos que, no nosso exercício, a dívida original é 100% composta de instrumentos de taxa flutuante (com mudanças mensais de taxa de juros). A estratégia de refinanciamento, ao contemplar instru- mentos prefixados de dez anos,38 gera um custo maior advindo do prêmio de risco de taxa de juros cobrado pelos demandantes contraposto a uma vulnerabilidade menor da dívida a movimentos na taxa de juros. Os resultados anteriores refletem os trade-offs em termos de custos e riscos envolvidos na estratégia. Notemos que a inclusão da estratégia de refinanciamento na análise fez com que o valor esperado (média) para a relação dívida/PIB em dez anos subisse de 28,68% para 32,41%. Por sua vez, a nova distribuição de relações dívida/PIB é bem menos dispersa, refletindo a redução na exposição a choques (risco). A introdução de instrumentos prefixados fez com que a dispersão relativa (razão entre um desvio-padrão e a média) dimi- nuísse de 51,91% para 16,99%. Poder-se-ia argumentar que o uso de modelos estocásticos com o intuito de complementar exercícios mais simples baseados em cenários determinísticos poderia levar a conclusões de mais difícil compreensão ou interpretação e muito dependentes da calibração do modelo. Nessa linha, também poderia surgir o argumento de que o uso de alguns cenários determinísticos alternativos poderia levar a uma análise mais intuitiva da sensibilidade da dívida a mudanças em seus principais determinantes. Certos de não ser nossa intenção minimizar a importância de análises mais simples, o exercício ilus- trativo que apresentamos nesta seção traz alguma luz sobre como o gestor de riscos da dívida pública pode complementar e ampliar o conjunto de informações do tomador de decisões. Apesar da relativa complexidade na elaboração de modelos de gerenciamento de risco, a apresentação de seus resultados de um modo de fácil compreensão para os tomadores de decisão não parece ser uma tarefa difícil, tendo-se tornado comum, particularmente no setor financeiro. 38 A estratégia de refinanciamento assume que 1% da parcela flutuante vence e é trocada mensalmente pelos instru- mentos prefixados de dez anos. Ao final desse período, obteremos uma composição de 100% da dívida em instrumentos prefixados. 197 6 Considerações finais O objetivo deste capítulo foi descrever o processo de gerenciamento de riscos da dívida pública, apontando as principais atribuições e contribuições do gestor de riscos. Dessa forma, optamos por tentar prover uma visão geral, em vez de cobrir um ou outro tópico em detalhes, tal como técnicas de modelagem de risco. Obviamente, a tarefa de mapear todas as atribuições do gestor de riscos da dívida pública é ambiciosa, sujeita a lacunas e críticas. Alguém sempre poderia lembrar de tópicos relevantes que foram deixados de fora. De fato, com a finalidade de cobrir o principal sem sermos exageradamente extensos, alguns assuntos relevantes, tais como o risco de passivos contingentes ou o risco de crédito, não foram abordados.39 Apesar dessas limitações, acreditamos que o capítulo pode servir como um guia útil àqueles que querem ter maior familiaridade com a atividade de gerenciamento de riscos da dívida pública, assim como ilustrar de forma didática e ampla como o assunto é tratado pelo Tesouro Nacional brasileiro. Ademais, em um contexto no qual DMOs de todo o mundo têm despendido atenção crescente em modernizar suas práticas de gestão de riscos, ele pode servir como um ponto de partida, haja vista dar um panorama geral das principais ativida- des envolvidas. Finalmente, também pode ser útil em chamar a atenção dos tomadores de decisão acerca da dívida pública em como explorar melhor as habilidades e os exercícios que podem ser providos pelos gestores de risco da dívida. Referências BAGHDASSARIAN, William. Avaliação da sustentabilidade fiscal sob incerteza. Dissertação de mestra- do. 2006. ______. Indicadores estocásticos de risco no processo de planejamento estratégico da dívida pública. Finanças Públicas: VIII Prêmio Tesouro Nacional – 2003. Coletânea de Monografias. Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 2004. BAGHDASSARIAN, W.; DA COSTA, C. E.; SILVA, A. C. D. Assessing three models for the analysis of debt sustainability. Tesouro Nacional, 2004. BARRO, Robert J. 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Brasília: Tesouro Nacional, 2005. 39 A abordagem de contingent claims, explorada pelo FMI, veja Gapen e Gray (2005) e Barnhill (2003), é metodologia interessante a ser explorada. 198 Dívida Pública: a experiência brasileira DANMARK NATIONAL BANK. Danish government borrowing and debt 2001. 2001. GAPEN, M. T.; GRAY, D. F.; LIM, C. H.; XIAO, Y. Measuring and analysing sovereign risk with contingent claims. Working Paper, april 2005. International Monetary Fund (IMF). GRANGER, Rita. Benchmarking for public debt management: the case of Portugal. Seção Plenária 4. Traba- lho apresentado no Second Sovereign Debt Management Forum, World Bank, 1999. GUIDELINES FOR PUBLIC DEBT MANAGEMENT. Accompanying document and selected case studies. Inter- national Monetary Fund and The World Bank, 2003. ______. International Monetary Fund and The World Bank, 2001. LOPES, M. Composição ótima para a dívida pública: uma análise macroestrutural. Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília, 2003. MEDEIROS, Otavio L.; CABRAL, Rodrigo S. V.; BAGHDASSARIAN, Wiliam; ALMEIDA, Mario Augusto. Public debt strategic planning and benchmark composition. Paper presented in Inter-American Development Bank, October 2005. NARS, K. Excellence in Debt Management: the strategies of leading international borrowers. Euromoney Publications, 1997. MENDOZA, E.; OVIEDO, P. Public debt sustainability under uncertainty. Inter-American Development Bank, 2003. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Secretaria do Tesouro Nacional. Plano Anual de Financiamento, janeiro de 2006. OECD. OECD Studies in Risk Management. OECD, 2006. SILVA, Anderson C. Strategic planning of the brazilian public debt: the process to design a debt manage- ment strategy. Paper presented in The World Bank, December 2005. XU, D.; GUEZZI, P. From fundamentals to spreads: a fair spread model for High Yield EM Sovereigns. Global Markets Research – Deutsche Bank, May 2002. 199 Anexo 1. O sistema Gerir O sistema Gerir é um importante instrumento na gestão da dívida pública brasileira, já que permite aos gestores avaliar diferentes estratégias e seus trade-offs envolvidos. Além disso, os provê de ferramentas sofisticadas para analisar a dívida em um ambiente probabilístico (CaR, CfaR, BaR e VaR). É um sistema muito flexível em termos de simulação de estratégias (emissões, buy-backs, trocas etc.), assim como bastante poderoso na geração de indicadores gerenciais (estoque, prazo médio do estoque, prazo médio de novas emissões, perfil de maturação, duração, composição etc.). Seu desenvolvimento começou em 2001 e foi finalizado em 2003, tornando-se parte relevante no pro- cesso de desenho de estratégias. Nos anos subsequentes, sofreu alguns aprimoramentos para torná-lo mais acessível aos usuários finais e permitir novas funcionalidades. As figuras a seguir apresentam algumas telas do sistema para dar uma ideia de sua flexibilidade e aplicação. Figura 1. Gerir – tela inicial 200 Dívida Pública: a experiência brasileira Figura 2. Gerir – entrada de cenários Figura 3. Gerir – seleção da carteira 201 Figura 4. Gerir – estratégias de emissão Figura 5. Gerir – produtos gerados 202 Dívida Pública: a experiência brasileira Figura 6. Gerir – perfil de maturação Figura 7. Gerir – liquidez, prazo médio e sensibilidade à taxa de juros 203 Figura 8. Gerir – modelos estocásticos Anexo 2. Simulações da dívida pública: exercício da seção 5 Geralmente, os exercícios de sustentabilidade consideram cenários macroeconômicos determinísticos e algumas hipóteses acerca do superávit primário e senhoriagem. Entretanto, há, no mínimo, dois outros aspectos que deveriam ser considerados para se obter estimativas mais acuradas. O primeiro diz respeito à incerteza acerca dos cenários; e o segundo, quanto à composição da dívida pública. Apesar de termos apresentado uma breve discussão sobre esses tópicos na seção 3, não discutimos aspectos técnicos com respeito ao modelo. Assim, o objetivo deste anexo é apresentar a metodologia, as hipóteses e os parâmetros usados na seção 3 para ilustrar as consequências da incerteza e do processo de refinanciamento sobre os exercícios de sustentabilidade. Basicamente, fazemos quatro simulações. A primeira pode ser considerada cenário de referência, já que não engloba incerteza nem estratégia de refinanciamento. No segundo exercício, inserimos incerteza, mas ainda não contemplamos uma estratégia de refinanciamento. Usamos um cenário determinístico para avaliar o impacto da estratégia de refinanciamento na terceira simulação. Finalmente, o quarto exercício considera não apenas a estratégia de refinanciamento, mas também a incerteza. Antes de detalharmos os exercícios, é importante apresentar o arcabouço geral usado para incluir a incerteza nas simulações. Basicamente, utilizamos simulações de Monte Carlo para gerar milhares de cenários macroeconômicos. O modelo CIR (Cox-Ingersoll-Ross) foi utilizado para gerar os cenários de taxa de juros e o Movimento Browniano Geométrico40 para o PIB e a inflação. 40 Ver Baghdassarian (2006) para mais detalhes sobre esses modelos. 204 Dívida Pública: a experiência brasileira Além desses modelos, usamos o modelo tradicional de Blanchard para simular a evolução da dívida, como a equação a seguir ilustra: , (9) em que: dt – dívida líquida em t, como proporção do PIB; r – taxa de juros real; n – taxa de crescimento real do PIB; tt – impostos, como proporção do PIB; gt – despesas, como proporção do PIB; Mt – base monetária em t; pt – nível corrente de preços; PIB – produto interno bruto. Um ponto de destaque é que todos os modelos foram calibrados para refletir expectativas de longo prazo e não níveis correntes. Se tivéssemos adotado níveis correntes, outras discussões periféricas provavel- mente teriam surgido. O primeiro exercício considera uma abordagem determinística para a geração de cenários e mantém uma composição de 100% da dívida em títulos com taxa flutuante. Além disso, tem como hipóteses um superávit primário de 4,25% do PIB, inflação anual em torno de 3%, taxa de juros nominal em torno de 11% a.a. e nível inicial da relação dívida líquida/PIB em 51,7%. Com esses parâmetros, traçamos a evolução da dívida líquida para os próximos dez anos. Uma hipótese relevante é que toda a dívida com taxas flutuantes vincenda é refinanciada com dívida com taxas flutuantes também. O segundo exercício é muito similar ao primeiro, mas em vez de um cenário determinístico, utilizamos mil diferentes cenários para analisar a incerteza em torno das conclusões da primeira simulação. A Tabela 7 apresenta a evolução da dívida líquida tanto no caso determinístico como no caso estocástico. Neste último caso, usamos a média e o desvio-padrão para expressar os resultados. 205 Tabela 6. Cenários determinísticos versus estocásticos (sem estratégia de refinanciamento) Além da Tabela 7, os Gráficos 15 e 16 mostram a evolução mensal do crescimento nominal do PIB e da taxa de juros nominal no ambiente estocástico (em termos médios). Gráfico 12. Crescimento nominal do PIB 206 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 13. Evolução da taxa de juros nominal No terceiro e no quarto exercícios, em vez de usarmos uma carteira fixa (100% de dívida flutuante), consideramos o efeito do refinanciamento sobre a evolução da dívida líquida. Novamente, há uma abordagem determinística e outra estocástica para avaliar os resultados. Utilizamos as mesmas hipóteses macroeconômicas do primeiro exercício, mas adotamos uma estratégia de mudança na composição da dívida, com a parcela prefixada crescendo 1% ao mês. A Tabela 8 mostra a evolução da dívida líquida nessa simulação. Tabela 7. Cenários determinísticos versus estocásticos (com estratégia de refinanciamento) Como esperado, a estratégia que considera apenas dívida flutuante é menos custosa que aquela com títulos prefixados. Se considerarmos dois desvios-padrão, enquanto a estratégia com prefixados pode levar a dívida a valores próximos de 43,5% do PIB, no caso da estratégia apenas com dívida flutuante esse valor pode chegar a 57,9%. Assim, dependendo da aversão ao risco, 2,8% não é caro para proteger a dívida contra um potencial aumento de quase 14% do PIB. 207 Anexo 3. Um benchmark para a dívida pública em um contexto de ALM Nos últimos anos, o Tesouro Nacional brasileiro vem trabalhando em um arcabouço analítico de ALM para analisar e identificar qual deveria ser a composição almejada da dívida pública no longo prazo, o cha- mado benchmark. Como dito anteriormente, esse tópico foi alvo de crescente atenção nos últimos anos por parte dos governos, dos organismos multilaterais e acadêmicos. No entanto, não há consenso na literatura sobre a metodologia apropriada. Recentemente, o Tesouro brasileiro empenhou um grande esforço para construir um arcabouço de gerenciamento de riscos no estado da arte e para desenvolver modelos analíticos que subsidiassem a de- finição de um benchmark para a dívida pública. Tais modelos constituem-se em ferramenta importante nas mãos dos tomadores de decisão, tornando possível determinar a estrutura de dívida desejada pelo governo, baseada nas suas preferências de custo e risco. Em resumo, o benchmark é uma estrutura ótima de longo prazo usada para guiar as estratégias de financiamento de curto e médio prazos. É um importante instrumento de gerenciamento de riscos e plane- jamento estratégico. Em um estado estacionário, indica composições eficientes de dívida do ponto de vista do trade-off entre custo e risco. Baseado nas informações geradas pelo modelo, o gestor da dívida é capaz também de avaliar a performance das operações de financiamento, incluindo tanto as novas emissões quanto aquelas exclusivas para gerenciamento de risco. 1 Notas metodológicas Uma primeira discussão importante diz respeito ao conceito apropriado de dívida para se trabalhar em um contexto de ALM. O Tesouro Nacional, de fato, tem controle direto sobre a Dívida Pública Federal, que engloba toda a dívida mobiliária emitida pelo Tesouro domesticamente e no mercado internacional, assim como toda a dívida contratual do governo federal. No entanto, o indicador mais usado por analistas e investidores é a razão entre a Dívida Líquida do Setor Público e o PIB (DLSP/PIB). Esse é o conceito mais abrangente de dívida, já que compreende todo o endividamento líquido do setor público, englobando o governo federal (incluindo o INSS), o Banco Central, os governos estaduais e municipais e as empresas estatais dependentes. O modelo de benchmark brasileiro considera a razão DLSP/PIB como o conceito mais relevante. Essa visão é baseada na ideia de que em uma análise intertemporal da restrição orçamentária do governo todos os ativos e passivos governamentais devem ser levados em conta para se avaliar sua situação fiscal. Portanto, o modelo se insere em um contexto de ALM.41 Finalmente, o modelo de benchmark pressupõe que a economia já esteja em estado estacionário, o que significa que todas as variáveis relevantes estão em seus valores de equilíbrio de longo prazo, o que parece ser coerente com a busca de uma composição ótima, ideal, de longo prazo, a ser perseguida. Nosso cenário estacionário compreende as seguintes características: ambiente econômico estável, reduzida vulnerabilidade fiscal, grau de investimento, taxas de juros domésticas compatíveis com níveis internacionais, inflação sob controle e crescimento econômico sustentável. Espera-se que esse cenário, de modo completo, seja atingido nos próximos anos, de forma que a análise ocorresse desse ponto em diante. 41 De fato, a maioria dos analistas econômicos e participantes de mercado considera a relação DLSP/PIB o indicador mais relevante de sustentabilidade da dívida, seguidos por organismos internacionais e agências de rating. 208 Dívida Pública: a experiência brasileira 2 O modelo estocástico 2.1 Cenários O custo do carregamento da dívida é determinado pela evolução dos seus indicadores, isto é, as diferentes taxas de juros, câmbio e inflação. Dada nossa abordagem financeira estocástica, cada variável relevante é determinada por um processo estocástico específico, sendo descritos a seguir. Um modelo CIR42 é usado para a taxa de juros de curto prazo (Selic), pertencendo à classe de modelos de equilíbrio de um fator. Em outras palavras, o processo (neutro ao risco) da taxa de juros pode ser escrito como: (1) em que: _ taxa de juros (Selic) no instante t; _ parâmetro da velocidade de reversão à média; _ média da taxa de juros de longo prazo; _ volatilidade da taxa de juros; _ processo de Wiener. O índice de preços segue um movimento browniano geométrico: (2) em que: _ índice de preços no instante t; _ taxa média de crescimento do índice de preços; _ volatilidade do índice de preços; _ processo de Wiener. Para a taxa de câmbio real, adotamos um modelo CKLS43 com o expoente da taxa de câmbio no termo de volatilidade sendo igual a um. Tal processo é descrito como: (3) 42 Modelo Cox-Ingersoll-Ross. Ver Hull (1998). 43 O modelo CKLS (Chan-Karolyi-Longstaff-Sanders) é uma generalização do modelo CIR. 209 em que: _ taxa de câmbio real no instante t; _ velocidade de reversão à média; _ média de longo prazo da taxa de câmbio real; _ volatilidade da taxa de câmbio real; _ processo de Wiener. O custo de carregamento da dívida cambial, no entanto, depende não da taxa real, mas sim da taxa nominal de câmbio. Entretanto, é possível obter a taxa nominal da taxa real desde que tenhamos os índices de preço doméstico e externo. O primeiro nós já temos; quanto ao índice de preços externo, obtemos do seguinte processo determinístico: (4) em que: _ índice de preços externo no instante t; _ taxa de crescimento do índice de preços externo. A taxa de câmbio nominal pode, por definição, ser calculada como: (5) Aplicando o Lema de Itô a esta última equação e utilizando o processo de difusão da taxa de câmbio real e os índices de preço interno e externo, podemos obter o processo da taxa de câmbio nominal. Cada um dos três processos primitivos (taxa de juros, câmbio real e inflação) tem um termo estocástico caracterizado por um processo de Wiener. No entanto, na prática, essas variáveis são correlacionadas. As relações econômicas entre essas variáveis tornaria difícil, por exemplo, imaginarmos uma situação em que todas elas aumentam de valor simultaneamente ao longo do tempo. Dessa forma, no intuito de acrescentar alguma consistência macroeconômica ao modelo, é razoável postularmos alguma estrutura de correlação entre elas, e fazemos isso aplicando o método de decomposição de Cholesky para criar números (pseudo) aleatórios correlacionados. 2.2 Preço dos títulos O custo de carregamento da dívida depende do custo de emissão de cada instrumento. Consideramos, segundo suas características de remuneração, quatro tipos de instrumentos, atualmente utilizados pelo Tesouro brasileiro: a taxa prefixada de emissão, no caso das LTNs e NTN-Fs, o cupom de juros adicionado à inflação, 210 Dívida Pública: a experiência brasileira no caso das NTN-Bs, a taxa Selic no caso das LFTs (taxa flutuante) e o cupom de juros adicionado à taxa de variação cambial no caso dos títulos externos. As LFTs, títulos flutuantes, pagam exatamente a taxa de juros overnight composta sobre o período do título. Utilizamos a hipótese de que ela é sempre vendida ao par, ou seja, a um preço igual ao seu valor de face. Assim, seu custo ex-post será a taxa de juros composta no período. Como as LTNs/NTN-Fs são títulos prefixados, seu custo de carregamento será obviamente a taxa às quais foram emitidos. O preço do título prefixado é calculado de acordo com o modelo CIR, usando a fórmula da equação (7) a seguir: (7) em que: O é conhecido como parâmetro de prêmio de risco e sua função aqui é ajustar a curva de juros do modelo àquela do estado estacionário. Teoricamente, esse parâmetro é essencial para uma precificação neutra ao risco. O preço dos títulos indexados à inflação e ao câmbio é uma função dos títulos prefixados de prazo equivalente. No primeiro caso, o cupom de uma emissão doméstica de um título indexado à inflação (Cinflação) corresponde à taxa de um título prefixado de maturidade equivalente ajustada para descontar a inflação esperada, como podemos ver na relação seguinte: (8) 211 De modo semelhante, o cupom de um título indexado ao câmbio (CFX) corresponde à taxa de um título de maturidade semelhante ajustado pela variação esperada da taxa de câmbio ( ): (9) Além da inflação esperada ou da variação esperada da taxa de câmbio, o preço de tais títulos é ainda ajustado por um prêmio de risco. Tal prêmio representa quanto a taxa de um título indexado à inflação ou ao câmbio deve ser menor relativamente a um prefixado de maturidade equivalente. Em outras palavras, cada prêmio representa a redução aplicada à taxa prefixada em reais para obter a taxa prefixada de uma emissão externa ou, alternativamente, o cupom de uma emissão indexada a preços, excluídas as variações esperadas de inflação e câmbio. Esses prêmios são inseridos no modelo por meio do procedimento de Nelson-Siegel, o qual associa um prêmio (P) ao prazo (T) dados os parâmetros b0, b1, b2 e k, como na fórmula abaixo: (10) No caso dos títulos indexados a preços, faz sentido considerar que os prefixados pagam um prêmio sobre eles, já que o investidor que adquire tais títulos está protegido contra a inflação esperada. Quanto aos títulos externos, também é razoável conceber um prêmio positivo teórico dos títulos prefixados em reais em relação aos prefixados em dólares ou euros, já que o investidor terá proteção contra a volatilidade das flutuações no preço em reais. A aplicação do procedimento de Nelson-Siegel é mais bem entendida ao se analisarem as curvas de juros externas, resultantes da curva doméstica prefixada menos os prêmios de Nelson-Siegel e as variações esperadas na taxa de câmbio. Da mesma forma, a curva de cupom de inflação é computada como a curva prefixada menos a inflação esperada e o prêmio de Nelson-Siegel. Gráfico 14. Prêmios de Nelson-Siegel 212 Dívida Pública: a experiência brasileira Vimos, portanto, como o modelo gera a evolução das principais variáveis macroeconômicas (taxa de juros, inflação e câmbio), assim como o preço de emissão de cada tipo de título. É possível agora derivar a dinâmica da dívida e calcular o custo de carregamento para uma dada composição de dívida qualquer. 2.3 Custo de carregamento da dívida Como assumimos por hipótese que as LFTs são vendidas ao par, seu custom de carregamento é sim- plesmente a taxa Selic no período: (11) O custo de carregamento das LTNs/NTN-Fs em cada período é uma média ponderada dos custos de emissão de todos os prefixados que estão no estoque da dívida. É computado como: (12) em que é o percentual em t de dívida prefixada emitida em (t – s) e é o custo de emissão do prefixado em (t – s).44 Para os títulos indexados a câmbio, o custo de carregamento é composto pela evolução da taxa de câmbio nominal e pela taxa ponderada do cupom daqueles títulos que estão no estoque. Essa média dos cupons é calculada de modo semelhante: (13) em que é o percentual em t da dívida cambial emitida em (t – s) e é a taxa do cupom do título emitido em (t – s). Assim, o custo de carregamento dos títulos indexados ao câmbio é dado por: (14) O caso dos títulos indexados à inflação (NTN-B) é bastante similar aos títulos indexados ao câmbio. O cupom de juros em cada período, , é também calculado como uma média ponderada das taxas de cupons que estão em estoque: (15) 44 Cada mês, 1/12 do estoque inicial de prefixados de um ano matura, e então é substituído por uma nova emissão. Assim, o peso típico de uma emissão de um prefixado de um ano é 1/12. Para um título de cinco anos, o peso será, do mesmo modo, 1/60. 213 em que representa o percentual em t da dívida indexada a preços emitida em (t – s) e é a taxa do cupom do título emitido em (t – s). O custo de carregamento das NTN-Bs é dado por: (16) Assim, para uma dada composição de dívida, seu custo de carregamento total é dado pela média pon- derada do custo de carregamento de cada tipo de título, como derivado anteriormente. Em outras palavras: (17) em que RtD é o custo de carregamento da carteira de dívida e representam a parcela de cada tipo de título na composição de dívida dada.45 3 A dinâmica da dívida Dado o custo de carregamento da dívida expresso pela equação (17), o estoque atual da DPF, a variação da base monetária ( ) e o superávit primário ( ), é possível derivarmos uma equação para a dinâmica da dívida pública: (18) Entretanto, apesar de o Tesouro Nacional ter controle direto apenas sobre a Dívida Pública Federal, o indicador de sustentabilidade relevante a ser monitorado é a razão DLSP/PIB. É necessário, portanto, derivar uma equação para a dinâmica dessa razão como função da DPF. Isso é feito por meio da seguinte identidade: (19) Podemos agrupar os vários ativos e passivos que compõem a DLSP nas seguintes categorias: DPF, base monetária (M), passivos do setor público indexados à Selic (SelicPassivos), passivos do setor público indexados a dólar (USDPassivos), reservas internacionais (Reservas), ativos do setor público correlacionados com o PIB (PIBAtivos), ativos do setor público indexados à Selic (SelicAtivos), e outros ativos e passivos. O PIB segue um movimento browniano geométrico, semelhante ao processo do índice de preços do- méstico (equação 2). A base monetária cresce à mesma taxa que o PIB nominal, como em um arcabouço da 45 Obviamente, as parcelas devem somar um. 214 Dívida Pública: a experiência brasileira teoria quantitativa. A evolução das reservas depende das projeções de compra/venda pelo Banco Central. As outras variáveis dependem da evolução do dólar, da Selic ou do PIB. “Outros” representam passivos residuais que dependem de outras formas de indexação. 4 Aplicação do modelo A ideia geral do modelo é relativamente simples, como podemos ver na Figura 6. Simulações de Monte Carlo são usadas para derivar uma fronteira eficiente de custo e risco para a dívida pública. Como usual, uma composição de dívida é eficiente se seu custo associado for o menor possível dado o nível de risco escolhido. O conjunto de todas as composições eficientes define a fronteira eficiente, refletindo o trade-off entre custo e risco enfrentado pelo gestor da dívida. Diversos cenários estocásticos são gerados para descrever como as principais variáveis macroeconômicas (taxa de juros, câmbio e inflação) evoluem no tempo. Além disso, o preço dos títulos também evolui de acordo com esses cenários estocásticos. Apesar de serem (pseudo) estocásticas, como dito anteriormente, as equações do modelo são correlacionadas para assegurar a consistência macroeconômica. Figura 9. Sumário esquemático da dinâmica do modelo Uma vez de posse de um número grande de trajetórias para as principais variáveis macroeconômicas no período escolhido, uma dada carteira de dívida é fixada, baseada em uma composição de títulos repre- sentativos da DPF que diferem quanto a suas características de retorno e prazo. Sob a hipótese de que essa 215 carteira seja mantida constante ao longo do tempo,46 são simuladas diversas trajetórias estocásticas para a razão entre Dívida Líquida do Setor Público e o PIB, em estado estacionário. No caso brasileiro, uma carteira de dívida pode ser composta de quatro diferentes tipos de instrumentos, segundo suas características de retorno: prefixados, títulos com taxas flutuantes (indexados à taxa overnight), títulos indexados à inflação e títulos indexados à taxa de câmbio. Cada um desses instrumentos pode ter diferentes prazos para que assim criemos um conjunto de títulos representativos de curto, médio e longo prazos. No modelo, os instrumentos de dívida considerados são os seguintes: l prefixados (1, 2, 5 e 10 anos); l taxa flutuante (5 anos); l indexados à inflação (10, 20 e 30 anos); l indexados à taxa de câmbio (dólar: 10 e 30 anos; euro: 15 anos). Cada trajetória simulada gera diferentes preços e custos de carregamento para cada título. Assim, um diferente custo de carregamento é derivado para cada trajetória. Dessa forma, podemos computar um gran- de número de razões DLSP/PIB, de modo que obtemos uma distribuição de probabilidade associada a cada composição possível da dívida. A análise concentra-se nessa distribuição ao final do período de simulação (dez anos), da qual são extraídas as medidas de custo e risco.47 Gráfico 15. A fronteira eficiente de custo e risco * Sob condições de estado estacionário. 46 Tal objetivo é atingido por uma estrutura de maturação constante ao longo do tempo. 47 Consideramos a média da razão DLSP/PIB o indicador de custo e o percentil 99 da distribuição, como alternativa a um certo número de desvios-padrão. É importante ressaltar que trabalhamos com composições da DPF para gerar medidas de custo e risco da razão DLSP/PIB. Como dito anteriormente, isso se justifica por ser este último indicador o mais considerado como proxy de sustentabilidade, apesar de o Tesouro ter controle direto apenas sobre a DPF. 216 Dívida Pública: a experiência brasileira O ponto acima da curva à direita indica a posição corrente da DLSP/PIB em termos de custo e risco, dada a composição corrente da DPF. Dessa forma, o modelo sugere que, sob condições de estado estacionário, seria possível reduzir 1,61% dos custos mantendo o nível de risco constante, ou reduzir em 4,91% o risco mantendo o custo inalterado. Finalmente, dado o nível de apetite ao risco do governo (sociedade), é possível escolher uma compo- sição ótima específica da fronteira eficiente, chamada de benchmark. A fronteira eficiente permite-nos não apenas comparar a situação de uma composição qualquer relativamente a ela, mas também dá ao tomador de decisões um cardápio completo de diferentes escolhas eficientes possíveis. Evidentemente, a escolha de uma carteira em particular como benchmark da dívida pública implica a escolha do nível de risco no qual o governo (e, portanto, a sociedade) está disposto a incorrer. Dado um nível de risco desejado, a carteira correspondente pode ser extraída da fronteira. Outra característica interessante do modelo é a possibilidade de impormos restrições às composições eficientes, como podemos observar na Figura 8. Isso adiciona uma flexibilidade considerável ao modelo, já que há importantes dimensões de risco que não são diretamente capturadas pela fronteira, mas podem ser inseridas como restrições. Por exemplo, pode-se querer introduzir restrições no que diz respeito ao prazo médio ao percentual máximo de dívida a vencer em 12 meses (restrições hipotéticas). Gráfico 16. A fronteira eficiente de custo e risco sob restrições de composição * Sob condições de estado estacionário. O Gráfico 16 mostra a fronteira resultante da adição das seguintes restrições: máximo de 20% de dívida externa (cambial), teto de 30% de LFT e percentual máximo de 30% de dívida a vencer em 12 meses (restrições hipotéticas). 5 Considerações finais Em consonância com as melhores práticas internacionais, o Tesouro Nacional formula e apresenta os resultados dos estudos de benchmark (carteiras eficientes) ao gestor de política fiscal (ministro ou Comitê 217 Executivo), que é responsável por escolher o nível aceitável de risco a ser incorrido pelo governo. Temas relativos à sustentabilidade da dívida também são levados em consideração para definir os níveis máximos aceitáveis de custo. Como dito anteriormente, apesar de uma boa gestão do trade-off entre custo e risco sugerir o uso das tradicionais ferramentas financeiras, deve-se lembrar que há certos fatores peculiares aos governos que impedem o uso indiscriminado da teoria de finanças ao analisar a dívida pública. Como ocorre na maioria dos países, o Brasil tem como objetivo declarado da gestão da dívida a minimização de custos de longo pra- zo, mantendo níveis prudentes de risco. Além disso, objetivos secundários envolvem o desenvolvimento do mercado secundário, a expansão da base de investidores e o desenvolvimento da estrutura a termo da taxa de juros, referência básica para precificação de ativos públicos e privados. Além disso, vale mencionar que o Tesouro brasileiro também desenvolveu um modelo alternativo de benchmark, em fase inicial, também baseado em carteiras eficientes, usando o arcabouço de um modelo macroestrutural para descrever a evolução da economia. Tal modelo poderia ser complementar ao aqui descrito. Recentemente, o Tesouro tem envidado esforços para aprimorar as duas abordagens. Um desafio particular é chegar-se a uma boa especificação de um modelo macro, especialmente para economias emer- gentes. Entretanto, o uso de modelos analíticos de naturezas diferentes pode trazer ganhos importantes de complementaridade e entendimento do tema. Anexo 4. Diferenças metodológicas entre vida média e prazo médio Há um consenso na gestão da dívida brasileira de que o modo mais correto, em termos de refletir de forma mais acurada o risco de refinanciamento, de calcular o prazo médio da dívida é por uma fórmula bastante similar à duração de Macaulay. Entretanto, há alguns anos, o Tesouro teve de incorporar também o conceito de vida média para tornar as estatísticas de dívida brasileiras comparáveis internacionalmente. A equação (10) expressa a metodologia usada pelo Tesouro brasileiro para calcular o prazo médio da dívida pública. Como mencionado antes, a fórmula é bastante similar à duração de Macaulay e à duração de repactuação. As diferenças mais importantes são a taxa de juros usada para descontar os fluxos financeiros (duração de Macaulay) e o fator de ponderação Ti (duração de repactuação). i (20) No cálculo do Tesouro, usamos as taxas originais de emissão dos títulos para descontar seus fluxos de caixa. Além disso, a variável Ti mede sempre o intervalo de tempo entre o instante atual e cada um dos fluxos de caixa (cupons e principal). Por sua vez, a vida média, como expressa a seguir, considera apenas os pagamentos de principal para cada título. Em função disso, essa metodologia indica um valor superior ao prazo médio. Entretanto, como mencionado anteriormente, já que essa metodologia não considera pagamentos intermediários de cupom, não é adequada para medir o risco de refinanciamento e deve ser usada apenas para comparar o indicador brasileiro ao de outros países. , i (21) em que Mi corresponde ao período entre o instante atual e o vencimento do título. 218 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 Capítulo 4 O Orçamento e a Dívida Pública Federal Antônio de Pádua Ferreira Passos Priscila de Souza Cavalcante Castro 1 Introdução O Orçamento Público é um instrumento que reflete a estratégia de alocação das despesas do governo, bem como as expectativas de receitas que permitirão seu atendimento, ambos alinhados ao planejamento em cada exercício financeiro. Um sistema moderno de orçamento deve atender a três requisitos básicos: l controle, transparência e responsabilidade na gestão dos recursos públicos; l manutenção da estabilidade econômica, por meio dos ajustes fiscais; l qualidade do gasto público, associada às prioridades e ao planejamento de curto e médio prazos do governo. No âmbito da Dívida Pública Federal (DPF), em particular, adicionalmente ao orçamento anual enviado ao Congresso no início do segundo semestre de cada ano, para aprovação até dezembro, o governo federal divulga em janeiro do ano seguinte o seu Plano Anual de Financiamento (PAF). Tal documento, de periodicidade anual, divulga os objetivos, as diretrizes, as estratégias e as metas para a gestão da DPF, de forma estruturada e pública, sendo um instrumento de transparência no gerenciamento dessa dívida. Dessa forma, durante o exercício financeiro em que o Orçamento está vigente, há um acompanhamento da execução orçamentária com o objetivo de alinhá-la ao planejamento estratégico da DPF divulgado no PAF. De um lado, a análise da execução orçamentária e financeira permite acompanhar a necessidade de geração de receitas decorrente da emissão de títulos, levando em consideração o comportamento de variáveis estraté- gicas, tais como o total das despesas da DPF do mês e a parcela da receita fiscal direcionada para pagamento dessa dívida. De outro lado, a análise da necessidade líquida de financiamento, com base nas despesas e nas receitas, e a estratégia do gerenciamento da dívida pública de curto e médio prazos, apresentada no PAF, permitem a definição das emissões de títulos que ocorrerão mês a mês. Nesse contexto, apresentamos a estrutura orçamentária brasileira, descrevendo o processo orçamen- tário, as instituições participantes do sistema, os normativos que norteiam toda a execução orçamentária e financeira, destacando os aspectos que impactam diretamente a gestão da DPF. O objetivo deste capítulo, portanto, é propiciar um entendimento sobre o orçamento brasileiro como ferramenta essencial na administração financeira dos recursos públicos e, especificamente, no que se refere à Dívida Pública Federal. Além desta Introdução, este capítulo está dividido em quatro seções. A seção 2 introduz os principais conceitos de orçamento público, bem como os processos e as entidades envolvidas. A seção 3 apresenta a estrutura institucional da administração financeira e orçamentária brasileira. A seção 4 aborda o orçamento sob a ótica da DPF, tendo em vista que, além das regras gerais às quais toda gestão de recursos 219 está subordinada, a dívida tem um tratamento especial, sendo impactada por um lado pelos controles legais sobre o endividamento público, aliado à transparência das informações, e por outro buscando a flexibilidade necessária para uma gestão eficiente dessa dívida, minimizando o risco orçamentário. Por fim, a seção 5 traz algumas considerações finais sobre o orçamento da Dívida Pública Federal. 2 Orçamento O Orçamento Público é um processo de planejamento contínuo e dinâmico que o Estado utiliza para demonstrar seus planos e programas de trabalho como um todo e de cada um de seus órgãos em particular para determinado período. Dessa forma, o orçamento exprime em termos financeiros e técnicos, as decisões políticas na alocação dos recursos públicos, estabelecendo as ações e os programas prioritários para atender às demandas da sociedade, além de permitir o controle das finanças públicas, evitando que sejam realizados gastos não previstos. Juridicamente, o orçamento de um ente público no Brasil, seja ele o governo federal, os estados ou os municípios, materializa-se por meio de uma lei ordinária de iniciativa do Poder Executivo, de validade anual, em que se estima a receita e se fixa a despesa da administração pública, e é elaborado em um exercício para execução no exercício seguinte, após aprovação pelo Poder Legislativo. Ele é estabelecido com base nos seguintes princípios fundamentais: l Unidade do documento: o conjunto das despesas e das receitas deve estar reunido em um documento único. Cada esfera de governo deve possuir apenas um orçamento, fundamentado em uma única política orçamentária e estruturado uniformemente. Assim, existe o orçamento da União, o de cada estado e o de cada município. l Universalidade: princípio segundo o qual a lei orçamentária deve compreender todas as receitas e todas as despesas pelos seus totais. l Anualidade: o orçamento corresponde a um exercício anual. l Princípio do equilíbrio: as receitas estimadas do exercício devem ser iguais às despesas fixadas. l Noção de especificação: cada dotação deve ter um destino determinado e estar associada a uma ação específica. As receitas no orçamento são estimadas pelo governo para o exercício seguinte, tendo por base previsões de indicadores da economia, tais como o Produto Interno Bruto (PIB) e a inflação, e de cada uma das receitas, tais como a arrecadação de impostos e contribuições. Com base na receita prevista, são fixadas as despesas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. 220 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 1. Receita e despesa dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social por categoria econômica do Orçamento 2009 – princípio do equilíbrio Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, v. I, Quadro 1C1 A Constituição Federal brasileira estabelece que os orçamentos e suas respectivas leis sejam iniciativas do Poder Executivo, mas apreciadas pelo Poder Legislativo. Dessa forma, o projeto de lei orçamentária é levado ao Congresso, onde deputados e senadores discutem na Comissão Mista de Orçamentos e Planos a proposta enviada pelo Executivo. Ao Congresso é permitido remanejar os investimentos para projetos, áreas e regiões considerados prioritários, realizando tais alterações por meio de emendas parlamentares. 1 Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008. 221 O Orçamento deve ser votado e aprovado até o final de cada legislatura. Depois de aprovado, é sancio- nado pelo presidente da República e se transforma em lei. Caso, durante o exercício financeiro, seja necessária a realização de despesas acima do limite autorizado na lei, o Poder Executivo submete ao Congresso Nacional projeto de lei de crédito adicional.2 A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o modelo orçamentário brasileiro e instituiu instrumentos com o objetivo de vincular o planejamento ao Orçamento. São leis interdependentes: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). O PPA define as prioridades do governo por um período de quatro anos e deve conter “as diretrizes, objetivos e metas da Administração Pública Federal para as despesas de capital3 e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”. O PPA estabelece a ligação entre as prioridades de longo prazo e a LOA. É de iniciativa do Poder Executivo e coordenado pela Secretaria de Planejamento e Investimentos estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (SPI/MPOG). Aprovado no primeiro ano de mandato presidencial, o PPA tem validade a partir do segundo ano presidencial e encerra-se no primeiro ano do mandato presidencial subsequente. A LDO, por sua vez, prioriza as metas do PPA e orienta a elaboração do Orçamento Geral da União, que terá validade para o ano seguinte. O projeto da LDO é elaborado pelo Poder Executivo e precisa ser enca- minhado ao Congresso Nacional até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro. O projeto da LDO tem como base o PPA e deve ser aprovado pelo Congresso Nacional e enviado para sanção do presidente da República até o encerramento do primeiro período da sessão legislativa, em julho. Com base na LDO aprovada pelo Congresso Nacional, a Secretaria de Orçamento Federal (SOF) elabora a proposta orçamentária para o ano seguinte, em conjunto com os ministérios e as unidades orçamentárias dos Poderes Legislativo e Judiciário. Ou seja, os órgãos setoriais4 (Ministérios da Educação, Saúde, Agricultura etc.) fazem o levantamento das necessidades de gastos das áreas (Unidades Gestoras5) que compõem cada ministério, de acordo com os parâmetros fixados pela LDO, e apresentam suas propostas à SOF, a quem compete compatibilizar as expectativas de gastos com o nível de receita que o governo espera arrecadar. Após a consolidação da proposta orçamentária pela SOF, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão a encaminha ao presidente da República para apreciação, juntamente com uma Exposição de Motivos, na qual é realizado diagnóstico sobre a situação econômica do país e suas perspectivas. Por determinação constitucional, o governo é obrigado a encaminhar o projeto de lei do Orçamento ao Congresso Nacional até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro. 2 Crédito Adicional: instrumento de ajuste orçamentário para corrigir distorções durante a execução do orçamento, por meio da autorização de despesa não prevista quando da elaboração da LOA ou aumento de dotação considerada insuficiente. O Crédito Adicional classifica-se em suplementar, especial e extraordinário, tendo cada um deles limites financeiros e de prazo, regras de tramitação e ritos de aprovação diferenciados. 3 Despesa de Capital: despesas relacionadas com aquisição de máquinas e equipamentos, realização de obras, aquisição de partici- pações acionárias de empresas, aquisição de imóveis e concessão de empréstimos para investimento. Normalmente, uma despesa de capital concorre para a formação de um bem de capital, assim como para a expansão das atividades do órgão público. 4 Órgão Setorial: órgão articulador entre o órgão central e os órgãos executores, dentro de um sistema, sendo responsável pela coordenação das ações na sua esfera de atuação. 5 Unidade Gestora: unidade orçamentária ou administrativa investida do poder de gerir recursos orçamentários e financeiros, próprios ou sob descentralização. 222 Dívida Pública: a experiência brasileira No Congresso, deputados e senadores discutem na Comissão Mista de Orçamentos e Planos6 a proposta enviada pelo Executivo, fazem as modificações que julgam necessárias, por meio de emendas, e votam o projeto. Cabe ressaltar que a Constituição Federal estabelece diversas regras em relação às emendas parlamentares: l as emendas não podem ocasionar aumento na despesa total do Orçamento, a menos que sejam iden- tificados omissões ou erros nas receitas, devidamente comprovados; l o aumento das dotações orçamentárias será permitido, desde que obrigatoriamente as emendas indi- quem quais as dotações que serão canceladas para utilização dos respectivos recursos; l não podem ser objeto de cancelamento as despesas com: pessoal, benefícios previdenciários, juros, transferências constitucionais e amortização de dívida pública; l é obrigatória a compatibilidade da emenda apresentada com as disposições do PPA e da LDO. A Constituição determina que o Orçamento deve ser votado e aprovado até o final de cada legislatura, que ocorre em dezembro. Depois de aprovado, o projeto é sancionado pelo presidente da República e se transforma em lei. Cabe destacar que, após a sanção presidencial à Lei Orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional, o Poder Executivo, mediante decreto presidencial, estabelece, em até trinta dias, a programação financeira e o cronograma de desembolso mensal por órgãos, observadas as metas de resultados fiscais dispostas na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Em 2000, o modelo orçamentário foi aprimorado considerando-se os efeitos provocados pela aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), lei complementar7 que assinalou um marco nas finanças públicas brasileiras, ao representar a institucionalização do compromisso com a gestão fiscal responsável e com o equilíbrio das contas públicas. Sua finalidade principal foi formular regras de finanças públicas para a responsabilidade da gestão fiscal, instituindo o planejamento e a transparência como seus pilares. Os gastos públicos, portanto, passam a ser vistos sob uma nova perspectiva, que engloba não somente a análise de aspectos financeiros e orçamentá- rios, como também exige a demonstração dos resultados obtidos em prol da sociedade. Entre suas principais características, cabe destacar que, por se tratar de uma lei complementar, os requisitos necessários para a modificação dos seus dispositivos são mais rígidos.8 É importante ressaltar também que a abrangência da lei é nacional e extensiva a todos os poderes da nação. Com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, a LDO passou a conter dois anexos de grande im- portância para orientar o governo e a sociedade sobre a condução da política fiscal. Trata-se do Anexo de Metas Fiscais, no qual são estabelecidos os resultados primários esperados para os próximos exercícios e que dão uma dimensão da austeridade dessa política; e o Anexo de Riscos Fiscais, no qual são enumerados os chamados passivos contingentes, ou seja, aquelas dívidas que ainda não estão contabilizadas como tal, mas que, por decisão judicial ou legal, poderão vir a aumentar a dívida pública. 6 Os projetos relativos ao PPA, à LDO e à LOA são apreciados conjuntamente pelas duas Casas do Congresso Nacional (Senado Federal e Câmara dos Deputados), cabendo à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) examinar e emitir parecer sobre os referidos projetos, também em sessão conjunta. 7 Lei Complementar: ato normativo que visa a regulamentar preceito da Constituição que não seja autoaplicável. 8 Tanto para sua aprovação quanto modificação, uma lei complementar necessita dos votos favoráveis da maioria absoluta (metade mais um dos parlamentares) em cada uma das Casas em dois turnos. Já uma lei ordinária necessita de maioria simples (metade mais um dos parlamentares presentes à sessão), sendo o quórum de presença metade mais um dos parlamentares da Casa. 223 3 Estrutura institucional A administração financeira e orçamentária do Brasil é descentralizada em quatro grandes sistemas federais, amparados em instrumentos legais bem definidos que proporcionam um processo orçamentário e financeiro transparente e organizado, objetivando aliar o planejamento ao Orçamento de forma responsável na gestão dos recursos públicos: l Sistema Federal de Planejamento e Orçamento, administrado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) – tem como principal função coordenar, consolidar e supervisionar a elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Proposta Orçamentária da União, compreendendo o Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, em articulação com a Secretaria de Planejamento e Inves- timentos Estratégicos (SPI). Tem como órgão central a Secretaria de Orçamento Federal (SOF). l Sistema Federal de Administração Financeira, administrado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) – visa ao equilíbrio econômico-financeiro do governo federal, dentro dos limites da receita e da despesa públicas. Compreende atividades de programação financeira da União, de administração de direitos e haveres, de garantias e obrigações de responsabilidade do Tesouro Nacional e de orientação técnico-normativa referente à execução orçamentária e financeira. l Sistema Federal de Contabilidade, administrado pela STN – visa a evidenciar a situação orçamen- tária, financeira e patrimonial da União. Define também que “as atividades de contabilidade compre- endem a formulação de diretrizes para orientação adequada, mediante o estabelecimento de normas e procedimentos que assegurem consistência e padronização das informações produzidas pelas unidades gestoras”. l Sistema Federal de Controle Interno, administrado pela Secretaria Federal de Controle (SFC) – compreende o conjunto das atividades relacionadas à avaliação do cumprimento das metas previstas no Plano Plurianual, da execução dos programas de governo e dos orçamentos da União e à avaliação da gestão dos administradores públicos federais, bem como o controle das operações de crédito, avais, garantias, direitos e haveres da União. A SFC reporta-se ao presidente da República. Além desta secre- taria, a União também conta com o Tribunal de Contas da União (TCU), instituição de auditoria externa que se reporta ao Congresso Nacional. 224 Dívida Pública: a experiência brasileira Figura 1. Organograma dos órgãos que participam do processo orçamentário federal O modelo brasileiro de administração financeira e orçamentária é complexo, sendo caracterizado pela descentralização da gestão dos recursos públicos. São diversas unidades gestoras coordenadas por órgãos setoriais e centralizadas nos órgãos centrais de programação financeira e orçamentária. A Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento é órgão central de orçamento e responsável pelo Sistema Integrado de Dados Orçamentários (Sidor), e a Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda é o órgão central de programação financeira e responsável pela administração da Conta Única do Governo Federal e pelo Sistema Integrado de Administração Financeira e Orçamentária (Siafi). Nesse contexto, compete ao Tesouro Nacional estabelecer as diretrizes para a elaboração e a formulação da programação financeira mensal e anual, bem como a adoção dos procedimentos necessários à sua execução. Aos órgãos setoriais competem a consolidação das propostas de programação financeira dos órgãos vinculados 225 (Unidades Gestoras) e a descentralização dos recursos financeiros recebidos do órgão central, e às Unidades Gestoras, a realização da despesa pública nas suas três fases:9 o empenho, a liquidação e o pagamento. A execução orçamentária e a financeira ocorrem concomitantemente, pois estão diretamente ligadas uma à outra. Havendo orçamento e não existindo recursos financeiros, não poderá ocorrer a despesa. Ademais, pode haver recursos financeiros, mas não se poderá gastá-los se não houver autorização orçamentária. Dessa forma, para que a elaboração do Orçamento, a execução orçamentária e a financeira e os registros patrimoniais sejam eficientes e alcancem os objetivos de controle, transparência e responsabilidade sobre a gestão dos recursos públicos, houve a preocupação de definir uma classificação orçamentária comum aos dois sistemas, o Sidor e o Siafi, possibilitando a integração das informações. A execução orçamentária e financeira é centralizada no Siafi, sendo atualmente o principal instrumento utilizado para registro, acompanhamento e controle da execução orçamentária, financeira e patrimonial do governo federal, além de ser também utilizado pelo controle interno do Poder Executivo e de fornecer informações gerenciais, confiáveis e precisas, para todos os níveis da administração. É um sistema on-line, interligado em todo o território nacional e utilizado por todos os órgãos da administração direta dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O governo federal possui uma conta única, centralizada no Banco Central, para gerir todas as entradas e saídas de recursos do seu caixa. Para cada movimentação de saída de dinheiro ocorre o registro de sua aplicação, bem como do servidor público que a efetuou. Trata-se de uma ferramenta poderosa para executar, acompanhar e controlar com eficiência e eficácia a correta utilização dos recursos da União. 4 O orçamento da dívida pública A estrutura orçamentária vigente, ao mesmo tempo em que impõe à Dívida Pública Federal (DPF) regras e limite de endividamento, propicia que o orçamento dessa dívida seja flexível o suficiente para não impor obstáculos nem riscos à gestão da dívida pública. A seguir serão abordados os instrumentos já apresentados, com enfoque na administração da DPF. 4.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal no contexto da dívida pública A LRF estabeleceu diversas regras que impactaram a gestão da dívida pública em todos os níveis de governo: federal, estadual e municipal. Fixou conceitos básicos, estabeleceu limites para endividamento e operações de crédito, criou regras para a recondução da dívida aos limites de endividamento, foi criteriosa nas regras das operações de crédito, inclusive das conduzidas pelo Banco Central, entre outras determinações que afetam direta ou indiretamente a gestão da dívida pública. 9 As fases das despesas podem assim ser definidas: Empenho – é o ato da administração que cria a obrigação para o Estado e tem por função reservar, para cobertura da despesa nele especificada, parcela da dotação orçamentária do exercício corrente, de forma que não sejam comprometidos valores que ultrapassem a dotação anual.   Liquidação – consiste na verificação do direito adquirido pelo credor, tendo por base documentos comprobatórios do respectivo crédito, ou seja, o reconhecimento pela administração pública da efetiva obrigação em pagar, considerando a dívida como líquida e certa, após constatar a efetiva entrega do bem ou serviço, conforme as especificações contratuais. Pagamento – é o ato da administração no qual a autoridade competente autoriza, em documentos processados pela contabilidade, o pagamento da despesa. 226 Dívida Pública: a experiência brasileira A LRF apresenta ao longo de sua estrutura as seguintes definições: a) Dívida pública consolidada ou fundada: montante total, apurado sem duplicidade, das obrigações financeiras do ente da Federação assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito para amortização em prazo superior a 12 meses. Também integram a dívida pública consolidada as operações de crédito de prazo inferior a 12 meses cujas receitas tenham constado do Orçamento. b) Dívida pública mobiliária: dívida pública representada por títulos emitidos pela União, inclusive os do Banco Central do Brasil, pelos estados e pelos municípios. c) Operação de crédito: compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros. d) Concessão de garantia: compromisso de adimplência de obrigação financeira ou contratual assumida por ente da Federação ou entidade a ele vinculada. e) Refinanciamento da dívida mobiliária: a LRF estabeleceu que todas as despesas e receitas relativas à dívida pública devem constar na Lei Orçamentária.10 Dessa forma, o Orçamento da DPF é, de modo simplificado, multiplicado pelo número de vezes em que tal dívida é refinanciada ao longo do ano. Antes da LRF, o Orçamento não possibilitava a distinção entre as emissões de títulos que aumentavam o estoque da DPF (tais como aquelas com objetivo de pagamento de juros ou financiamento de outras despesas) e as utilizadas exclusivamente para o refinanciamento do principal das dívidas vincendas (que não alteram o estoque nominal da DPF). Por consequência, eram comuns interpretações distorcidas em relação ao montante do Orçamento destinado ao pagamento da dívida, dado seu elevado montante, se comparado a outras despesas orçamentárias. A LRF inovou ao determinar que o Orçamento destaque o valor referente ao principal da Dívida Pública Federal a ser refinanciado das demais despesas pagas com emissão de títulos. Tal medida permitiu maior transparência às contas públicas, aperfeiçoando o debate sobre o verdadeiro peso da dívida sobre o Orçamento Fiscal. A partir de então, os quadros consolidados da LOA passaram a separar as despesas da DPF, apresentando o item “amortização da dívida”, que reflete o valor autorizado de despesas com o principal da DPF. Para se ter uma idéia da distorção que a metodologia anterior causava, quando não havia separação entre gasto com o refinanciamento e gasto com juros e outras despesas, a parcela destinada ao pagamento do serviço da DPF representava cerca de 60% do total de despesas previstas no Orçamento (Gráfico 1). Atualmente, por se permitir análise excluindo o valor do refinanciamento e, portanto, os efeitos das emissões para rolagem de principal, o valor destinado com a ação de amortização e encargos fica em torno de 22% do total (Gráfico 2). 10 Conforme art. 5º, § 1º da LRF: “Todas as despesas relativas à dívida pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que atende- rão, constarão da Lei Orçamentária Anual”. 227 Gráfico 1. Participação das despesas no Gráfico 2. Participação percentual das despesas Orçamento Geral da União sem a contabilização no Orçamento Geral da União excluindo do refinanciamento da Dívida Pública Federal o refinanciamento da Dívida Pública Federal Amortização e encargos 10,1% Refinanciamento da DPF Demais despesas 49,8% orçamentárias 78,5% Amortização e encargos 21,5% Demais despesas orçamentárias 40,2% Fonte: Tesouro Nacional 4.1.1 Dos limites de endividamento Os limites de endividamento foram estabelecidos pela Constituição Federal, bem como pela Lei de Responsabilidade Fiscal: a) Regra de ouro: a Constituição Federal, em seu art. 167, proíbe que sejam realizadas operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. A regra de ouro tem por objetivo evitar o pagamento de despesas correntes11 com recursos decorrentes de emissão ou contratação de novo endividamento. b) Limites máximos para o montante da dívida pública e operações de crédito: o art. 52 da Constituição Federal estabelece a competência privativa ao Senado Federal para a definição dos limites de endividamento e das condições de operação de crédito. A LRF estabeleceu que a proposta de limites globais para o montante da dívida consolidada, tanto para União, como para estados e municípios seria submetida pelo presidente da República ao Senado Federal. O limite global é definido para a Dívida Consolidada Líqui- da12 (DCL) como um percentual da Receita Corrente Líquida (RCL). O cálculo da relação DCL/RCL deverá ser verificado de forma quadrimestral e apresentado no Relatório de Gestão Fiscal. Caso algum ente da Federação ultrapasse o respectivo limite ao final de um quadrimestre, deverá ser a ele reconduzida até o término dos três quadrimestres subsequentes, reduzindo o excedente em pelo menos 25% no primeiro. Os limites propostos pelo Executivo ao Senado foram: 3,5 vezes a Receita Corrente Líquida para a União, 2 para os estados e 1,2 11 Despesa Corrente: categoria da classificação econômica da despesa que agrupa os vários detalhamentos pertinentes às despesas de custeio das entidades do setor público e aos custos de manutenção de suas atividades, tais como as relativas a vencimentos e encargos com pessoal, juros da dívida, compra de matérias-primas e bens de consumo, e serviços de terceiros. 12 Dívida Consolidada Líquida: dívida pública mobiliária e contratual, deduzidas as disponibilidades de caixa, as aplicações finan- ceiras e os demais haveres financeiros. No caso da União, para não impor qualquer rigidez à execução de política cambial ou monetária, o conceito de Dívida Consolidada Líquida inclui a dívida mobiliária do Tesouro na carteira do Banco Central do Brasil, de modo que este possa comprar e vender tais títulos em mercado sem restrições. 228 Dívida Pública: a experiência brasileira para os municípios.13 Se, por um lado, o limite proposto para a União pode parecer elevado se comparado com outros entes da Federação, deve-se destacar que tal limite incorpora os títulos do Tesouro em poder do Banco Central para execução da política monetária, o que aumenta o estoque total da dívida pública em mais de uma vez a RCL anual da União. Adicionalmente, o governo federal assumiu, ao longo da última década, dívidas dos estados e dos municípios em montante também superior a uma vez a RCL anual da União. Tais fatores são representativos o suficiente para justificar a diferença entre os limites. Em dezembro de 2007, o Senado Federal aprovou uma Resolução14 que dispõe sobre os limites glo- bais para operações de crédito externo e interno da União, os quais não poderão ser superiores a 60% da Receita Corrente Líquida. Cabe ressaltar, porém, que, sem desconsiderar a importância dos limites aos quais o endividamento está submetido, o Senado Federal aprovou medidas importantes nesta resolução com vis- tas a minimizar os riscos de refinanciamento da dívida. Nesse sentido, as receitas de operações de créditos decorrentes de emissão de títulos somente serão consideradas, para fins de limite, no exercício financeiro em que for realizada a respectiva despesa. Além disso, as emissões de títulos com objetivo de refinanciamento do principal de dívidas não estão incluídas no limite global para operações de crédito. A LRF também estabeleceu diversas normas relativas à ação do Banco Central, inovou ao definir que suas despesas referentes a pessoal e encargos sociais, custeio administrativo e investimentos devem integrar a LOA. Por sua vez, o resultado positivo do Banco Central constitui receita do Tesouro Nacional, ao passo que o resultado negativo constitui obrigação do Tesouro e deverá ser consignado em dotação15 específica do Orçamento para posterior pagamento. Também proibiu ao Banco Central emitir títulos públicos a partir de maio de 200216 e de efetuar permuta, ainda que temporária, por intermédio de instituição financeira ou não, de título da dívida de ente da Federação (leia-se, estados e municípios) por título da Dívida Pública Federal. 4.2 A Lei de Diretrizes Orçamentárias no contexto da dívida pública Assim como a LRF, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) destina capítulo específico à DPF. Inicialmen- te, define quais despesas poderão ser custeadas com receitas provenientes de emissão de títulos públicos, dentre as quais o refinanciamento do principal, os juros e outros encargos da dívida, interna e externa, de responsabilidade direta ou indireta do Tesouro Nacional ou que venham a ser de responsabilidade da União nos termos de resolução do Senado Federal, além das despesas com o aumento do capital de empresas e sociedades em que a União detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto e que não estejam incluídas no programa de desestatização.17 A LDO autoriza também que o escopo das despesas seja ampliado, desde que expressamente definidas em lei, objetivando dessa forma que as emissões de títulos não ocorram indistintamente. 13 A Resolução do Senado Federal nº 40, que cria limite para os estados e os municípios, foi aprovada em dezembro de 2001, mantendo a redação proposta pelo Executivo, dando para cada estado ou município o prazo de até 15 anos para se ajustar aos limites a ele referentes. A proposta de resolução que cria limite para a União, embora tenha passado por todas as comissões do Senado Federal, ainda não havia sido aprovada em plenário até dezembro de 2008. 14 Resolução nº 48, de 21 de dezembro de 2007. 15 Dotação Orçamentária: detalhamento da despesa incluído no Orçamento público, associado a um programa de trabalho em uma unidade orçamentária para atender a determinada finalidade. 16 Dois anos após a aprovação da LRF, que ocorreu em maio de 2000. 17 Redação retirada da LDO 2008 (Lei nº 11.514, de 13 de agosto de 2007, Capítulo IV – Das Disposições Relativas à Dívida Pública Federal). 229 4.3 A Lei Orçamentária Anual no contexto da dívida pública O Orçamento da Dívida Pública Federal tem destaque na Lei Orçamentária Anual, especificamente o valor destinado ao refinanciamento. A LRF estabeleceu a separação do refinanciamento da Dívida Pública Federal no Orçamento, fazendo constar o refinanciamento da dívida mobiliária em unidade orçamentária específica. Um dos mecanismos utilizados para a separação do refinanciamento da Dívida Pública Federal foi a criação de uma fonte orçamentária específica atrelada a uma natureza de despesa de principal também específica. A fonte 143 foi criada para registrar os recursos decorrentes de emissão de títulos que serão utilizados para o pagamento de principal da DPF, independentemente de ser uma dívida mobiliária ou contratual, enquanto a fonte 144 registra os recursos decorrentes da emissão de títulos que serão utilizados para as outras finalidades expressas na legislação. A Secretaria de Orçamento Federal disponibiliza, na consolidação do Orçamento, recursos em outras fontes para atender às despesas com a Dívida Pública Federal, umas consideradas por legislação específica que determina destinação exclusiva para atender ao pagamento da dívida pública, outras dependentes da existência de disponibilidade para serem alocadas e de não estarem vinculadas a nenhuma outra despesa por lei. Para essa finalidade, são utilizadas fontes de recursos primários, tais como as tributárias, as originárias de dividendos pagos à União por suas empresas, bem como as concessões e permissões, e fontes de recursos financeiras, como, por exemplo, recursos decorrentes da remuneração das disponibilidades do Tesouro Nacional, do refinanciamento das dívidas dos estados e dos municípios e do resultado positivo do Banco Central. Caso haja a necessidade de aumentar o valor da dotação orçamentária destinada ao pagamento da dívida pública, a LOA autoriza a suplementação das dotações orçamentárias por créditos adicionais18 diretamente pelo Poder Executivo, proveniente de recursos decorrentes da anulação de dotações que não foram utilizadas, bem como de superávits financeiros,19 excesso de arrecadação,20 entre outras, desde que tais alterações sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias. No entanto, a utilização de superávits financeiros e o excesso de arrecadação limitavam-se aos apurados em fontes exclusivas ou às fontes não vinculadas. Com o objetivo de flexibilizar a utilização desses recursos excedentes para a dívida pública, foi editada em 2008 a Medida Provisória nº 450, que permitiu ao Tesouro Nacional utilizar recursos orçamentários de- correntes do excesso de arrecadação e do superávit financeiro apurados em cada exercício para pagamento da DPF. A partir de então, o Tesouro Nacional poderá, em caráter permanente, utilizar-se dessas fontes para 18 Crédito Adicional: instrumento de ajuste orçamentário para corrigir distorções durante a execução do Orçamento. Autorização de despesa não computada ou insuficientemente dotada na Lei de Orçamento. Classifica-se em suplementar, especial e extraor- dinário: • Crédito Suplementar é a modalidade de crédito adicional destinado ao reforço de dotação orçamentária já existente no Orçamen- to. Deve ser autorizado por lei e aberto por decreto do Poder Executivo. Tal autorização pode constar da própria Lei Orçamentária Anual. • O Crédito Especial é a modalidade de crédito adicional destinado a despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica, sendo autorizado por lei e aberto por decreto do Poder Executivo. • Crédito Extraordinário é a modalidade de crédito adicional destinado ao atendimento de despesas urgentes e imprevisíveis, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública. É autorizado e aberto por medida provisória, podendo ser reaberto no exercício seguinte, nos limites do seu saldo, se o ato que o autorizou tiver sido promulgado nos últimos quatro meses do exercício. 19 O superávit financeiro é apurado ao final de cada exercício pela diferença positiva entre as receitas e as despesas realizadas em cada fonte orçamentária, conjugando-se, ainda, os saldos dos créditos adicionais e as operações de créditos a eles vinculados. 20 Excesso de arrecadação é o saldo positivo da diferença entre a arrecadação prevista e a realizada, acumulada mês a mês. 230 Dívida Pública: a experiência brasileira tal finalidade, desde que não tenham vinculação constitucional, ou seja, o superávit financeiro e o excesso de arrecadação passíveis de serem utilizados para pagamento da dívida são aqueles de destinação livre ou que excedam o necessário para cumprir as despesas legalmente vinculadas. Além disso, créditos suplementares até o limite de 20% do montante do refinanciamento da Dívida Pública Federal já estão autorizados na própria Lei Orçamentária. Só em casos especiais e extraordinários é que há a necessidade de recorrer novamente ao Congresso Nacional. Tais flexibilidades permitem que o Or- çamento seja um instrumento de transparência e controle, sem, entretanto, gerar restrição à eficiente gestão da dívida pública. 4.4 Elaboração da proposta orçamentária da dívida pública Especificamente no caso da Dívida Pública Federal, a elaboração da proposta orçamentária é dividida em duas fases, a primeira ocorrendo entre abril e maio de cada ano e a segunda no mês de agosto, quando o projeto de lei orçamentária deverá ser encaminhado para o Congresso Nacional: l Primeira fase – elaboração da proposta orçamentária das dívidas contratuais interna e externa e da Dívida Mobiliária externa (DPMFe): a SOF consolida o total de receitas e despesas da União com vistas a atender o princípio do equilíbrio (receitas estimadas igual a despesas fixadas). A referida secretaria apura, então, o valor de receitas que será destinado ao pagamento da DPF, con- siderando, por um lado, as receitas que são, por lei, destinadas ao pagamento da DPF e, por outro, os recursos disponíveis em outras fontes. l Segunda fase – elaboração da proposta orçamentária da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi): ao orçamento inicial são incluídos os valores do serviço da DPMFi para o exercício seguinte. A diferença entre as novas despesas fixadas e as antigas receitas estimadas representa os recursos que deverão ser captados a partir da emissão de títulos de responsabilidade do Tesouro Nacional (fontes 143 e 144) para reequilibrar o Orçamento. São considerados no cálculo do serviço da DPMFi com objetivo de determinar o fluxo de vencimentos21 para o exercício seguinte: l o estoque da dívida previsto para 31 de dezembro do ano vigente; l a estimativa de emissões por conta de operações específicas, definidas em lei; l as despesas que serão custeadas com recursos provenientes da emissão de títulos públicos federais, descon- tando as que serão custeadas com títulos públicos federais externos (já considerados na primeira fase); l a estratégia de emissões de títulos do Tesouro Nacional, programadas mês a mês, determinando-se os prazos e as quantidades a serem emitidas em cada leilão, bem como separando aquelas destinadas ao público das que serão emitidas para a carteira do Banco Central do Brasil. Com base nessas variáveis, a necessidade de financiamento é calculada, deduzindo do serviço da DPMFi as receitas de outras fontes destinadas ao seu pagamento apuradas pela SOF. A diferença reflete a parcela das despesas com serviço da DPMFi que deverão ser custeadas com as receitas geradas pela emissão de títulos (fontes 143 e 144). 21 Esses vencimentos são abertos em principal, juros e outros encargos, considerando-se para esse cálculo os indexadores e as rentabilidades de cada um dos títulos que compõem a Dívida Pública Mobiliária Federal interna. 231 4.5 Classificação orçamentária da despesa A classificação orçamentária tem por finalidade fornecer transparência ao Orçamento, ao apresentar as despesas sob diferentes enfoques, definindo: i) quem é o responsável pela programação (classificação institucional); ii) para que os recursos são alocados (classificação por programas); iii) em que área de ação governamental a despesa será realizada (classificação funcional); e iv) o que será adquirido e qual seu efeito econômico (classificação econômica). 4.5.1 Classificação institucional Tem como principal função evidenciar as unidades administrativas responsáveis pela execução das dota- ções orçamentárias autorizadas pelo Poder Legislativo na Lei Orçamentária Anual. O Orçamento no Brasil apre- senta uma particularidade, no que se refere à classificação institucional, ao caracterizar em alguns casos como “órgãos” certos grupos de despesas ou encargos que não possuem nenhuma conotação própria ou unidade administrativa, como são os casos dos “órgãos”: “Operações Oficiais de Crédito”, “Transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios”, “Reserva de Contingência”. Nos mencionados “órgãos”, estão consignadas grandes somas de recursos, razão pela qual se justifica sua apresentação em separado, individualizando-as na classificação institucional para oferecer maior transparência ao processo orçamentário. No que diz respeito à Dívida Pública Federal, as despesas com o serviço das dívidas decorrentes de operações de empréstimos e financiamentos destinados a amparar programas setoriais são consignadas no orçamento de cada um dos respectivos ministérios, em programas e ações padronizados. Todas as demais despesas relativas à Dívida Pública Federal são consignadas nos “órgãos” “Encargos Financeiros da União (EFU)” e “Refinanciamento da Dívida Pública Mobiliária Federal”, ambos sob supervisão do Ministério da Fazenda, sendo a Secretaria do Tesouro Nacional a unidade administrativa responsável por sua execução. Tabela 2. Despesa dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, por órgão orçamentário 232 Dívida Pública: a experiência brasileira Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, v. I, Anexo II22 22 Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008. 233 4.5.2 Classificação funcional Tem por finalidade permitir a identificação das áreas em que as despesas são realizadas (educação, saúde e transportes, por exemplo). Composta por um conjunto de funções e subfunções predeterminadas, a classificação funcional é utilizada para a agregação dos gastos públicos por área de ação governamental nas três esferas de governo, na qual se procura evidenciar os objetivos nacionais. Também nesse ponto o Orça- mento brasileiro inova, ao criar a função “Encargos Especiais” para agrupar despesas que não se associam diretamente a um bem ou serviço a ser gerado, como, por exemplo, dívidas e ressarcimentos. Tabela 3. Receita e despesa dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social por função Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, vol. I, Quadro 8A23 23 Lei nº 11.451 de 7 de fevereiro de 2007. 234 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 4. Receita e despesa dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social por subfunção Encargos Especiais Recursos de todas as fontes R$ milhões Função/Subfunção Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, vol. I, Quadro 8A24 4.5.3 Classificação por programas Tem por objetivo agregar as ações do governo com a finalidade de demonstrar suas realizações (o pro- duto) em prol da sociedade, constituindo-se como módulo integrador entre o Orçamento e o planejamento, representado pelo Plano Plurianual. Em número de quatro, são assim definidas: l Programa – é o instrumento de organização da atuação governamental, visando à concretização dos objetivos pretendidos, sendo mensurado por indicadores estabelecidos no Plano Plurianual. l Projeto– instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa, envolvendo um con- junto de operações limitadas no tempo, das quais resulta um produto que concorre para a expansão ou o aperfeiçoamento da ação do governo. l Atividade – instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa, envolvendo um conjunto de operações que se realizam de modo contínuo e permanente, das quais resulta um produto necessário à manutenção da ação do governo. l Operações Especiais – despesas que não contribuem para a manutenção das ações de governo, das quais não resulta um produto, e não geram contraprestação direta na forma de bens ou serviços. A DPF tem seus programas classificados como operações especiais, ocorrendo mais dois desmembra- mentos a partir dos programas, denominados ações. Nestas, um código de quatro números permite localizar o destino dos recursos orçamentários, sendo possível identificar, por exemplo, quanto está sendo encaminhado ao pagamento da dívida mobiliária federal ou ao Proes,25 entre outras ações que explicitam à sociedade transparência na alocação dos recursos. 24 Lei nº 11.451 de 7 de fevereiro de 2007. 25 Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados e de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária. 235 Gráfico 3 . Distribuição percentual das despesas do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social por programas utilizados na administração da Dívida Pública Federal 0908 Operações espe- 0909 Operações 0905 Operações ciais: refinanciamento especiais: outros especiais: serviço da dívida da dívida externa encargos especiais interna (juros e amortizações) 1,5% 3,7% 25,2% 0906 Operações especiais: serviço da dívida externa (juros e amortizações) 0907 Operações 2,3% especiais: refinanciamento da dívida interna 67,2% Fonte: Lei Orçamentária Anual 200926 4.5.4 Classificação por natureza A classificação segundo a natureza da despesa, também conhecida como classificação econômica, compõe-se de categoria econômica, grupo de natureza da despesa, modalidade de aplicação e elemento de despesa. A categoria econômica define se a despesa é de capital ou corrente. O grupo define se a despesa de capital será referente a amortização, refinanciamento, inversão financeira ou investimento, ou, ainda, no caso de tratar-se de despesa corrente, se será relativa a pagamento de juros e encargos ou pessoal, por exemplo. A modalidade de aplicação indica se os recursos são aplicados diretamente por órgãos da mesma esfera de governo ou por outro ente da Federação, possibilitando a eliminação da dupla contagem dos recursos transferidos ou descentralizados. Por fim, o elemento de despesa identifica o objeto imediato de cada gasto e está pormenorizado no plano de contas. Sob a ótica da classificação da natureza de despesa, o pagamento de juros e o dos demais encargos da DPF são classificados como Despesas Correntes, e o pagamento de principal e o refinanciamento da dívida, como Despesas de Capital. 26 Lei nº 11.451 de 7 de fevereiro de 2007. 236 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 5. Resumo das despesas do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social por categorias econômicas e grupo de natureza de despesa Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, vol. I, Quadro 627 27 Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008. 237 4.6 Classificação orçamentária da receita 4.6.1 Classificação por natureza A classificação segundo a natureza da receita permite a análise da origem dos recursos. No caso da Dívida Pública Federal, as receitas decorrentes de operações de crédito (emissão de títulos ou contratos de empréstimos e financiamentos) são classificadas como receitas de capital e, tal como as despesas, têm um detalhamento específico que torna possível a identificação precisa da origem da receita. Tabela 6. Resumo das receitas do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social por categorias econômicas Recursos de todas as fontes R$ milhões Fonte: Lei Orçamentária Anual 2009, vol. I, Quadro 328 28 Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008. 238 Dívida Pública: a experiência brasileira 4.6.2 Classificação por fonte de recursos Constitui-se de agrupamentos de naturezas de receitas, atendendo a uma determinada regra de des- tinação legal, e serve para indicar como são financiadas as despesas orçamentárias. Entende-se por fonte de recursos a origem ou a procedência dos recursos que devem ser gastos com uma determinada finalidade. É necessário, portanto, individualizar esses recursos para evidenciar sua aplicação segundo a determinação legal. Dessa forma, a classificação da receita por fonte de recursos permite demonstrar o vínculo das receitas comprometidas com o atendimento de determinadas finalidades (despesas), bem como aquelas que podem ser livremente alocadas a cada elaboração da proposta orçamentária. A receita é classificada, ainda, como Primária (P) quando seu valor é incluído na apuração do Resultado Primário, no conceito acima da linha, e Não Primária ou Financeira (F) quando não é incluída nesse cálculo. As receitas financeiras são basicamente as provenientes de operações de crédito (endividamento), de aplicações financeiras e de juros, em consonância com o Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do Fundo Monetário Internacional de 1986. As demais receitas, provenientes de tributos, contribuições, patrimoniais, agropecuárias, industriais e de serviços, são classificadas como primárias. Costuma-se atribuir essa classificação – (P) ou (F) – à fonte de recursos, descrita na seção anterior, mas, na verdade, esse é um atributo da natureza de receita, que identifica a origem do recurso. Assim, o fato de uma fonte de recursos conter essencialmente naturezas de receita classificadas como primárias faz com que essa fonte também tenha a mesma característica. Tabela 7. Fontes de recursos tradicionalmente destinados ao pagamento da Dívida Pública Federal29 * Recursos que compõem o cálculo do superávit primário do governo federal. ** Apurado semestralmente, em balanço patrimonial, e transferido assim que aprovado pelo Conselho Monetário Nacional. *** Pagamento de estados, municípios e empresas ou ex-empresas estatais ao governo federal, originado de endividamento por este assumido no âmbito da renegociação da dívida pública externa. **** Recursos da venda de ações ou quotas de empresas públicas, com transferência do controle acionário (privatização). ***** Pagamento de estados e municípios ao governo federal, originado de endividamento por este assumido no âmbito da renegociação de suas dívidas internas em 1997. ****** Recursos da venda de ações ou quotas de empresas públicas, sem transferência do controle acionário. 29 Exceto as fontes 143 (recursos de emissão de títulos para pagamento do principal da DPF) e 144 (recursos de emissão de títulos para pagamento de juros e encargos da DPF). 239 5 Considerações finais O objetivo deste capítulo foi buscar o entendimento da estrutura orçamentária brasileira, no intuito de contemplar os aspectos relacionados à gestão da Dívida Pública Federal. É importante ressaltar que a apre- sentação do Orçamento destinado à dívida vem sendo aprimorada a cada ano, com o objetivo de fornecer à sociedade melhor entendimento e transparência em relação à gestão dos recursos públicos. Podemos citar algumas modificações feitas ao longo dos últimos anos com essa finalidade, não sendo a lista exaustiva, pois é contínuo o aprimoramento dos processos: l a consolidação de ações por finalidade, permitindo a identificação de valores destinados a securitização de dívidas, captações soberanas, empréstimos e financiamentos, entre outros; l o destaque, no Orçamento, dos recursos destinados ao refinanciamento da Dívida Pública Federal; l a separação, no Orçamento da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna, entre a emissão dos títulos destinada ao refinanciamento da dívida que vence em mercado daquela que vence na carteira do Banco Central, aumentando a transparência das contas públicas e mantendo coerência com o disposto no Plano Anual de Financiamento.30 Parte desse aprimoramento deve-se ao processo dinâmico inerente à administração pública, à medida que se criam novas leis ou são alteradas as já existentes. Se essas mudanças impactam de alguma forma a gestão de recursos públicos e, em particular, a gestão da Dívida Pública Federal, seja na geração de novas informações, seja na concepção de novos conceitos, é necessário que todo o processo associado à estrutura orçamentária brasileira seja aprimorado, na busca de uma gestão cada vez mais responsável e transparente. 6 Legislação orçamentária CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – Seção II – DOS ORÇAMENTOS, art. 165 a 169 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm) 6.1 Leis complementares Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp101.htm) Lei de Responsabilidade Fiscal – Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis?L4320.htm Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do DF. 30 O Plano Anual de Financiamento apresenta as diretrizes, as estratégias e as metas para a gestão da Dívida Pública Federal, nela considerada apenas a dívida em poder do público, por entender ser esta a que deve ser considerada para um eficiente monitora- mento dos custos e dos riscos da política fiscal. 240 Dívida Pública: a experiência brasileira 6.2 Leis ordinárias Lei nº 11.768, de 14 de agosto de 2008 (LDO 2009) (https://www.portalsof.planejamento.gov.br/sof/2009/ldo2009/Lei_11768_1_de_140808.pdf) Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração da Lei Orçamentária de 2009 e dá outras providências. LOA – Lei nº 11.897, de 30 de dezembro de 2008 (LOA 2009) (https://www.portalsof.planejamento.gov.br/sof/2009/Lei_11897_loa_de_30_12_08.pdf) Estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2009. PPA – Lei nº 11.653, de 7 de abril de 2008 (Plano Plurianual 2008-2011) (http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/plano_plurianual/PPA/081015_ PPA_2008_leiTxt.pdf) Dispõe sobre o Plano Plurianual para o período 2008-2011. Referências ALBUQUERQUE, Claudiano Manoel de; MEDEIROS, Márcio Bastos; SILVA, Paulo Henrique Feijó da. Gestão de Finanças Públicas: fundamentos e práticas de planejamento, orçamento e administração financeira com responsabilidade fiscal. Brasília, 2006. 492 p. CULAU, Ariosto Antunes; FORTIS, Martin Francisco de Almeida. Transparência e controle social na ad- ministração pública brasileira: avaliação das principais inovações introduzidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Disponível em: http://www.clad.org.ve/fulltext/0055406.pdf. Acesso em: 11/2006. NASCIMENTO, Edson D. Seis anos de responsabilidade fiscal: o que mudou no Brasil? Disponível em: http:// www.editoraferreira.com.br/publique/media/edson_toque5.pdf. Acesso em: 08/2006. SECRETARIA DE ORÇAMENTO FEDERAL. Manual Técnico de Orçamento MTO-02: instruções para a elabora- ção da proposta orçamentária da União para 2008. Orçamento fiscal e da seguridade social. Brasília, 2007. SENADO FEDERAL. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle (Conorf). Planos e orçamentos públicos: conceitos, elementos básicos e resumo dos projetos de leis do Plano Plurianual/2004-2007 e do Orçamento/2004. Disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/orcamento/sistema/CARTILHA2004.pdf. 241 242 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 2 Capítulo 5 Marcos regulatórios e auditoria governamental da dívida pública Laércio M. Vieira 1 Introdução Este capítulo descreve, em perspectiva geral, os marcos regulatórios e o processo de auditoria gover- namental sobre a dívida pública brasileira. A importância desses dois temas no processo de gestão da dívida pública é destacável, pois uma eficiente administração da dívida não é completa se não houver marcos regu- latórios consistentes e instituições fortes. Para tanto, o capítulo encontra-se dividido em quatro seções. Além desta Introdução, a seção 2 estuda os marcos regulatórios brasileiros envolvendo: análise sobre a estrutura do sistema jurídico brasileiro, apresen- tação de marcos conceituais sobre dívida pública nas legislações, descrição dos papéis dos agentes envolvidos e apresentação das principais regras sobre endividamento nas legislações brasileiras. Já a seção 3 estuda o processo de auditoria governamental aplicado à gestão da dívida pública e engloba aspectos conceituais sobre auditoria governamental e descrição e análise das características das instituições que realizam auditoria governamental no Brasil, com destaque para os aspectos associados à sua independência e objetividade e ao mandato para auditar a dívida pública. Por fim, a quarta seção apresenta os principais pontos destacados neste capítulo. Ao longo deste capítulo será possível observar que o país possui arcabouço institucional sólido, com marcos regulatórios consistentes, que estabelecem conceitos fundamentais, atribuições e responsabilidades para todos os agentes envolvidos em qualquer instância, mecanismos de enforcement que contemplam limites, vedações e punições, além de regras para transparência fiscal abrangentes. Assim, tanto no tocante aos marcos regulatórios quanto no que se refere ao processo de auditoria governamental, o país encontra-se alinhado com as melhores práticas difundidas pelos organismos internacionais de referência, em particular o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o International Organization of Supreme Audit Institutions (INTOSAI). 2 Marcos regulatórios sobre dívida pública no Brasil O estudo dos marcos regulatórios brasileiros sobre a dívida pública englobará: i) descrição da estrutura do sistema jurídico brasileiro, em especial aquele aplicado à gestão da dívida pública; ii) apresentação de marcos conceituais sobre dívida pública nas legislações; iii) descrição dos papéis dos agentes envolvidos nas definições normativas e na gestão da dívida pública; e iv) apresentação das principais regras sobre endivida- mento nas legislações brasileiras. 243 2.1 Estrutura do sistema jurídico brasileiro O estudo dos marcos regulatórios sobre dívida pública no Brasil pode ser dividido em três âmbitos: a) marcos conceituais; b) marcos sobre papéis dos agentes públicos envolvidos; e c) regras para endivida- mento do setor público. Para se estudar todos os marcos, é necessário prévio conhecimento sobre a estrutura normativa brasileira. Como é conhecido, o sistema jurídico brasileiro é baseado no chamado civil law (ou public law), de tradição europeia, como contraponto ao common law, de tradição anglo-saxã. O sistema de civil law está calcado na tradição de codificações de leis com profundas diferenças entre governança pública e governança privada. Nesse contexto, o sistema brasileiro é composto, dentre outros, pelas seguintes espécies normativas: a) Constituição; b) emendas constitucionais; c) leis complementares; d) leis ordinárias; e) medidas provi- sórias; e f) resoluções. Há um escalonamento de normas e, portanto, as leis submetem-se à Constituição e às eventuais emendas constitucionais. A Constituição Federal atual foi promulgada em 1988. As leis complementares, as leis ordinárias, as medidas provisórias e as resoluções não têm diferenças hierárquicas específicas, mas suas diferenças estão, regra geral, intrinsecamente associadas às matérias que podem regular e à rigidez, inclusive temporal, das disposições que regulam. Segundo Moraes (2004), a razão da existência de lei complementar consubstancia-se no fato de o legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alte- rações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações por meio de um processo legislativo ordinário. A lei complementar diferencia-se então da lei ordinária por dois motivos: a) de ordem material e b) de ordem formal. No primeiro caso, somente poderá ser objeto de lei complementar a matéria explicitamente 244 Dívida Pública: a experiência brasileira prevista na Constituição Federal. O segundo caso diz respeito ao processo legislativo de criação da lei, pois o quórum para aprovação de lei complementar é de maioria absoluta. Esse quórum inviabiliza alterações constantes da lei complementar provendo certa estabilidade e alguma rigidez a esse tipo de norma. As medidas provisórias são emitidas pelo chefe do Poder Executivo e caracterizam-se como atos normativos excepcionais e céleres para situações de urgência e emergência. São substitutas dos chamados decretos-leis, que foram extintos pela Constituição Federal de 1988. Os decretos-leis diferenciavam-se das medidas provisórias pela natureza das matérias permitidas, sendo para estas mais restrita, e pelo prazo de vigência, para estas de apenas sessenta dias, a partir dos quais se exige um processo especial para sua votação pelo Congresso Nacional. A questão da vigência do decreto-lei é tão relevante que a própria Constituição Federal de 1988 re- cepcionou alguns desses normativos no novo ordenamento jurídico. A “recepção” ocorre porque, apesar de a nova ordem constitucional ser incompatível – e por isso revogar – com a ordem constitucional antiga, não há necessidade de nova produção legislativa infraconstitucional nos casos em que não houver essa incompatibi- lidade. Daí a plena validade de alguns decretos-leis emitidos antes da Constituição Federal de 1988.1 O chefe do Poder Executivo pode ainda expedir decretos – que não têm força de lei – com o objetivo de dar aplicação à lei, mas nunca para modificá-la. Também no âmbito do Poder Executivo podem ser expedidos diversos atos normativos denominados “infralegais” (podendo se denominar portarias, instruções normativas ou circulares), que se destinam a regulamentar leis sem, contudo, modificá-las. Por fim, as resoluções são atos do Congresso Nacional ou de quaisquer de suas Casas (Câmara dos Deputados ou Senado Federal) destinadas a regulamentar matéria constitucionalmente vinculada a essas instituições. Ademais de compreender as espécies normativas, deve-se ressaltar que a República Federativa do Brasil é um Estado Federalista, composto por entes autônomos e independentes, conforme se depreende da leitura da própria Constituição Federal (art. 1º). O Estado brasileiro é composto por Estados-membros, pelo Distrito Federal (DF) e pelos municípios, ressaltando a característica peculiar desse modelo, no qual estes últimos também integram o Estado Federalista como entes autônomos. Nesse sentido, para cada um dos entes da Federação, a Constituição Federal estabeleceu um conjunto de competências legislativas, de gasto e de arrecadação, fornecendo as bases para o modelo denominado “federalismo fiscal”. De acordo com o modelo adotado, cada um dos entes da Federação possui as seguintes prerrogativas: a) capacidade de autogoverno; b) capacidade de autolegislação; c) capacidade de auto-organi- zação; e d) capacidade de autoadministração. Por conta disso, o modelo de ordenamento jurídico apresentado com as espécies normativas suprarrelacionadas é replicado em todos os entes subnacionais.2 As diversas competências constitucionais dos entes da Federação constituirão as despesas que serão financiadas por receitas diversas. A Constituição Federal tratou também de especificar a distribuição das receitas – especificamente as de impostos – entre os entes da Federação. Ademais das receitas de impostos e outras a eles destinadas, os entes subnacionais (estados, DF e municípios) também podem ser financiados por meio de endividamento e por transferências de recursos que 1 Como, por exemplo, o Decreto-Lei nº 201, de 1967, que dispõe sobre as responsabilidades dos prefeitos e dos vereadores, inclu- sive no tocante à gestão da dívida pública, e o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, denominado Código Penal. 2 Nesse caso, o topo da pirâmide, na qual consta a Constituição Federal, é substituído, respectivamente, por Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais nos estados e nos municípios. Já os decretos presidenciais (federais) são substituídos por decretos do governo de estado e decretos do prefeito municipal. 245 se podem dar: a) da União para os estados, o DF e os municípios; ou b) de estados para municípios. A União, nesse modelo, financia-se basicamente por meio de impostos, contribuições e dívida pública, não recebendo, em princípio, transferências governamentais de outros entes. Devido à capacidade de autolegislação que cada ente da Federação possui, cada um deve elaborar e executar sua própria lei orçamentária. Essa lei de ve conter suas receitas e despesas, inclusive aquelas rela- cionadas com o processo de endividamento. A Constituição Federal delegou à União a competência para estabelecer normas gerais sobre finanças públicas (art. 24, I e II, e § 1º). A União utilizou tal prerrogativa ao promulgar a Lei Federal nº 4.320, de 1964, e a Lei Complementar nº 101, de 2000 (conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), as quais apresentam dispositivos relacionados à dívida pública que obrigam todos os entes da Federação. Esse conjunto legislativo composto pela própria Constituição Federal, pela Lei Federal nº 4.320/64 e pela LRF será denominado doravante neste capítulo de “regulação orgânica ou estrutural da dívida pública”, devido ao fato de que proveem os alicerces da gestão das finanças públicas e da dívida pública no país.3 Adicionalmente, as Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs), que tratam de orientar as Leis Orçamentárias Anuais (LOAs), podem conter disposições relativas à divida pública. A LDO federal apresenta um capítulo com tais disposições. Esse conjunto legislativo receberá a denominação de conjunto de “regulação conjuntural da dívida pública”, devido ao fato de que tais legislações são aprovadas para vigorar durante o ano fiscal ao qual se referem. As principais características desses conjuntos de normas são apresentadas a seguir. 2.1.1 Lei Federal nº 4.320, de 1964 A Lei Federal nº 4.320/64 estatui normas gerais de direito financeiro para a elaboração e o controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. Trata-se de uma lei ordinária com “status de lei complementar”, por haver sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988 (art. 165) com tal característica. De maneira geral, esta lei está preocupada com: a) estabelecer procedimentos de ordem orçamentária, financeira, patrimonial e contábil para as entidades do setor público; b) estabelecer disposições estruturais sobre as leis orçamentárias; c) estabelecer princípios para contabilização de atos de gestão, bem como evidenciação das demonstrações contábeis. A referida lei, portanto, dispõe sobre regras gerais para preparação, execução, contabilidade e divulga- ção de orçamentos em cada nível de governo, quesito considerado boa prática de transparência fiscal pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), conforme apresentado em seu Manual de Transparência Fiscal (MTF), de 2007. 3 Esse conjunto de legislações que compõem o marco regulatório estrutural da dívida pública contempla normativos cuja abrangên- cia de aplicação é nacional, ou seja, válida para todos os entes integrantes da Federação. Em nível federal, no entanto, destaca-se ainda a Lei Federal nº 10.179, de 2001, que dispõe sobre os títulos da dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional e o Decreto-Lei nº 1.312, de 1974, que fornece a base legal para emissões no exterior. 246 Dívida Pública: a experiência brasileira Essa lei é regulamentada em nível federal pelo Decreto Federal nº 93.872, de 1986. Esse decreto dispõe, entre outros aspectos, sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, estabelecendo que todas as receitas e todas as despesas devem transitar pela denominada “Conta Única”. Ambos os normativos apresentam conceitos e regras sobre dívida pública, os quais serão explicados nas subseções seguintes (2.2 e 2.4). 2.1.2 Lei Complementar nº 101, de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) A Lei Complementar nº 101/2000 (LRF) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Encontra-se amparada na própria Constituição Federal (art. 163) e suas disposições. Além de difícil modificação legislativa devido à sua natureza, obrigam a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios (art. 1º § 2º). A LRF não revogou a Lei Federal nº 4.320/64, mas alterou alguns conceitos (como, por exemplo, o conceito de dívida fundada ou consolidada), o qual será apresentado na subseção seguinte (2.2). Ela possui um capítulo inteiro dedicado às disposições sobre dívida e endividamento, incluindo regras e penalidades de natureza fiscal, as quais também serão apresentadas em outra subseção (2.4). A Lei Federal nº 10.028, de 2000, denominada Lei de Crimes Fiscais, promoveu modificação no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940), inserindo o capítulo denominado “Dos Crimes contra as Finanças Públicas”, bem como na Lei nº 1.079, de 1950, que define os crimes de responsabilidade do presidente da República e dos governadores de estado, e ainda no Decreto-Lei nº 201, de 1967, que dispõe sobre a res- ponsabilidade dos prefeitos, incorporando um conjunto de penalidades (punições criminais) a serem aplicadas em caso de descumprimento de dispositivos da LRF, em especial aqueles relacionados ao endividamento do setor público. Em geral, as penalidades trazidas pelo ordenamento jurídico da LRF e da Lei Federal nº 10.028/2000, e ainda associadas às disposições da Constituição Federal, podem ser assim sistematizadas: Sistematização das penalidades relacionadas à gestão da dívida pública Penalidades fiscais Penalidades criminais Penalidades políticas Origem: LRF Origem: Lei nº 10.028/2000 Origem: Constituição Federal Em geral, envolvem: Em geral, envolvem: Em geral, envolve: intervenção a) suspensão de transferências a) penas por crimes (detenção, re- federal em estado ou interven- voluntárias;* clusão, cassação de mandato, ção estadual em município. b) impossibilidade de con- perda do cargo, inabilitação tratação de operações de para exercício de qualquer créditos; e função pública por até cinco c) necessidade de obtenção de anos); resultado primário. b) penas por infrações adminis- trativas (multa de 30% dos vencimentos anuais). * À exceção daquelas destinadas às áreas de saúde, educação e assistência social. 247 A subseção 2.4 apresenta essas penalidades associadas aos casos infringidos. No entanto, essas não são as únicas penalidades a que o gestor de dívida pública está sujeito, pois, em certos casos, também poderá tornar-se inelegível ou sofrer faltas administrativas e censuras éticas, conforme será apresentado na subseção 2.3.2. 2.1.3 Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) e Leis Orçamentárias Anuais (LOAs) federais As LDOs e as LOAs são leis ordinárias. Cada ente da Federação possui seu conjunto anual de LDOs e LOAs. De acordo com a Constituição Federal, compete às LDOs dispor, entre outros, sobre: a) metas e priori- dades da administração pública federal e b) elaboração da Lei Orçamentária Anual. O conjunto LDO, que dispõe sobre regras para elaboração e execução do orçamento, e LOA, que contém o próprio orçamento anual, destina-se a separar os momentos de decisão macroeconômica e de alocação microeconômica e encontra amparo constitucional (art. 165). Nesse caso, a coordenação LDO-LOA é con- dição necessária para que o sistema alocativo funcione integrado com as metas fiscais e com a gestão da dívida pública. A LRF incorporou novas atribuições à LDO, em especial disposições relativas ao planejamento e à trans- parência fiscal, as quais serão detalhadas na subseção 2.4.2.1. A LDO federal vem apresentando anualmente um capítulo com disposições relativas à Dívida Pública Federal. 2.2 Marcos conceituais sobre dívida pública Os marcos conceituais sobre dívida pública encontram-se dispostos nas legislações integrantes do conjunto de “regulação orgânica” suprarreferido e podem ser divididos em três categorias: a) marcos sobre conceitos de estoque (dívida pública); b) marcos sobre conceitos de fluxos (operações de crédito); e c) marcos sobre atos potenciais geradores de dívidas (concessões de garantias). 2.2.1 Conceito legal de dívida pública De acordo com o Decreto Federal nº 93.872, de 1986, que regulamenta a Lei Federal nº 4.320, de 1964, a dívida pública abrange: a) dívida flutuante e b) dívida fundada ou consolidada (art. 115). A própria Lei Federal nº 4.320/64, em conjunto com a LRF, apresenta os conceitos de dívida flutuante e dívida fundada. Por essa lei, dívida flutuante é um conceito exaustivo, no qual os elementos componentes se encontram relacionados em seu próprio texto. Assim, a dívida flutuante pode ter duas origens principais: Dívida flutuante (ou não consolidada) Obrigações oriundas da despesa orçamentária constante do Orçamento Anual Restos a pagar (em geral, fornecedores de obras Serviços da dívida a pagar (juros, encargos e e serviços públicos) amortizações) Obrigações oriundas de receitas não pertencentes ao setor público* Depósitos Débito de tesouraria *Também se enquadram como dívidas flutuantes as emissões de papel-moeda, as quais se submetem às disposições do Conselho Monetário Nacional, conforme normatização estabelecida pela Lei nº 4.595/64, que trata da regulação do sistema financeiro nacional. 248 Dívida Pública: a experiência brasileira Restos a pagar são obrigações financeiras primordialmente com fornecedores de obras e serviços públicos geradas a partir de despesas orçamentárias já realizadas, mas ainda não pagas até o dia 31 de dezembro de cada exercício financeiro. Em sentido amplo, os restos a pagar incluem os serviços da dívida a pagar que também se relacionam a despesas orçamentárias já realizadas, mas ainda não pagas, associadas a juros, encargos e amortização do principal da dívida pública, conforme disposto no Decreto Federal nº 93.872/86 (art. 67). Entende-se por “depósitos” as obrigações financeiras relacionadas a valores diversos recebidos pela administração pública (inclusive judiciais), bem como cauções em dinheiro que, em princípio, devem ser de- volvidas a quem de direito, após a ocorrência ou não de algum fato superveniente. Entende-se por “débitos de tesouraria” as obrigações financeiras relacionadas à contratação de operações de crédito por antecipação da receita orçamentária, denominadas ARO. Constituem operações de fluxo de caixa equivalentes aos empréstimos para capital de giro de empresas, conforme se pode verificar pelo texto da própria Lei nº 4.320/64 (art. 7º) e da LRF (art. 38). Estão submetidas a regras constitucionais e a limites legais advindos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Cabe destacar que a LRF estabeleceu regras e limites para os itens “restos a pagar” e “débitos de tesouraria”, ambos integrantes da dívida flutuante, os quais serão comentados na subseção 2.4. São dívidas fundadas (ou consolidadas) aqueles passivos cujo pagamento, amortização ou resgate de- pendem de dotação na Lei Orçamentária Anual. O conceito original advinha da Lei Federal nº 4.320/64, que dispunha que essa modalidade de dívida compreendia os compromissos de exigibilidade superior a 12 meses contraídos para atender a desequilíbrio orçamentário ou financeiro de obras e serviços públicos (art. 98). No entanto, no tocante à questão do prazo, a LRF passou a incluir nessa categoria também as operações de crédito de prazo inferior a 12 meses cujas receitas tenham constado do orçamento. Sendo assim, o conceito de dívida pública consolidada ou fundada passou a ser bem mais abrangente, não apenas no tocante a seus elementos componentes, mas também ao prazo, que tanto pode ser curto quanto longo. Dívida fundada ou consolidada (LRF, art. 29) Montante total, apurado sem duplicidade, das obrigações financeiras do ente da Federação assumidas em virtude de leis, contratos, convênios ou tratados e da realização de operações de crédito para amortização em prazo superior a 12 meses. Também integram a dívida pública consolidada as operações de crédito de prazo inferior a 12 meses cujas receitas tenham constado do orçamento. No tocante aos elementos componentes, o Decreto Federal nº 93.872/86 (art. 115) já tipificava que a dívida fundada pode ser: a) contratual: os valores originados de obrigações financeiras assumidas em virtude de contratos, tratados ou instrumentos congêneres; b) mobiliária: os valores originados de obrigações financeiras assumidas em virtude da emissão de títulos públicos. Neste último caso, a própria LRF (art. 29) apresenta o conceito de dívida mobiliária como a dívida representada por títulos emitidos pela União (nesse caso incluindo o Banco Central), pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. 249 A dívida fundada ou consolidada pode ser externa ou interna e, segundo a LRF, está sujeita a regras e limites, conforme definido pelo Senado Federal, os quais serão apresentados na subseção 2.4. 2.2.2 Conceito legal de operação de crédito Com a promulgação da LRF, o conceito de operação de crédito tornou-se bem mais abrangente, incluindo os compromissos financeiros assumidos em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros (LRF, art. 29). Ressalte-se que a expressão “outras operações assemelhadas” remete a uma estrutura conceitual exemplificativa de operações de crédito, já que outras operações, ainda que não expressamente ali tipificadas, mas que impliquem financiamento ao setor público, também podem ser consideradas como tal. Isso também pode ser corroborado pela leitura do disposto na própria LRF (art. 29, § 1º), que dispõe: “[...] equipara-se a operação de crédito a assunção, o reconhecimento ou a confissão de dívidas” pelo ente da Federação. A operação de crédito deve ser inserida no orçamento anual, conforme dispõe a Lei Federal nº 4.320/64, e deve ser transparecida em demonstrativos específicos, conforme dispõe a própria LRF. Tais atributos serão apresentados na subseção 2.4.2. Há, ainda, nessa lei regras e limites para contratação de operações de crédito, as quais serão apresentadas na subseção 2.4.1. Operação de crédito de grande importância é aquela relacionada ao refinanciamento da dívida mobiliária, que consiste na emissão de títulos para pagamento do principal da dívida, acrescido da atualização monetária, a qual também está sujeita a regras e limites que serão apresentados na subseção 2.4. 2.2.3 Conceito legal de concessão de garantia É oportuno registrar também que, a despeito de constituírem possíveis compromissos do setor público, as garantias concedidas ainda não são dívida líquida e certa. Pela LRF, concessão de garantia é compromisso de adimplência de obrigação financeira ou contratual assumida por ente da Federação ou entidade a ele vinculada (art. 29). Também está sujeita a regras e limites que serão apresentados na subseção 2.4. 2.3 Marcos sobre as responsabilidades dos agentes públicos envolvidos No tocante aos marcos regulatórios sobre as responsabilidades dos agentes envolvidos, destacam-se: a) os papéis do Parlamento, primordialmente emitindo normas; e b) do Executivo, primordialmente gerindo a dívida pública. Nesta subseção será possível observar, em especial, que as atribuições e as responsabilidades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em todos os níveis do governo no tocante a questões fiscais e, em especial, no tocante à dívida pública estão claramente definidos na Constituição Federal, o que atende às disposições sobre transparência fiscal emanadas pelo FMI (item 1.1.2), conforme avaliação realizada no Brasil por essa mesma instituição (IMF, 2001). Além disso, deve ser observado que o estabelecimento de padrões de ética para servidores públicos, em particular os referentes aos gestores da Dívida Pública Federal, no âmbito do Poder Executivo, além de claros, 250 Dívida Pública: a experiência brasileira são públicos, conforme prescreve o FMI no MTF 2007 (item 4.2.1), tendo sido avaliados por este organismo (IMF, 2001). Por fim, de acordo com o Banco Mundial,4 uma boa governança requer que a legislação pelo menos identifique as autoridades que podem contrair ou emitir novas dívidas, bem como o processo de gestão da dívida pública. O que se observa no caso brasileiro, com base nos parâmetros apresentados, é que o país adota as melhores práticas de gestão e governança apresentadas pelos organismos internacionais. 2.3.1 Papéis do Poder Legislativo no tocante à dívida pública No tocante ao Parlamento, de acordo com a Constituição Federal (art. 52), compete privativamente ao Senado Federal brasileiro: Competências do Senado Federal em matéria de dívida pública (Constituição Federal, art. 52) Dívida pública Operações de créditos Garantias Dívida consolidada Operações de créditos in- Concessão de garantias terna e externa O QUE: fixar, por proposta do O QUE: dispor sobre limites O QUE: dispor sobre limites e presidente da República, limites globais e condições para as condições para a concessão de globais para o montante da dívida operações de crédito externo e garantia em operações de crédito consolidada. interno. externo e interno. PARA QUEM: União, estados, PARA QUEM: União, estados, PARA QUEM: União. Distrito Federal e municípios. Distrito Federal e municípios. Dívida mobiliária Operações de créditos ex- terna O QUE: estabelecer limites O QUE: autorizar operações ex- globais e condições para o mon- ternas de natureza financeira tante da dívida mobiliária. PARA QUEM: União, estados, PARA QUEM: estados, Distrito Distrito Federal e municípios. Federal e municípios. O Senado Federal exerceu sua competência ao emitir as Resoluções nº 40 e nº 43, ambas de 2001, que dispõem, respectivamente, sobre os limites globais para o montante da dívida pública consolidada e da dívida pública mobiliária dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e sobre as operações de crédito internas e externas e concessão de garantias desses mesmos entes. Observa-se, portanto, que as competências do Senado Federal no tocante ao tema dívida pública e operações de crédito se destinam, em geral, a todos os entes da Federação (União, estados, Distrito Federal e municípios). 4 Managing public debt: from diagnostics to reform implementation. 251 Esses dispositivos são naturalmente replicados nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Mu- nicipais (equivalentes a Constituições Municipais), permitindo que os Parlamentos dos entes subnacionais também possam dispor sobre tais matérias em seus níveis de governo. No âmbito federal, no entanto, compete, ainda, ao Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 48) dispor sobre todas as matérias de competência da União, inclusive sobre operações de crédito, dívida pública e montante da dívida mobiliária federal e emissões de curso forçado. Conforme será explicado na seção 3, o Tribunal de Contas da União5 integra o Poder Legislativo e tem por missão institucional atuar como órgão de controle externo da gestão pública (auditoria governamental externa), possuindo mandato constitucional para auditar as operações com dívida pública. 2.3.2 Papéis do Poder Executivo no tocante à dívida pública No tocante ao Executivo, para o caso federal, a Lei Federal nº 10.683, de 2003, dispõe sobre a orga- nização da Presidência da República e dos ministérios.6 Por essa lei, cabe ao Ministério da Fazenda (MF), no âmbito do Poder Executivo, a administração das dívidas públicas interna e externa da União. Além disso, a própria LRF atribui ao MF a verificação do cumprimento dos limites e das condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação. A Lei Federal nº 10.683/2003 foi regulamentada pelo Decreto Federal nº 6.102, de 2007, que aprovou a estrutura interna do Ministério da Fazenda (MF), atribuindo à Secretaria do Tesouro Nacional (STN)7 a gestão operacional da dívida pública de responsabilidade direta ou indireta da União, inclusive a dívida externa de responsabilidade do Tesouro Nacional, e a atribuição de verificar os aspectos relacionados às operações de crédito. Atualmente, a Portaria MF nº 183/2003 delega competência do ministro da Fazenda ao secretário do Tesouro Nacional para realização de operações com títulos públicos, e a Portaria STN nº 410/2003 define as regras relacionadas aos leilões de títulos públicos. A STN/MF detém papel primordial na gestão da Dívida Pública Federal, tanto interna quanto ex- terna, embora por muito tempo esse papel tenha sido dividido com o Banco Central. Em relação à dívida externa, até 2004 o Banco Central era o agente do Tesouro Nacional para operacionalização das emissões de bônus no exterior, função transferida ao Tesouro a partir de janeiro de 2005, quando este passou a centra- lizar todas as atribuições referentes à dívida externa federal. Em relação à dívida interna, desde a criação da STN, em 1986, esta recebeu a atribuição de emissão de títulos para fins de política fiscal, enquanto o Banco Central permaneceu com poderes para emissão de títulos com o objetivo de política monetária. Entretanto, a LRF, em seu art. 34, proibiu que o BC emitisse títulos próprios, devendo passar a utilizar os títulos do Tesouro 5 O Tribunal de Contas da União (TCU) é a Entidade de Fiscalização Superior (EFS), ou Supreme Audit Institution (SAI), brasileira. 6 Esta lei trata da organização administrativa do Poder Executivo Federal a partir do governo do presidente Lula da Silva. A despeito de ser uma lei de 2003, no entanto, outras leis anteriores já regulamentavam o papel do Ministério da Fazenda no tocante à gestão da dívida pública. Em cada governo, há uma lei dessa natureza que trata de disciplinar a forma de organização do Poder Executivo federal. No governo anterior, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, esse dispositivo estava regulamentado pela Lei Federal nº 9.649, de 1998. 7 Na verdade, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) foi criada pelo Decreto Federal nº 92.452, de 1986. A atribuição de gerir tanto a dívida pública mobiliária federal interna quanto a dívida externa de responsabilidade do Tesouro Nacional foi dada pelo Decreto Federal nº 1.745, de 1995, mantida sua redação nos decretos que o substituíram. Atualmente, o Decreto regulamentador das competências institucionais da STN é o de nº 6.764, de 10/02/2009. 252 Dívida Pública: a experiência brasileira em sua carteira para realização de suas atribuições. Tal lei também determinou a transferência do resultado semestral positivo do BC para o Tesouro, bem como sua cobertura, quando negativo, por meio da emissão de títulos para a carteira da autoridade monetária. Como forma de assegurar enforcement, os administradores do Poder Executivo Federal, além das pena- lidades específicas aplicadas por descumprimentos de dispositivos da LRF, conforme destacado na subseção 2.1.2 e detalhado na subseção 2.4, também estão sujeitos ao Código de Ética Pública, instituído pela Lei Federal nº 8.027, de 1990, que prevê a punição por meio de advertência ou até mesmo demissão. Adicionalmente, aqueles administradores investidos de altos cargos – ministros ou secretários – estão sujeitos também aos dispositivos específicos do Código de Conduta da Alta Administração Federal, que prevê, conforme a gravidade da violação estipulada, advertência e censura ética. A STN também emitiu um Código de Ética e de Padrões de Conduta Profissional dos Servidores dessa instituição (Portaria STN nº 27, de 20088), que dispõe, entre outros temas, sobre as restrições quanto à aqui- sição e à alienação de participações acionárias, títulos ou outros produtos financeiros emitidos por empresas estatais federais ou ainda títulos da dívida pública mobiliária federal. A esse respeito, destacam-se as seguintes restrições a serem respeitadas pelo servidor: alienar ativos em prazo não inferior a 12 meses da data de sua aquisição, efetuar compras somente até o quinto dia útil de cada mês e efetuar somente uma compra por ativo por mês. A inobservância das restrições previstas no código pode conduzir a sanções legais diversas. Além dessas penalidades, aqueles que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crimes contra a economia popular, a administração pública e o patrimônio público, e os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável, por decisão dos Tribunais de Contas, serão considerados inelegíveis.9 Cabe destacar, por fim, que a própria Constituição estabeleceu a exigência de manutenção de órgão de controle interno no âmbito do próprio Poder Executivo (espécie de auditoria interna) com a finalidade de exercer, entre outras atribuições, o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e dos haveres da União, funcionando como mais um nível de enforcement. A Lei Federal nº 10.180, de 2001, atribuiu à Controladoria-Geral da União (CGU) essa função. O processo de auditoria governamental da dívida pública é tratado na seção 3 deste capítulo. 2.4 Regras para endividamento do setor público No tocante aos marcos regulatórios sobre regras para endividamento do setor público, destacam-se aspectos relacionados: a) a regras materiais sobre condições, vedações, limites e penalidades; e b) a regras de planejamento e transparência de informações. De acordo com o Banco Mundial,10 a existência de regras e limites para endividamento constitui uma boa prática de gestão. Adicionalmente, avaliação do FMI sobre as finanças do governo central (IMF, 2001) as 8 A rigor, o Código de Ética dos funcionários da Secretaria do Tesouro Nacional que trabalham nas áreas referentes à dívida pú- blica e aos haveres mobiliários da União já existia anteriormente, conforme Portaria STN nº 44, de 20 de fevereiro de 2001. Tal portaria foi revogada pela Portaria STN nº 602, de 2005, a qual já se apresentava mais exigente no tocante aos padrões de conduta. O atual normativo (Portaria STN nº 27, de 2008) reforça tais exigências e amplia o alcance do código para todos os servidores da Secretaria. 9 Para cargos públicos providos mediante processo eleitoral (Lei Complementar nº 64, de 1990). 10 Managing public debt: from diagnostics to reform implementation (Capítulo 5). 253 considera detalhadas, abrangentes e prontamente disponíveis, conforme requerido pelo MTF 2007 da referida instituição, em seus itens 3.1 e 3.2. 2.4.1 Condições, vedações, limites e penalidades As regras sobre condições, vedações, limites e penalidades podem ser didaticamente distribuídas entre regras para formação de estoques (dívida pública), contratação de operações de crédito (fluxo) e concessões de garantias. 2.4.1.1 Regras para formação de estoque: a dívida pública Existem regras nas legislações orgânicas tanto para dívidas flutuantes (restos a pagar) quanto para dívi- das fundadas ou consolidadas. Essas regras estão dispostas tanto na LRF quanto nas Resoluções nº 40/2001 e nº 43/2001 do Senado Federal. No tocante à dívida flutuante, a LRF contém dispositivo que impede a chamada “herança fiscal”, que consistia na transferência de dívidas com fornecedores de obras, bens e serviços (denominados “restos a pagar”) entre mandatos eletivos. Pelos normativos atuais, o limite de dívida em restos a pagar é o da disponibilidade de caixa do Poder Executivo ou dos órgãos integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário de cada ente da Federação. Limite para dívida flutuante (restos a pagar) Válido para União, estados, Distrito Federal e municípios (individualmente para seus Poderes). Regra (LRF) Vedação de contração, nos últimos dois quadrimestres de seu mandato, de obrigação (despesa) que não possa ser cumprida integralmente dentro desse mandado ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem suficiente disponibilidade de caixa. Limite (LRF) A contração de restos a pagar está limitada à disponibilidade de caixa. Verificação de cumprimento (LRF) A verificação de atendimento do limite será realizada ao final do exercício financeiro do final do mandato. Penalidades criminais (Lei nº 10.028/2000) Crime: a) inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar (autorizar a inscrição em restos a pagar de despesa que exceda o limite legal) e b) não cancelamento de restos a pagar (deixar de promover o cancelamento de montante de restos a pagar inscrito em valor superior ao valor legal). A necessidade de controle e regulação dos restos a pagar é justificada em face do risco de conversão dessas dívidas em dívidas fundadas ou consolidadas, à semelhança do que ocorreu com dívidas de fornecedores de serviços com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que gerou a necessidade de emissão de títulos públicos por meio da Lei Federal nº 11.051, de 2004. 254 Dívida Pública: a experiência brasileira No caso da dívida fundada ou consolidada, a LRF determinou que, em noventa dias após sua publica- ção, o presidente da República submeteria ao Senado Federal proposta de limites globais para montante da dívida consolidada dos três entes da Federação e ao Congresso Nacional projeto de lei com limites para a dívida mobiliária federal. Ambos foram encaminhados pelo presidente, mas, até a presente data, apenas as propostas ao Senado Federal se converteram em resoluções.11 Conforme dispunha a LRF, as propostas de limites foram apresentadas em termos de dívida líquida e em percentual da receita corrente líquida (RCL)12 e passaram a se constituir limites máximos para endividamento. Limites para dívida fundada ou consolidada líquida (Resolução nº 40/2001 do Senado Federal) União Estados/DF Municípios Não poderá exceder Ao final de 15 anos (2002- Ao final de 15 anos (2002-2017) a 350% da RCL. 2017) não poderá exceder a não poderá exceder a 120% da 200% da RCL.1 RCL.* * A diferença entre o percentual em 2002 e o limite deverá ser reduzida à razão de 1/15 por ano. Caso o limite seja atingido antes do prazo previsto, este não mais poderá ser descumprido. A verificação de cumprimento do limite, de acordo com a LRF e a própria Resolução nº 40/2001 do Senado Federal, deve ser realizada ao final de cada quadrimestre, sendo facultado aos municípios com popu- lação inferior a 50 mil habitantes optar por realizar essa apuração semestralmente. Caso os entes da Federação não cumpram os limites estabelecidos, o ordenamento jurídico contempla um conjunto de mecanismos de enforcement, dentre os quais se destacam os seguintes: 11 As supracitadas Resoluções nº 40/2001 e nº 43/2001 do Senado Federal. 12 Entende-se por receita corrente líquida (RCL) o somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidos de valores de transferências de recursos obrigatoriamente destinadas a outros entes da Federação, por determinação constitucional ou legal, e a fundos de previdência de servidores públicos. 255 Mecanismos de enforcement de limites para a dívida fundada ou consolidada líquida Válido para União, estados, Distrito Federal e municípios. Regra de recondução ao limite (LRF e Resolução nº 40/2001 do Senado Federal) Se a dívida consolidada de um ente da Federação ultrapassar o respectivo limite ao final de um quadrimestre, deverá ser a ele reconduzida até o término dos três subsequentes, reduzindo o excedente em pelo menos 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro. Penalidades I – Penalidades fiscais (LRF e Resolução nº 40/2001)* Enquanto perdurar o excesso, o ente que nele houver incorrido: a) estará proibido de realizar operação de crédito interna ou externa, inclusive por antecipação de receita, ressalvado o refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária; e b) terá de obter resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite, promovendo, entre outras medidas, limitação de empenho. Essas restrições aplicam-se imediatamente se o montante da dívida exceder o limite no primeiro quadrimestre do último ano do mandato do chefe do Poder Executivo. Vencido o prazo para retorno da dívida ao limite, e enquanto perdurar o excesso, o ente ficará também impedido de receber transferências voluntárias da União ou do estado. II – Penalidades criminais ou infrações administrativas (Lei Federal nº 10.028/2000) – Crime: deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos prazos estabelecidos em lei, quando ultrapassar o valor resultante da aplicação do limite máximo fixado pelo Senado Federal. – Penalidade: detenção de três meses a três anos (para prefeitos) e/ou perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco anos por crime de responsabilidade (para prefeitos, governadores e presidente da República), não excluindo processo e julgamento por crime comum. – Infração: não obter resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite. – Penalidade: multa de 30% dos vencimentos anuais para o agente que lhe der causa, sendo a infra- ção processada e julgada pelo Tribunal de Contas responsável pela fiscalização. III – Penalidades políticas (Constituição Federal, arts. 34 e 35) – Intervenção federal, no estado ou no Distrito Federal, para reorganizar as finanças, caso estes suspen- dam o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior. – Intervenção estadual, no município que suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior. Controle social LRF (art. 31, § 4º) O Ministério da Fazenda divulgará, mensalmente, a relação dos entes que tenham ultrapassado os limites das dívidas consolidada e mobiliária. * Essas penalidades também serão observadas em caso de descumprimento dos limites de dívida mobiliária. 256 Dívida Pública: a experiência brasileira A LRF apresenta ainda dispositivo de absorção de rupturas ao dispor que sempre que alterados os fundamentos das propostas de que trata este artigo, em razão de instabilidade econômica ou alterações nas políticas monetária ou cambial, o presidente da República poderá encaminhar ao Senado Federal ou ao Congresso Nacional solicitação de revisão dos limites. 2.4.1.2 Regras para o fluxo: as operações de crédito e o refinanciamento da dívida pública Nas regras para operações de crédito é que estão as maiores disposições constitucionais e legais. A LRF dispõe sobre as condições necessárias para contratação de operações de crédito, destacando-se, dentre outras: a) existência de autorização na lei orçamentária; b) observância das disposições fixadas pelo Senado Federal nas Resoluções nº 40/2001 e nº 43/2001; c) em caso de operação de crédito externa, autorização específica do Senado Federal; e d) atendimento do limite imposto pela regra de ouro. A regra de ouro, conforme disposto na Constituição Federal, consiste na proibição de realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital no período.13 A LRF regulamenta o comando constitucional ao dispor que deve ser considerado, em cada exercício financeiro, o total dos recursos de operações de crédito nele ingressados e o das despesas de capital executadas. Adicionalmente, a LRF, em seu art. 30, inciso I, determina que o Senado Federal regulamente os limites para as operações de crédito14 da União, dos estados, do DF e dos municípios. Limites para operações de crédito (Resoluções nº 43/2001 e nº 48/2007, do Senado Federal) União Estados, Distrito Federal e municípios I – Operações de crédito 60% da RCL para contratações a) 16% da RCL para contratações de operações de crédito* por de operações de crédito¹ por ano; ano fiscal. b) 11,5% da RCL para serviço (juros, encargos e amortizações) por ano. II – Operações de crédito por antecipação da receita orçamentária Ainda não regulamentado. O saldo devedor não poderá exceder, no exercício em que estiver sendo apurado, a 7% da RCL. * Exceto as operações de crédito realizadas para amortização da dívida pública que vence no exercício fiscal. 13 Ressalvadas aquelas autorizadas pelo Poder Legislativo por maioria absoluta e com finalidade precisa. 14 Destaca-se que o conceito de operações de crédito para acompanhamento do limite da regra de ouro não é equivalente ao utilizado para o novo limite criado pela LRF. Enquanto o primeiro se restringe às operações que geram receita financeira, a segunda adiciona a estas os compromissos financeiros assumidos em razão de mútuo, a abertura de crédito, a emissão e o aceite de título, a aquisição financiada de bens, o recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços e o ar- rendamento mercantil, dentre outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros (LRF, art. 29). 257 A verificação de cumprimento do limite deve ser realizada ao final de cada quadrimestre, sendo facultado aos municípios com população inferior a 50 mil habitantes optar por realizar essa apuração semestralmente. A operação de crédito por antecipação de receita orçamentária (ARO) destina-se a atender insufici- ência de caixa durante o exercício financeiro e cumprirá todas as exigências requeridas para operações de crédito. As AROs somente poderão ser realizadas a partir do décimo dia do início do exercício e deverão ser liquidadas, com juros e outros encargos incidentes, até o dia 10 de dezembro de cada ano. Adicionalmente, tais antecipações de receita estão proibidas enquanto existirem operações anteriores da mesma natureza não integralmente resgatadas, bem como no último ano de mandato do presidente, do governador ou do prefeito municipal (LRF, art. 38). As operações de crédito, além de se submeterem aos limites especificados, estão também sujeitas às seguintes vedações: Vedações em matéria de operação de crédito Operações entre entes da Federação (LRF) Regra: é vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação e outro sob qualquer forma¹. Operações entre instituições financeiras estatais e seus controladores (LRF) Regra: é proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.* Operações entre entes da Federação e o Banco Central do Brasil (Constituição Federal e LRF) Regras constitucionais (Constituição, art. 164): a) é vedado ao Banco Central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira; b) o Banco Central poderá comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional com o objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de juros. Regras legais (LRF, arts. 35 e 39): a) é vedada a realização de operação de crédito entre Banco Central e União; b) é vedada a emissão de títulos da dívida pública pelo Banco Central; c) o Banco Central só poderá comprar diretamente títulos emitidos pela União para refinanciar a dívida mobiliária federal que estiver vencendo na sua carteira; d) é vedado à União (por meio do Tesouro Nacional) adquirir títulos da Dívida Pública Federal existentes na carteira do Banco Central, salvo para reduzir a dívida mobiliária. Operações com fornecedores (LRF) Regra: é vedada a assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços mediante emissão, aceite ou aval de título de crédito ou sem autorização orçamentária para pagamento a posteriori. * É permitido, no entanto, a estados e municípios adquirirem títulos da dívida da União para aplicação de suas disponibilidades ou à instituição financeira estatal adquirir títulos da dívida pública para atender a investimento de seus clientes (LRF, arts. 35 e 36). 258 Dívida Pública: a experiência brasileira Caso os entes da Federação não cumpram as condições, os limites e as restrições estabelecidos, o orde- namento jurídico contempla um conjunto de mecanismos de enforcement, dentre os quais se destacam: Penalidades em operações de crédito e refinanciamento da dívida pública Válido para União, estados, Distrito Federal e municípios. I – Penalidades fiscais (LRF e Resolução nº 40/2001) Em caso de descumprimento de limite, o ente que nele houver incorrido: a) estará proibido de realizar operação de crédito interna ou externa, inclusive por antecipação de receita, ressalvado o refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária; b) terá de obter resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite, promovendo, entre outras medidas, limitação de empenho. II – Penalidades criminais (Lei Federal nº 10.028/2000) II.1 – Operações de crédito – Crime: ordenar, autorizar ou contratar operação de crédito em desacordo com as disposições da LRF e das resoluções do Senado Federal. – Penalidade: reclusão de um a dois anos e/ou perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco anos, por crime de responsabilidade (para prefeitos, governadores e presidente da República), não excluindo processo e julgamento por crime comum. – Crime: ordenar ou autorizar a destinação de recursos provenientes da emissão de títulos para finalidade diversa da prevista na lei que a autorizou. – Penalidade: detenção de três meses a três anos (para prefeitos) e/ou perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco anos, por crime de responsabilidade (para prefeitos, governadores e presidente da República), não excluindo processo e julgamento por crime comum. – Crime: ordenar, autorizar ou promover a oferta pública ou a colocação no mercado financeiro de títulos da dívida pública sem que tenham sido criados por lei ou sem que estejam registrados em sistema centralizado de liquidação e custódia. – Penalidade: reclusão de um a quatro anos. II.2 – Operações de crédito por antecipação da receita orçamentária – Crime: contratar ou resgatar operação de antecipação de receita orçamentária em desacordo com a lei. – Penalidade: detenção de três meses a três anos (para prefeitos) e/ou perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco anos, por crime de responsabilidade (para prefeitos, governadores e presidente da República), não excluindo processo e julgamento por crime comum. 259 2.4.1.3 Regras para concessões de garantias Os entes poderão conceder garantia em operações de crédito internas ou externas, observados os mesmos critérios estabelecidos para contratação de operações de crédito. A garantia estará condicionada ao oferecimento de contragarantia, em valor igual ou superior ao da garantia a ser concedida, e à adimplência da entidade que a pleitear relativamente às suas obrigações com o garantidor e as entidades por este controladas. De acordo com a Resolução nº 43/2001 do Senado Federal, para concessão de novas garantias há necessidade de observar o limite de 22% da RCL do ente da Federação para o saldo global das garantias concedidas, sendo consideradas nulas as garantias concedidas acima dos limites fixados (LRF, art. 40). Além disso, o ente da Federação cuja dívida não paga tiver sido honrada pela União ou por um estado em decorrência de garantia prestada em operação de crédito terá suspenso o acesso a novos créditos ou financiamentos até a liquidação da mencionada dívida. Por fim, prestar garantia em operação de crédito sem que tenha sido constituída contragarantia em valor igual ou superior ao valor da garantia prestada gera a possibilidade de penalização, com detenção de três meses a um ano (Lei Federal nº 10.028, de 2000). 2.4.2 Regras sobre planejamento e transparência fiscal A LRF denomina instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: a) os planos, os orçamentos e as leis de diretrizes orça- mentárias; b) as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; c) o Relatório Resumido da Execução Orçamentária; e d) o Relatório de Gestão Fiscal. A referida lei também busca maior transparência mediante incentivo à participação popular e à realização de audiências públicas durante os processos de elaboração e de discussão dos planos, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e orçamentos. 2.4.2.1 Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) e Leis Orçamentárias Anuais De acordo com a LRF, as LDOs devem dispor, entre outros, sobre: a) equilíbrio entre receitas e despesas; e b) critérios e forma de limitação de empenho, a ser efetivada quando as metas de resultado nominal ou primário estiverem comprometidas ou quando a dívida consolidada ultrapassar o limite legal. Deve conter ainda três anexos: a) Anexo de Metas Fiscais; b) Anexo de Riscos Fiscais; e c) Anexo espe- cífico para a União sobre Políticas Monetária, Creditícia e Cambial. 260 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexos integrantes das LDOs (LRF, art. 4º) Anexo de Metas Fiscais a) Contém metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes. b) Contém avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior. c) Contém demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica. Anexo de Riscos Fiscais Contém avaliação dos passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, in- formando as providências a serem tomadas, caso se concretizem. Anexo Específico sobre Política Monetária Contém os objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para seus principais agregados e variáveis para o exercício subsequente. A proposição de LDO sem Anexo de Metas Fiscais constitui infração administrativa passível de punição, con- forme a Lei Federal nº 10.028/2000, com multa de até 30% dos vencimentos anuais do agente que der causa. No tocante à LOA, a Lei Federal nº 4.320/64 já dispunha que a Lei de Orçamentos compreenderá todas as receitas, inclusive as de operações de crédito autorizadas em lei (art. 3º). Corroborando tal dispositivo, a LRF dispõe que todas as despesas relativas à dívida pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que as atenderão terão de constar da lei orçamentária anual, e, no caso específico das operações de refinanciamento da dívida pública, estas devem constar de forma destacada na LOA (LRF, art. 5º). Destaque-se ainda que, para calcular alguns limites, é necessário separar o serviço da dívida em juros e principal atualizado. Para tal, a LRF determina que a atualização monetária do principal da dívida mobiliária re- financiada não poderá superar a variação do índice de preços previsto na LDO ou em legislação específica. Além dessas disposições, o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) deve ser elaborado de forma com- patível com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias e com as normas da própria LRF, devendo conter, anexo, demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e as metas constantes do Anexo de Metas Fiscais da LDO. O PLOA conterá, ainda, reserva de contingência destinada ao atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos. A forma de utilização e o montante dessa reserva serão definidos com base na receita corrente líquida e estabelecidos na LDO. Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira segundo os critérios fixados pela LDO. Por fim, a disseminação da legislação e dos documentos do orçamento federal é abrangente. Informações sobre os instrumentos do orçamento federal – PPA, LDO e LOA – estão disponíveis no site do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão na internet. Tal requisito enquadra-se como boa prática de transparência fiscal, conforme definido pelo FMI no MTF 2007 (itens 2.1, 3.1 e 3.2) e já submetido à avaliação pela mesma instituição (IMF, 2001). 261 2.4.2.2 Audiências públicas Conforme já comentado, a LRF busca maior transparência mediante a realização de audiências públicas. Trata-se de mais uma boa prática de transparência fiscal, conforme definido pelo FMI no MTF 2007 (item 4.3), que prescreve a necessidade de escrutínio público de informações fiscais. A seguir, detalharemos as principais audiências públicas previstas pela LRF. Audiências públicas, segundo a LRF (art. 9º) Metas fiscais Metas monetárias, creditícias e cambiais PARA QUE Avaliação do cumprimento das metas fiscais. Avaliação do cumprimento dos objetivos e das metas das políticas monetária, creditícia e cambial (eviden- ciando o impacto e o custo fiscal de suas operações e os resultados demonstrados nos balanços). QUANDO Quadrimestralmente, no final dos meses de maio, Semestralmente, noventa dias após o encerramento setembro e fevereiro (do ano seguinte). de cada semestre. QUEM Ministro da Fazenda ou secretário do Tesouro Presidente do Banco Central. Nacional, na União.* PARA QUEM Comissão Mista de Orçamento do Congresso Comissões Temáticas do Congresso Nacional. Nacional, na União.* * Ou equivalentes nos estados, no DF e nos municípios. 2.4.2.3 Contabilidade, prestações de contas e relatórios fiscais A LRF assegura a transparência mediante a publicação das prestações de contas e dos relatórios fiscais. Em ambos os casos, a base dessa transparência é a escrituração contábil. Pela Lei Federal nº 4.320/64, as dívidas flutuantes e fundadas devem ser escrituradas, destacando-se, quanto à dívida fundada, que esta será escriturada com individuação e especificações que permitam verificar, a qualquer momento, a posição dos empréstimos, bem como os respectivos serviços de amortização e juros. Adicionalmente, a LRF dispõe que, além de obedecer às demais normas de contabilidade pública, a escri- turação das contas públicas deve registrar as operações de crédito, as inscrições em restos a pagar e as demais formas de financiamento ou assunção de compromissos com terceiros, de modo que sejam evidenciados o montante e a variação da dívida pública no período, detalhando, pelo menos, a natureza e o tipo de credor. Essa escrituração, na medida do possível, deve seguir padrões válidos para todos os entes da Federação, permitindo a consolidação, nacional e por esfera de governo, das contas dos entes da Federação e sua divul- gação, inclusive por meio eletrônico de acesso público. Tais padrões serão emitidos pelo Conselho de Gestão Fiscal, instância colegiada concebida pela LRF, mas ainda não implementada. A esse respeito, conforme disposto no art. 50 da LRF, é permitido à Secretaria do Tesouro Nacional, órgão central do Sistema de Contabilidade Federal, assumir tal atribuição até a implantação do colegiado. Utilizando os poderes a ela conferidos pela LRF, 262 Dívida Pública: a experiência brasileira a STN aprovou, em março de 2009, a 1ª edição do Plano de Contas Aplicado ao Setor Público (PCASP), que deverá ser utilizado pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, de forma facultativa no exercício de 2010 e obrigatoriamente a partir de 2011. Sobre o mesmo tema, por intermédio da Portaria MF nº 184, de 2008, o Ministério da Fazenda deter- minou à STN o desenvolvimento de ações no sentido de promover a convergência da contabilidade pública brasileira às Normas Internacionais de Contabilidade publicadas pela International Federation of Accountants (IFAC) e às Normas Brasileiras de Contabilidade aplicadas ao Setor Público, editadas pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC), respeitados os aspectos formais e conceituais estabelecidos na legislação vigente. Já a Portaria Interministerial15 nº 263, de 2008, reinstituiu o Grupo de Trabalho, criado pela Portaria Interministerial nº 90, de 27 de abril de 2007, para avaliação e implementação de nova metodologia de estatísticas de finanças públicas, sob o marco analítico do Government Finance Statistics Manual-2001 (GT GFSM-2001). A escrituração contábil provê o balanço patrimonial e os demais demonstrativos contábeis que compõem a prestação de contas do presidente da República, do governador e do prefeito municipal, dentre outras autori- dades. A prestação de contas presidencial deve ser remetida ao Congresso Nacional em até sessenta dias após a abertura da sessão legislativa (dia 2 de abril de cada ano) e é encaminhada ao Tribunal de Contas da União para emissão de parecer prévio conclusivo sobre sua regularidade, retornando posteriormente ao Congresso para julgamento. Esta prática é replicada em todos os níveis governamentais. Nesse caso, trata-se de mais uma boa prática de transparência fiscal, conforme definido pelo FMI no MTF 2007 (itens 2.2.4 e 4.3.2). Também com base na escrituração contábil, deverão ser emitidos dois relatórios de natureza fiscal: a) o relatório resumido da execução orçamentária; e b) o relatório de gestão fiscal. Relatórios fiscais com informações sobre a gestão da dívida pública Relatório resumido da execução Relatório de gestão fiscal orçamentária (LRF, arts. 54 e 55) (LRF, arts. 52 e 53) COMPOSIÇÃO É composto, dentre outros, de: É composto, dentre outros, de: a) demonstrativos de realização das receitas e das a) demonstrativos de comparação da dívida con- despesas, destacando-se, separadamente nas solidada ou mobiliária com seus limites; receitas de operações de crédito e nas despesas b) demonstrativos de comparação das concessões com amortização da dívida, os valores referentes de garantias com seus limites; ao refinanciamento da dívida mobiliária; c) demonstrativos de comparação do montante de b) demonstrativos dos resultados nominal e operações de crédito com seus limites; e primário; d) demonstrativos de comparação da inscrição c) demonstrativos dos restos a pagar; e em restos a pagar com as disponibilidades de d) demonstrativos de atendimento da regra de caixa. ouro. 15 Assinada pelos representantes do Ministério da Fazenda, do Ministério do Planejamento e do Banco Central. 263 PUBLICAÇÃO Bimestralmente. Quadrimestralmente no final dos meses de maio, setembro e janeiro (do ano seguinte ao de referência*). QUEM Ministro da Fazenda ou secretário do Tesouro Na- Presidente da República, ministro da Fazenda ou cional, na União.² secretário do Tesouro Nacional na União e contro- lador-geral da União.** PENALIDADES I – Fiscais: o descumprimento dos prazos previstos impedirá, até que a situação seja regularizada, que o ente da Federação receba transferências voluntárias e contrate operações de crédito, exceto as destinadas ao refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária.*** II – Criminais: não há. II – Criminais: constitui infração administrativa deixar de divulgar ou de enviar ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fis- cal nos prazos e nas condições estabelecidos em lei, passível de multa de 30% dos vencimentos anuais. * Sendo facultado aos municípios com população inferior a 50 mil habitantes optar por realizar essa apuração semestralmente. ** Ou equivalentes nos estados, no Distrito Federal e nos municípios. *** Exceto para a União. Além desses instrumentos, sem prejuízo das atribuições próprias do Senado Federal e do Banco Cen- tral do Brasil, o Ministério da Fazenda efetuará o registro eletrônico centralizado e atualizado das dívidas públicas interna e externa, garantido o acesso público às informações, que incluirão: a) encargos e condições de contratação e b) saldos atualizados e limites relativos às dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito e concessão de garantias. De fato, foi o conjunto desses dispositivos que levou o FMI a considerar que o Brasil tem adquirido um alto grau de transparência fiscal, aliado a importantes avanços na administração de suas finanças públicas (IMF, 2001). No entanto, a mesma instituição considera que, como requisito de transparência fiscal, as finan- ças públicas devem ser submetidas a escrutínio por um órgão nacional de auditoria independente do Poder Executivo. É sobre o papel da auditoria governamental no sistema regulatório que trata a seção seguinte. 3 Auditoria governamental sobre dívida pública A auditoria governamental é uma parte indispensável do sistema regulatório, estabelecida com o intuito, dentre outros, de detectar e revelar desvios de padrões e violações de normas, o que contribui de forma relevante para o enforcement dos marcos legais. O estudo da auditoria governamental aplicada à dívida pública desta seção englobará a) aspectos conceituais sobre auditoria governamental; e b) descrição e análise das características das instituições que 264 Dívida Pública: a experiência brasileira realizam auditoria governamental no Brasil, com destaque para os aspectos associados à sua independência e objetividade e ao mandato para auditar dívida pública. 3.1 Aspectos conceituais sobre auditoria governamental Auditoria é o processo, baseado em conjunto de procedimentos técnicos, de confrontação entre uma situação encontrada (condição) e um determinado critério aplicado, de forma independente, sobre uma relação que envolve a obrigação de responder por uma responsabilidade conferida (relação de accountability). A despeito de a maioria dos conceitos se aplicar ao setor privado, a auditoria governamental é distinta e tem sua abrangência diferente daquela empreendida na esfera privada. Três entidades emitem padrões de auditoria que se aplicam ao setor público: a) INTOSAI (International Organizations of Supreme Audit Insti- tutions); b) IIA (Institute of Internal Auditors, que emite International Standards for the Professional Practice of Internal Auditing); e c) IFAC (International Federation of Accountants, que emite a ISA – International Standards on Auditing). Os padrões gerais de auditoria descrevem as qualificações que os auditores e suas instituições devem possuir a fim de que possam desempenhar as tarefas de campo e de comunicação das conclusões do trabalho (relatório) de maneira competente e eficaz. Entre os padrões mais comuns a todos os auditores e Entidades de Fiscalização Superior (EFS) gover- namentais estão que auditores e instituições devem ser independentes e competentes. A INTOSAI publicou e distribuiu o documento denominado The Lima Declaration of Guidelines on Auditing Precepts, mais conhecido como Declaração de Lima. Segundo esse documento: O conceito e o estabelecimento de uma estrutura de auditoria são inerentes à administração financeira pública, já que a própria administração de recursos públicos é fruto de um processo de confiança. Auditoria não é um fim em si mesma, mas é uma parte indispensável do sistema regulatório, estabelecida com o intuito de revelar, de maneira prévia, desvios dos padrões geralmente aceitos e violações dos princípios da legalidade, eficiência, efetividade e economia da administração financeira, de modo que ações corretivas em cada caso possam ser tomadas, devidas responsabilidades sejam apuradas, compensações sejam obtidas e que os passos para prevenção possam ser tomados, ou, ao menos, os rombos sejam dificultados.16 A mesma declaração apresenta as distinções entre serviços de auditoria interna e externa no âmbito do governo: Serviços de auditoria interna são estabelecidos dentro das instituições e dos departamentos governamentais, enquanto serviços de auditoria externa não são parte da estrutura organizacional a ser auditada. Entidades de Fiscalização Superior são serviços de auditoria externa. Serviços de auditoria interna são necessariamente subordinados ao chefe da estrutura organizacional sob a qual estão estabelecidos. No entanto, eles devem ser funcional e organizacionalmente o mais independentes possível da respectiva estrutura organizacional. Como auditor externo, a Entidade de Fiscalização Superior tem a tarefa de examinar a efetividade da auditoria interna. Se a auditoria interna é presumivelmente efetiva, esforços devem ser feitos, sem prejuízo do direito da EFS de realizar uma auditoria completa para alcançar a mais apropriada divisão de tarefas e cooperação entre a EFS e a auditoria interna.17 16 Tradução livre do original, em inglês. 17 Idem. 265 A Declaração de Lima – complementada pela Declaração do México de 2007 – provê principalmente princípios para o relacionamento das instituições de auditoria com o Parlamento de cada país e com o pró- prio governo e seus administradores. Pela Declaração, no tocante ao relacionamento com o Parlamento, a independência e a autonomia das EFSs devem ser asseguradas na Constituição de cada país, mesmo quando ela atuar como agente do Congresso e executar auditorias por sua solicitação. Já no tocante ao relacionamento com o governo e seus administradores, a Declaração prescreve que a EFS audita o governo, suas autoridades administrativas e as entidades vinculadas. O governo não é subordinado às EFSs. Isso significa que ele não pode eximir-se de responsabilidade pelos seus atos em razão dos achados das auditorias, a menos que redundem em determinações de caráter impositivo. Já no tocante à auditoria interna, aquela realizada por um departamento dentro da própria organização diretamente subordinado ao dirigente máximo, o Institute of Internal Auditors (IIA), organização norte-americana responsável pela emissão de normas profissionais para a área, declara que: Auditoria interna é uma estrutura independente para avaliação objetiva ou consultoria de atividades desenhada com o intuito de incrementar as operações organizacionais. Ajuda uma organização a alcançar seus objetivos por meio de uma maneira sistemática e de uma abordagem disciplinada de modo que se avalie e incremente a efetividade da gestão de risco, do controle e do processo de governança.18 A avaliação e o aprimoramento da efetividade da gestão do risco, dos controles e dos processos de governança constituem o arcabouço denominado controles internos, conforme definido pelo Comittee of Spon- soring Organizations (COSO), entidade norte-americana sem fins lucrativos dedicada à melhoria dos relatórios financeiros. Segundo o COSO, controle interno é um processo desenvolvido para garantir, com razoável certeza, que sejam atingidos os objetivos de uma entidade nas seguintes categorias (de acordo com o COSO 1): a) objetivos de desempenho ou estratégia (eficiência e efetividade operacional): esta categoria está relacionada com os objetivos básicos da entidade, inclusive com os objetivos e as metas de desempenho e rentabilidade, bem como da segurança e da qualidade dos ativos; b) objetivos de informação (confiança nos registros contábeis/financeiros): todas as transações devem ser registradas, todos os registros devem refletir transações reais, consignadas pelos valores e pelos enquadramentos corretos; c) objetivos de conformidade/compliance (conformidade) com leis e normativos aplicáveis à entidade e sua área de atuação. No caso específico da auditoria governamental, o auditor atua de forma independente sobre uma relação de accountability entre um delegante (Congresso Nacional, presidente, ministro) e o gestor público. O primeiro delega responsabilidade para que o segundo proceda à gestão dos recursos governamentais em proveito da coletividade, assim como delega responsabilidade para que o auditor realize o acompanhamento dessa gestão e apresente os devidos relatórios, compondo assim um triângulo com um vértice para cada agente. 18 Idem. 266 Dívida Pública: a experiência brasileira Processo de accountability no setor público Fonte: Ifac (2001) Sendo assim, a observação de disfunções e desvios deveria favorecer a interação entre gestores e audi- tores para que os primeiros fossem alertados e auxiliados na identificação e, quando possível, na superação das causas, bem como estimulados a introduzir correções e aperfeiçoamentos voltados para a obtenção dos melhores resultados. 3.2 Instituições de auditoria governamental no Brasil 3.2.1 Características das instituições brasileiras As Entidades de Fiscalização Superior (EFSs) têm origem historicamente em duas preocupações diferentes: a) preocupação gerencial de administrar bem os recursos públicos; e b) apreensão com a limitação do Poder Executivo (BUGARIN et al., 2003; VIEIRA, 2005). No tocante ao primeiro aspecto, a motivação é interna da própria administração e faz com que a maioria dessas EFSs estejam alocadas no âmbito do Poder Executivo (auditorias ou controladorias). No que se refere à segunda, a motivação baseada na necessidade de limitar a administração é típica do Poder Legislativo, que evolui para a criação de instituições próprias especializadas (cortes ou tribunais) para desempenho da tarefa de fiscalização. O modelo brasileiro de instituições de auditoria governamental contempla um conjunto considerável de organizações que atuam em âmbitos diferenciados no contexto do federalismo e complementares nas relações intragovernamentais em um mesmo ente da Federação. A rede de instituições que atuam na auditoria governamental inclui: 267 Instituições de auditoria governamental brasileiras União Estado/DF Municípios Órgãos de Tribunal de Contas da Tribunal de Contas do Es- Tribunal de Contas do União (TCU) tado, do Distrito Federal Município* controle externo e Tribunal de Contas dos Municípios Órgãos de Controladoria-Geral da Órgãos de controle Órgãos de controle União (CGU) e órgãos interno dos Poderes interno do município controle interno setoriais dos Poderes Executivo, Legislativo Executivo, Legislativo e e Judiciário do Estado Judiciário ou DF * Apenas nos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro. Nos demais casos, a atribuição é desempenhada pelo Tribunal de Contas do Estado. Atendendo a requisito de transparência fiscal do FMI, item 4.2.5 do MTF 2007, as finanças e as atividades governamentais são internamente auditadas. A CGU é uma instituição que realiza auditoria governamental no âmbito do Poder Executivo Federal. Em nível federal, destaca-se, ainda, que as entidades da administração indireta possuem unidades de auditoria interna, e as empresas públicas e as sociedades de economia mista possuem conselhos fiscais e são, em sua maioria, auditadas por empresas de auditoria independente. Todas essas instâncias atuam sobre os sistemas de controles internos19 contábeis e administrativos das enti- dades governamentais e dos processos de gestão, visando a adicionar valor aos trabalhos finalísticos de cada um. Ademais, o controle externo só pode ser eficaz se os tribunais forem independentes do órgão controlado e se estiverem fora do alcance de influências externas, bem como de interferências de um órgão eminentemente político. Daí a necessidade de assegurar sua neutralização política, sendo a independência real dos tribunais de contas encarada como grande desafio dos Estados modernos. Assim, a independência dos tribunais de contas é caracterizada pela sua exclusiva sujeição à lei e não a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas por tribunais superiores (Tribunais de Contas de Língua Portuguesa, 2007). Para o caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 (arts. 70 a 73) expandiu e consolidou a autori- dade do Tribunal de Contas da União (TCU), provendo-lhe maior independência e ampliando-lhe o escopo de atuação. Uma breve avaliação do TCU, como EFS brasileira, no tocante a alguns dos principais dispositivos da Declaração de Lima é apresentada no Anexo 1. Essa avaliação demonstra que o TCU, como entidade superior de auditoria governamental brasileira associada à INTOSAI, é uma instituição forte, independente e com procedimentos bem definidos, estando em linha com as melhores práticas internacionais. 19 Não se deve confundir órgãos de controle interno e sistemas de controles internos, pois aqueles são as unidades administrativas incumbidas, dentre outras funções, da verificação da consistência e da qualidade dos sistemas de controles internos das entidades governamentais e dos processos de gestão da dívida pública. 268 Dívida Pública: a experiência brasileira 3.2.2 Papéis das instituições em auditorias governamentais sobre a dívida pública Conforme já comentado anteriormente, o TCU possui mandato constitucional (CF, art. 71) e legal (em sua Lei Federal nº 8.443, de 1992) para realizar auditorias na gestão da Dívida Pública Federal, com escopo abrangente, ampliado pela própria LRF. Essas auditorias podem ser tanto de conformidade (que buscam comparações com normas e regula- mentos) quanto operacionais (que visam a avaliar a eficiência e a eficácia, bem como o atingimento de metas pelos gestores de dívida pública). Essa competência é extensível a tribunais de contas de estados e municípios no tocante à gestão de dívidas públicas estaduais e municipais. No tocante à frequência de atuação, o TCU, conforme comentado na subseção 2.4.2.3, deve emitir parecer prévio conclusivo sobre as prestações de contas presidenciais, no prazo de sessenta dias a partir do seu recebimento. Portanto, anualmente o TCU realiza auditoria sobre os demonstrativos contábeis que in- cluem informações sobre a gestão da dívida pública, emitindo opinião que é obrigatoriamente encaminhada ao Congresso Nacional. Ademais dessa atribuição anual, nos últimos exercícios diversos outros trabalhos foram realizados, vi- sando a prover avaliações sobre a gestão da dívida pública. Destacam-se os seguintes trabalhos de auditoria realizados entre 2003 e 2007. Trabalhos relevantes realizados pelo TCU sobre a gestão da dívida pública 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação da confiabilidade e da fidedignidade sobre a apuração do resultado fiscal acima da 0 linha. 3 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação da confiabilidade e da fidedignidade sobre a apuração do resultado fiscal abaixo da 0 linha. 5 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação da confiabilidade e da fidedignidade dos valores sobre passivos contingentes. 0 5 2 Auditoria operacional 0 Avaliação da gestão de haveres do Tesouro Nacional. 0 5 2 Auditoria operacional 0 Avaliação da gestão de dívida pública sob responsabilidade do Tesouro Nacional. 0 5 2 Auditoria operacional 0 Avaliação da transferência da gestão da dívida pública externa do Banco Central para a Secretaria 0 do Tesouro Nacional. 5 269 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação da confiabilidade dos valores publicados como estoque de dívida pública no relatório de 0 gestão fiscal/LRF. 6 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação da confiabilidade dos valores publicados como estoque de concessão de garantias e fluxos 0 de operações de crédito no relatório de gestão fiscal/LRF. 6 2 Auditoria de conformidade 0 Avaliação do risco de solvência de créditos da União perante os Estados de Minas Gerais, Rio Grande 0 do Sul e São Paulo decorrentes de assunção de dívidas. 7 Adicionalmente aos seus mandatos constitucionais e legais, a LRF (art. 59) atribui também aos tribunais de contas e órgãos de controle interno de cada Poder a missão de fiscalizar o cumprimento das normas fiscais, com ênfase, dentre outros, no que se refere a: a) atingimento das metas fiscais e monetárias estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias; b) limites e condições para realização de operações de crédito e inscrição em restos a pagar; e c) providências tomadas para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites. Ainda, de acordo com a LRF (art. 59), os tribunais de contas poderão emitir alerta para os Poderes quando constatarem, dentre outros, que os montantes das dívidas consolidada e mobiliária das operações de crédito e da concessão de garantia se encontram acima de 90% dos respectivos limites. O próprio TCU, no exercício de 2006, chegou a emitir alerta preventivo quanto ao possível não alcance de meta estipulada para o resultado nominal. Cabe, ainda, especificamente ao Tribunal de Contas da União acompanhar o cumprimento do disposto na LRF no que se refere à proibição de financiamento do Tesouro Nacional pelo Banco Central. Os tribunais de contas, no entanto, dado seu formato de corte, além de realizarem auditorias governa- mentais, também podem julgar gestores públicos e aplicar-lhes penalidades. Nesse contexto, a Lei Federal nº 10.028/2000 imputou a essas instituições a atribuição de processarem e julgarem infrações administrativas contra as leis de finanças públicas. Entre as infrações associadas à gestão da dívida pública, destacam-se: a) deixar de divulgar ou de enviar ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal nos prazos e nas condições estabelecidos em lei; b) propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha metas fiscais na forma da lei; c) deixar de expedir ato determinando limitação de empenho e movimentação financeira nos casos e nas condições estabelecidos em lei. Nesses casos, a infração é punida com multa de 30% dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa, sendo o pagamento da multa de sua responsabilidade pessoal. 270 Dívida Pública: a experiência brasileira 4 Conclusão O propósito deste capítulo foi descrever, em perspectiva geral, os marcos regulatórios sobre a dívida pública no Brasil e o processo de auditoria governamental brasileiro sobre o tema. Para tanto, foi dividido em quatro seções. Além da Introdução, a seção 2 estudou os marcos regulatórios brasileiros, envolvendo análise de aspectos sobre a estrutura do sistema jurídico, apresentação de marcos conceituais sobre dívida pública nas legislações, descrição dos papéis dos agentes envolvidos e apresentação das principais regras sobre endividamento nas legislações. Já a seção 3 estudou o processo de auditoria governamental aplicado à gestão da dívida pública e englobou aspectos conceituais sobre auditoria governamental e descrição e análise das características das instituições que realizam auditoria governamental no Brasil, com destaque para os aspectos associados à sua independência e objetividade e ao mandato para auditar dívida pública. Foi possível constatar, com base nos pontos anteriormente abordados, que, tanto no tocante aos marcos regulatórios quanto ao processo de auditoria governamental, o país se encontra alinhado com as melhores práticas internacionais. Referências BRASIL. 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Lei Federal nº 10.028, de 19 de outubro de 2000 (Lei de Crimes Fiscais). ______. Lei Federal nº 10.179, de 6 de fevereiro de 2000 (Títulos do Tesouro Nacional). ______. Lei Federal nº 10.683, de 28 de maio de 2003. ______. Lei Federal nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004. 271 ______. Ministério da Fazenda. Portaria nº 183, de 2003. ______. Secretaria do Tesouro Nacional. Portaria nº 410, de 2003. ______. Secretaria do Tesouro Nacional. Portaria nº 602, de 5 de setembro de 2005 (Código de Ética dos Gestores da Dívida Pública). ______. Tribunal de Contas da União. Relatório e Pareceres Prévios sobre as Contas do Governo da Repú- blica (diversos anos). ______. Resolução nº 40, de 2001 do Senado Federal. ______. Resolução nº 43, de 2001 do Senado Federal. BUGARIN, Maurício S.; VIEIRA, Laércio M.; GARCIA, Leice M. Controle dos gastos públicos no Brasil: insti- tuições oficiais, controle social e um mecanismo para ampliar o envolvimento da sociedade. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. 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As EFSs devem gozar de proteção legal suficiente, garantida por um tribunal supremo, contra qualquer ingerência em sua independência e nas suas competências. TCU Independência disposta na Constituição Federal, regulamentada pela Lei Federal nº 8.433, de 1992 (Lei Orgânica do TCU), e protegida pelo Supremo Tribunal Federal. I.2 – Independência dos membros e dos funcionários das EFSs INTOSAI A Constituição deve garantir também a independência dos membros das EFSs. TCU A Constituição Federal garante independência aos membros do TCU, os quais possuem as mesmas prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos ministros do Superior Tribunal de Justiça. INTOSAI Os funcionários das EFSs devem ser absolutamente independentes, em sua carreira profissional, dos órgãos controlados e de suas influências. TCU A Constituição Federal garante ao TCU quadro próprio de pessoal. I.3 – Independência financeira das EFSs INTOSAI Os meios financeiros para cumprimento de suas funções devem estar à disposição das EFSs. TCU A Constituição Federal garante transferência de recursos ao TCU todo dia 20 de cada mês. II – Relação com o Parlamento, o governo e a administração II.1– Relação com o Parlamento INTOSAI A Constituição deve regular as relações entre as EFSs e o Parlamento de acordo com as cir- cunstâncias e as necessidades de cada país. TCU A Constituição Federal prevê a possibilidade de o TCU realizar auditorias por iniciativa do Congresso Nacional e de prestar informações por eles solicitadas. A lei orgânica regula essa possibilidade. II.2 – Relação com o governo e a administração INTOSAI A atividade de governo, das autoridades administrativas subordinadas e das demais instituições dependentes é objeto de controle por parte das EFSs, as qual quais não devem ter nenhuma subordinação ao próprio governo. TCU O TCU, como órgão de controle externo, está inserido na esfera do Poder Legislativo brasileiro. 273 II.3 – Relatórios ao Parlamento e à sociedade INTOSAI As EFSs devem ter, segundo a Constituição, o direito e a obrigação de apresentar relatórios anualmente ao Parlamento ou ao órgão estatal correspondente sobre os resultados de suas atividades, bem como de publicá-lo. TCU De acordo com a Constituição Federal, o TCU deve encaminhar ao Congresso Nacional, tri- mestral e anualmente, relatório de suas atividades, o qual também se encontra publicado em seu sítio na internet. III – Competências de controle das EFSs III.1– Competências fundamentais INTOSAI As competências fundamentais de controle das EFSs devem estar especificadas na Constituição, e os detalhes podem estar regulados por lei. TCU As competências fundamentais estão dispostas na Constituição Federal de 1988 e outras estão dispostas na Lei Federal nº 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU). III.2– Não-exclusão de controle INTOSAI Toda atividade estatal está submetida a controle das EFSs, independentemente de estar refletida ou não no orçamento geral. Uma exclusão de orçamento não deve se converter-se em uma exclusão de controle. TCU A Constituição Federal garante ao TCU exercício de controle sobre todos os recursos públi- cos. A Lei Orgânica do TCU dispõe sobre o controle exercido sobre recursos orçamentários e extraorçamentários. IV – Faculdades das EFSs IV.1 – Competência de investigação INTOSAI As EFSs devem ter acesso a todos os documentos relacionados às operações e ter direito de pedir aos órgãos controlados todos os relatórios que considerarem necessários. TCU A Constituição Federal garante ao TCU acesso a todas as informações, exceto aquelas protegidas por sigilo fiscal ou bancário. A Lei Orgânica do TCU regulamenta esse acesso. IV.2 – Execução das recomendações/determinações das EFSs INTOSAI Os órgãos controlados devem responder às verificações de controle das EFSs nos prazos, em geral, determinados por lei. TCU A Lei Orgânica do TCU estabelece prazos para atendimento das solicitações do TCU com pos- sibilidade de multa ao responsável pelo não atendimento. 274 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo 2 Dispositivos legais sobre dívida pública (Itens selecionados) Dispositivo Norma I – Dívida Pública 1 – Componentes Lei Federal nº 4.320/64 (arts. 92 e 98), Decreto Federal n º 93.872/86 (art. 115) 1.1 – Dívida flutuante 1.1.1 – Conceito Lei Federal nº 4.320/64 (art. 92) e Decreto Federal nº 93.872/86 (art. 115, § 1º) 1.1.2 – Componentes Lei Federal nº 4.320/64 (art. 92), Decreto Federal nº 93.872/86 (arts. 115, § 1º) 1.1.2.1 – Restos a pagar 1.1.2.1.1 – Conceito Decreto Federal nº 93.872/86 (art. 67) LRF (art. 42) 1.1.2.1.2 – Regras e limites Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 2.848/40, arts. 359-B, 359-C 1.1.2.1.3 – Penalidades criminais e 359-F) 1.1.2.2. – Operações de crédito por (consultar subseção 1.4) antecipação da receita orçamentária 1.2 – Dívida fundada ou consolidada 1.2.1– Conceito LRF (art. 29, I), Resolução nº 40/2001 do Senado Federal (art. 1º, § 1º, III) 1.2.2 – Componentes Decreto Federal nº 93.872/86 (art. 115, § 2º) e, indiretamente, Lei Complementar nº 101/2000 (art. 29, I) 1.2.2.1 – Dívida mobiliária 1.2.2.1.1 – Conceito LRF (art. 29, II) 1.2.3 – Regras e limites Resolução nº 40/2001 do Senado Federal (art. 3º) 1.2.4 – Penalidades 1.2.4.1 – Fiscais LRF (art. 51, § 2º) e Resolução nº 40/2001 do Senado Federal (art. 5º) 1.2.4.2 – Criminais Lei nº 10.028/2000 (Lei nº 1.079/50, art. 10 e Decreto-Lei nº 201/67, arts. 1º e 5º) 1.2.4.3 – Políticas Constituição Federal (arts. 34 e 35) 275 1.2.5 – Controle social LRF (art. 31, § 4º) II – Operações de crédito 1 – Conceito LRF (art. 29, III), Resolução nº 43/2001 do Senado Federal (art. 3º) 2 – Tipologia 2.1 – Operação de crédito para refi- nanciamento da dívida mobiliária 2.1.1 – Conceito LRF (art. 29, V) 2.2 – Operações de crédito por ante- Lei nº 4.320/64 (art. 7º) cipação da receita orçamentária 2.2.1 – Regras e limites LRF (art. 38) e Resolução nº 43/2001 do Senado Federal (arts. 10 e 36) 3 – Critérios e condições para LRF (arts. 32 e 33), Resolução nº 43/2001 do Senado Federal contratação (art.s 6º a 20) 3.1 – Regra de ouro Constituição Federal (art. 167, III) 4 – Limites Resolução nº 43/2001 do Senado Federal (arts. 6º e 7º) 5 – Vedações 5.1 – Operações entre entes da LRF (art. 35) Federação 5.2 – Operações entre entes da Fed- Constituição Federal (art. 164), LRF (arts. 34, 35 e 36) e Resolução eração e o Banco Central do Brasil nº 43 do Senado Federal (art. 5º) 5.3 – Operações com fornecedores LRF (art. 37) 6 – Penalidades 6.1 –Fiscais LRF (art. 31) 6.2 – Criminais Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 2848/40, arts. 359-A e 359-H; Lei nº 1.079/50, art. 10, e Decreto-Lei nº 201/67, art. 1º) III – Concessão de garantias 1 – Conceito LRF (art. 29, IV) 2 – Regras e limites LRF (art. 38) e Resolução nº 43 do Senado Federal (art. 7º, § 2º, arts. 9º e 10) 3 – Penalidade 3.1 – Criminal Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 2848/40, art. 359-E) IV – Planejamento e transparência fiscal 1 – Instrumentos de planejamento 1.1 – Lei de Diretrizes Orçamentárias Constituição Federal (art. 165) 1.1.1 – Anexo de metas fiscais LRF (art. 4º) 276 Dívida Pública: a experiência brasileira 1.1.1.1 – Penalidade por não publi- Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 201/67, art. 1º, II) cação 1.1.2 – Anexo de riscos fiscais LRF (art. 4º) 1.1.3 – Anexo específico sobre LRF (art. 4º) política monetária 1.2 – Lei Orçamentária Anual Constituição Federal (art. 165) 1.2.1 – Inclusão das operações de Lei nº 4.320/64 (art. 3º) e LRF (art. 5º) crédito no orçamento 2 – Instrumentos de transparên- LRF (art. 48) cia fiscal 2.10 – Audiências públicas LRF (art. 9º) 2.2 – Contabilidade, prestações Lei nº 4.320/64, LRF (arts. 49 e 50) de contas e relatórios fiscais 2.3 – Relatórios fiscais LRF (arts. 52, 53, 54 e 55) 2.3.1 – Penalidades 2.3.1.1 – Fiscais 2.3.1.1 – Fiscais LRF (art. 51, § 2º) 2.3.1.2 – Criminais Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 201/67, art. 1º, I) V – Agentes governamentais envolvidos com dívida pública 1 – Poder Legislativo 1.1 – Competências 1.1.1 – Congresso Nacional Constituição Federal (art. 48) 1.1.2 – Senado Federal Constituição Federal (art. 52) 2 – Poder Executivo 2.1 – Competências Lei Federal nº 10.683/2003 2.1.1 – Ministério da Fazenda Decreto Federal nº 6.102/2007 2.1.1.1 – Delegação do Ministério da Portaria do Ministério da Fazenda nº 183/2003 Fazenda 2.1.2 – Banco Central LRF (art. 34) 2.1.3 – Controladoria-Geral da União Lei Federal nº 10.683/2003 2.2 – Penalidades 2.2.1 – Criminais (consultar 1.1.2.1.3, 1.2.4.2 da parte I, 6.2 da parte II, 3.1 da parte III e 2.3.1.2 da parte IV) 2.2.2 – Éticas Lei Federal nº 8.027, de 1990 (Código de Ética Pública), Código de Conduta da Alta Administração Federal e Código de Ética e Padrões de Conduta Profissional da STN (Portaria STN nº 602, de 2005) 2.2.3 – Inelegibilidade Lei Complementar nº 64/90 277 VI – Auditoria da dívida pública 1 – Órgãos de controle externo (auditoria externa) 1.1 – Competências e mandato Constituição Federal (art. 71) e Lei Federal nº 8.443/92. 1.1.1 – Fiscalização da gestão fiscal LRF (art. 59) 1.1.2 – Emissão de alertas em LRF (art. 59, § 2º) temas de dívida pública 1.1.3 – Aplicação de penalidades Lei nº 10.028/2000 (Decreto-Lei nº 201/67, art. 5º) 2 – Órgãos de controle externo (auditoria interna) 2.1 – Competências e mandato Constituição Federal (art. 74) e Lei Federal nº 10.180/2001 278 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 O Mercado de Dívida Pública no Brasil 279 280 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 1 Evolução recente do mercado de títulos da Dívida Pública Federal Anderson Caputo Silva Fernando Eurico de Paiva Garrido Lena Oliveira de Carvalho 1 Introdução Nos últimos anos, grande atenção tem sido dada ao desenvolvimento dos mercados de dívida pública dos países. Mercados de títulos públicos mais desenvolvidos facilitam a implementação de estratégias de financiamento da dívida e permitem que o governo busque de forma mais eficiente a minimização de custos e riscos de seu passivo. O desenvolvimento do mercado de títulos do governo gera uma série de benefícios, tanto do ponto de vista de políticas macro como microeconômicas.1 Em relação às políticas macroeconômicas, um mercado de dívida desenvolvido pode: reduzir a necessidade de financiamento dos déficits do governo e evitar sua exposição excessiva a dívidas denominadas em moeda externa; fortalecer a transmissão e a implementação da política monetária, incluindo o alcance de metas de inflação; viabilizar a suavização de gastos de consumo e investimento como resposta a choques; auxiliar na redução da exposição do governo a taxas de juros e a outros riscos financeiros; e reduzir os custos do serviço da dívida no médio e no longo prazos por meio do desenvolvimento de um mercado de dívida mais líquido. No campo microeconômico, o desenvolvimento do mercado de títulos é capaz de: aumentar a estabilidade e a intermediação financeiras por meio de maior competição e desenvolvimento de infraestrutura, produtos e serviços; auxiliar na mudança de um sistema financeiro primário (orientado para bancos) para um sistema mais diversificado, no qual o mercado de capitais pode complementar o financiamento bancário; viabilizar a introdução de novos produtos financeiros, à medida que a curva de juros (yield curve) do país se desenvolve, incluindo repos, derivativos e outros produtos que podem melhorar o gerenciamento de risco e a estabilidade financeira; e envolver a criação de uma completa infraestrutura de informação legal e institucional que beneficie o sistema financeiro como um todo. Em linha com esses benefícios gerados por um mercado de dívida pública mais desenvolvido, diversos países, incluindo o Brasil, passaram a explicitar o desenvolvimento do mercado como um dos objetivos de gestão da dívida, conforme pode ser observado no seu Plano Anual de Financiamento (PAF), publicado desde 2001.2 1 Ver Developing government bond market: a handbook. WB-IMF, 2001. 2 Desde 2001, o Tesouro Nacional divulga em seu Plano Anual de Financiamento que a gestão da Dívida Pública Federal (DPF) tem por ob- jetivo “minimizar os custos de financiamento no longo prazo, respeitando-se a manutenção de níveis prudentes de risco; adicionalmente, busca-se contribuir para o bom funcionamento do mercado de títulos públicos” (PAF, 2008). Nesse sentido, as ações do Tesouro Nacional têm privilegiado, dentre outros, os seguintes aspectos: i) redução do risco de refinanciamento por meio do alongamento do prazo médio da DPF e da redução do percentual da DPF vincendo em 12 meses; iii) redução do risco de mercado por meio da substituição gradual dos títulos remunerados pela taxa Selic e pela variação cambial por títulos com rentabilidade prefixada ou vinculada a índices de preços; e iv) incentivo ao desenvolvimento das estruturas a termo de taxas de juros para títulos públicos federais nos mercados interno e externo. 281 Para o desenvolvimento de um mercado de dívida, no entanto, alguns pré-requisitos são de extrema relevância. Esse desenvolvimento deve ser visto como um processo dinâmico em que a estabilidade macroe- conômica e financeira é essencial para um mercado eficiente e para se estabelecer a credibilidade do governo como emissor de títulos públicos. Como pré-requisitos, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional3 mencionam: governo estável e crível; políticas fiscal e monetária saudáveis; eficiência na infraestrutura legal, regulatória e de impostos; arranjos seguros de sistemas de liquidação e custódia; e um sistema financeiro com intermediários competitivos. Com esses passos atendidos, os custos de financiamento do governo no médio e no longo prazos reduzem-se significativamente, na medida em que os prêmios de risco exigidos para os títulos do governo caem com a maior confiança dos investidores. Nesse aspecto, o Brasil tem adotado políticas macroeconômicas que auxiliam bastante o desenvolvimento dos mercados de dívida tanto interno quanto externo, bem como o sistema financeiro. Isso se deve em grande parte às melhorias dos fundamentos econômicos no Brasil, com baixa inflação e responsabilidade fiscal, aos avanços no gerenciamento de dívida pública e à evolução dos mercados internacionais. O presente capítulo objetiva dar uma visão geral do mercado de dívida brasileiro e destacar os principais avanços recentes nesse mercado, tendo como pano de fundo as melhores experiências relatadas pelos orga- nismos internacionais.4 Em virtude de sua maior importância relativa, ênfase é dada ao mercado doméstico e seus avanços. O capítulo serve também como introdução aos diversos capítulos seguintes, que descrevem dimensões específicas do mercado de dívida brasileiro em maiores detalhes. Para isso, traz, além dessa in- trodução, duas seções, uma com o panorama geral da dívida pública brasileira e outra com uma abordagem sucinta das medidas para o desenvolvimento do mercado e os aperfeiçoamentos conquistados, à luz do que é observado para as melhores práticas internacionais, além das considerações finais. 2 Conhecendo o mercado de dívida brasileiro: um panorama geral O gerenciamento da dívida pública, bem como as condições macroeconômicas atuais mais favoráveis, possibilitou uma grande mudança na estrutura da dívida pública brasileira, comparativamente a períodos anteriores. Seu desenvolvimento pode ser observado por meio da evolução dos seus mercados internos e ex- ternos, com desenvolvimento nos mercados de títulos prefixados, de índices de preços e redução na exposição a moedas externas, bem como por meio do ganho de liquidez e melhora na precificação dos títulos públicos, conforme será detalhado nesta seção. 2.1 Os mercados doméstico e externo A Dívida Pública Federal (DPF), em dezembro de 2008, representava R$ 1,4 trilhão (USD 602,3 bilhões), sendo 91% de dívida interna e o restante de dívida externa. Essa predominância da dívida doméstica é resul- tante, conforme mencionado, do gerenciamento ativo da dívida e da política macroeconômica favorável, que permitiram mitigar a exposição externa e reduzir significativamente os riscos associados ao perfil da dívida. O Gráfico 1 ilustra o aumento da participação da dívida interna na DPF, principalmente a partir de 2003. 3 Principais pré-requisitos encontram-se listados no Handbook (2001) do Banco Mundial e do FMI. 4 Além da publicação já mencionada (WB e IMF, 2001), ver o livro Developing the domestic government debt market: from diagnos- tics to reform implementation, que resume o projeto piloto do Banco Mundial em 12 países para o desenvolvimento do mercado doméstico de títulos públicos. Essas publicações são guias que trazem uma série de princípios referendados por especialistas, representantes de diversos países. 282 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 1. Participação da Dívida Pública Federal interna e externa na DPF Fonte: Tesouro Nacional Em termos de tamanho absoluto, o mercado doméstico do Brasil é um dos maiores do mundo.5 O Gráfico 2 mostra o tamanho do mercado de títulos de vários países, incluindo os mais desenvolvidos e alguns emergentes. Dados do Bank of International Settlement (BIS) revelam que o Brasil é o oitavo maior mercado de títulos públicos do mundo. Gráfico 2. Tamanho do mercado de títulos públicos do governo – USD bilhões Fonte: BIS Quarterly Review, dezembro 2008 5 O mercado doméstico brasileiro figura entre os maiores do mundo, mesmo quando se toma por base o tamanho do PIB dos diversos países. Sob esse critério, o Brasil ocupa a nona colocação. 283 Essa análise do tamanho do mercado faz-se importante, dado o consenso existente entre especialistas de que há uma relação estreita entre o desenvolvimento de um mercado e seu tamanho: “International evidence indicates that developed bond markets are large. Large scale is important to support liquidity and market depth. It is also a key to attracting a broad base of sophisticated investors with the potential for building large positions” (ITAÚ CORRETORA, 2007). Além disso, McCauley e Remlona (2000) mencionam que “[...] a government bond market may currently be more necessary in emerging markets, since they have few well rated private firms alternative benchmarks”. Sob o aspecto qualitativo, o mercado doméstico de títulos públicos brasileiros é um dos mais líquidos dentre economias emergentes.6 Co nforme se descreve em maiores detalhes nas subseções seguintes, o governo brasileiro vem adotando uma série de medidas para incentivar o desenvolvimento das estruturas a termo de taxas de juros, melhorar a liquidez do mercado e ampliar a base de investidores. Quanto ao mercado externo, também tem sido feito um trabalho grande para emissões qualitativas de títulos em moeda estrangeira e para a consolidação de alguns pontos na curva externa, com desenvolvimento da estrutura a termo das taxas de juros. Apesar de sua reduzida parcela no estoque da Dívida Pública Federal, a dívida externa mobiliária brasileira é também umas das mais líquidas dentre as economias emergentes. Em linha com os aprimoramentos no mercado da dívida mobiliária doméstica, diversas medidas ado- tadas no âmbito da gestão da Dívida Pública Federal externa (DPFe) propiciaram redução de despesas, maior previsibilidade da dívida externa e menor percepção de risco pelos investidores. Dentre as medidas, podem ser citadas: pagamentos antecipados das dívidas com o FMI e com o Clube de Paris; desenvolvimento de programa permanente de resgate antecipado de títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal externa (DPMFe); resgate antecipado dos títulos Bradies (dívida reestruturada); e emissão de títulos soberanos em reais. Todas essas operações proporcionaram melhora significativa da composição da dívida externa e grande avanço nos indicadores de vulnerabilidade do país, conforme pode ser observado nos gráficos a seguir. Gráfico 3. Composição da dívida externa (Tesouro Nacional) Fonte: Tesouro Nacional 6 Ver Capítulo 6 da Parte 3, que apresenta detalhes e estatísticas sobre o mercado secundário. 284 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 4. Vulnerabilidade externa Fonte: Banco Central 2.2 O desenvolvimento do mercado e o processo de alongamento da dívida pública Até 1995, grande parte da dívida doméstica estava atrelada à taxa Selic, 79,1% (em julho de 1995), enquanto os títulos prefixados representavam apenas 8,5% da dívida e com prazo de emissão bastante reduzido (de até dois meses). Esse perfil era consequência de um ambiente de alta inflação que resultava na emissão de instrumentos com diferentes denominações, prazos e indexações, principalmente vinculados à correção monetária e à taxa de juros. Em períodos de incerteza, títulos como as Letras Financeiras do Tesouro (LFTs), indexadas à taxa Selic, possuem forte demanda, já que não incorrem em perdas caso a taxa de juros oscile.7 No entanto, a elevada proporção de títulos indexados à Selic gera efeitos negativos tanto para o gerenciamento de dívida quanto para a economia como um todo. A maior participação desses títulos suscita aumento da vulnerabilidade da dívida e, portanto, maior risco de refinanciamento. Adicionalmente, a eficácia da política monetária é reduzida, uma vez que a maior parcela de títulos dessa natureza produz obstrução parcial no canal de distribuição da política monetária por meio do “efeito riqueza”. Assim, um mix de política econômica saudável e gerenciamento eficiente da dívida que viabilize a redução dos riscos de mercado, com a maior participação na dívida de títulos com taxas fixas, cria uma barreira contra choques externos, além de aumentar a eficácia da política monetária, que necessitará de elevações menores nas taxas de juros para o controle de surtos inflacionários. Somente com a maior estabilidade macroeconômica, a partir de 1995, conforme observado no Gráfico 5, passou a ser possível um processo de desindexação da dívida pública, no qual o Tesouro Nacional iniciou a readaptação de instrumentos utilizados no gerenciamento de dívida, por intermédio da emissão de títulos prefixados. 7 A dívida atrelada à taxa de juros chegou a quase 100% da dívida mobiliária por volta de 1989, um processo caracterizado pelo declínio do prazo médio e consequente aumento do risco de refinanciamento. Essa indexação completa da economia contribuía para a expansão monetária e a continuidade das altas taxas de inflação. 285 Gráfico 5. Inflação de 1979-2008 – mensal (%) Fonte: Índice de Preços ao Consumidor – Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (Fipe) Os melhores fundamentos a partir principalmente de 2000, com resultados fiscais significativos, permi- tiram diversos avanços no gerenciamento da dívida pública, com visíveis melhoras na composição da dívida, por meio do desenvolvimento do mercado de títulos prefixados e de títulos referenciados por índices de preços, pela menor exposição cambial e pelo alongamento da dívida pública. 2.2.1 Avanço no mercado de títulos prefixados Em um ambiente de maior estabilidade econômica, o processo de desindexação da dívida pública per- mitiu que a parcela de títulos prefixados na dívida doméstica aumentasse para 58,95%8 em agosto de 1997, enquanto a parcela de títulos atrelados à taxa Selic chegou a ser eliminada. Essa estratégia de mudança no perfil da dívida foi possível por mais de dois anos (de julho de 1995 a outubro de 1997), conforme pode ser observado no gráfico de composição da DPMFi a seguir. 8 Apesar de o prazo médio da dívida ainda ser reduzido, em torno de 3,3 meses, o Tesouro conseguiu emitir títulos prefixados com prazos de 12 e 24 meses à época. 286 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 6. Composição da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) Fonte: Tesouro Nacional Gráfico 7. Composição da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi) – % PIB Fonte: Tesouro Nacional Além da desindexação, outro ponto de destaque nesse período foi o alongamento dos prazos de emissão, principalmente dos prefixados, que passaram de apenas dois meses em 1995 para 12 meses em setembro de 1996, sendo em setembro de 1997 realizada a primeira emissão de títulos prefixados de dois anos, como podemos observar no gráfico a seguir. 287 Gráfico 8. Prazo máximo de emissão dos títulos prefixados Fonte: Tesouro Nacional No entanto, a sequência de crises que abateram os mercados emergentes, a partir de outubro de 1997 nos países asiáticos, em 1998 na Rússia e em 1999 com a mudança no regime cambial do Brasil,9 impôs desafios importantes ao gerenciamento da dívida pública e freou o processo de mudança do seu perfil, como pudemos ver nos gráficos anteriores. Tendo de encarar um ambiente bem mais árduo para vender títulos prefixados e com uma concentração crescente de dívida de curto prazo, o Tesouro Nacional redirecionou seus esforços no sentido de reduzir o risco de refinanciamento, tendo como custo uma maior exposição às flutuações da taxa de juros. De fato, alguns indicadores, especialmente aqueles relacionados ao risco de refinanciamento, mostraram uma significativa melhora. O percentual de dívida vencendo em 12 meses, por exemplo, caiu de 54,9% em dezembro de 1999 para 27,7% em dezembro de 2001.10 Gráfico 9. Percentual vincendo em 12 meses Fonte: Tesouro Nacional 9 Em janeiro de 1999, tendo em vista o ataque especulativo às reservas internacionais brasileiras, o país não teve outra alternativa a não ser passar seu regime cambial de fixo para flutuante, o que gerou, nos primeiros meses da mudança, uma percepção de risco elevado em relação à sua capacidade de reencontrar a estabilidade macroeconômica. 10 Essa estratégia mostrou-se importante para o período turbulento que se deu posteriormente, em 2002. 288 Dívida Pública: a experiência brasileira O processo de ajuste fiscal iniciado em 1999, baseado em um programa consistente de estabilida- de fiscal, adoção de metas de inflação e mudanças estruturais, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, permitiu a obtenção de superávits primários consecutivos, que foram suficientes para um ciclo virtuoso nas contas fiscais. A partir de então, a persistência na implementação de medidas que visam ao objetivo principal da dívida pública, qual seja, à minimização de custos de longo prazo, respeitada a manutenção de níveis prudentes de riscos, aliada às boas condições macroeconômicas, permitiu que a estrutura da dívida alcançasse um perfil qualitativamente bem superior ao observado no passado, com reflexos positivos no aperfeiçoamento do mercado de dívida. Diversas medidas,11 principalmente a partir de 2003, levaram a uma melhora significativa desse mer- cado. Destaca-se a criação da curva de juros prefixados de médio/longo prazos com o lançamento das Notas do Tesouro Nacional série F (NTN-Fs) com vencimento em 2008, títulos com prazos bem mais longos que os verificados para outros instrumentos prefixados. Logo na sequência, o prazo máximo desses títulos foi ampliado para dez anos, consolidando sua posição como papel de referência na parte média da curva. Em 2007, a estrutura de emissão dos títulos prefixados foi definida para padronizar os títulos, consoli- dando prazos de referência (benchmark) no mercado, conforme a prática nos mercados internacionais. Assim, para as Letras do Tesouro Nacional (LTNs), as emissões foram definidas com prazos de 6, 12 e 24 meses, e as NTN-Fs, com prazos de 3, 5 e 10 anos, sendo estes últimos emitidos com pagamento de cupom intermediário de juros. Também vale mencionar o programa de resgate antecipado que o Tesouro vem adotando para os títulos prefixados mais curtos (LTNs) com o objetivo de suavizar a maturação da dívida e atenuar a percepção de risco de refinanciamento. Além disso, no mercado externo, destacam-se as emissões dos títulos em reais a partir de 2005, que também passaram a compor a curva dos prefixados de prazos mais longos. Essas emissões, ao fornecer re- ferências líquidas de taxas de juros de longo prazo em reais, têm contribuído para a construção da curva de juros no mercado interno, a diversificação da base de investidores e a redução da parcela da dívida pública indexada ao dólar. Conforme observado no Gráfico 10, o país vem conseguindo consolidar a curva de títulos prefixados com pontos de referência (benchmark) bem definidos e com demanda crescente. O gráfico apresenta a curva em três momentos distintos (dezembro de 2003, outubro de 2005 – mês de lançamento do título em reais no mercado internacional – e dezembro de 2008). O tamanho dos círculos relativiza o volume em circulação em cada ponto da curva. Nota-se que, além de um alongamento na curva dos prefixados (NTN-Fs), a curva de juros está mais desenvolvida, com maiores concentrações e juros mais baixos. 11 Essas medidas são mais bem detalhadas na seção 3 deste capítulo. 289 Gráfico 10. Vencimentos, rentabilidades e montantes em circulação das NTN-Fs Fonte: Tesouro Nacional Como resultado do avanço no mercado de prefixados, a parcela desses títulos na dívida interna au- mentou significativamente, alcançando 32,2% em dezembro de 2008. Além disso, essa tendência tem sido acompanhada pelo alongamento do seu prazo médio, que na mesma data era de 16,5 meses. Gráfico 11. Prazo médio do estoque de prefixados – DPMFi Meses Fonte: Tesouro Nacional 290 Dívida Pública: a experiência brasileira Com a maior parcela de prefixados no estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), também pôde ser sentida a evolução positiva de alguns indicadores de risco, tais como o DV01 (Dollar Value of a Basis Point).12 Observam-se níveis historicamente elevados nesse indicador, devido principalmente ao maior estoque de prefixados em mercado e ao maior prazo médio desses títulos, apontando para a transferência de uma parcela crescente do risco do setor público para os investidores, a exemplo do que é observado em países com mercados de capitais mais desenvolvidos. Gráfico 12. Dollar Value of a Basis Point (DVO1) Fonte: Tesouro Nacional Por trás da capacidade de se emitir mais títulos prefixados está também o desenvolvimento do mercado de derivativos, o que facilita o gerenciamento de risco pelos investidores. O número de contratos DI negociados tem apresentado trajetória crescente. Cabe acrescentar que, para facilitar o casamento desses contratos com os prazos de vencimento dos títulos prefixados, tais títulos passaram a ser emitidos com vencimentos em datas idênticas aos contratos futuros (primeiros dias úteis de janeiro, abril, julho e outubro).13 12 O DVO1 mensura a perda que pode ocorrer no valor de uma carteira de títulos prefixados em mercado decorrente do aumento em um ponto-base na taxa de desconto daqueles títulos. 13 Como consequência dessa maior confiança dos investidores, observamos também um desenvolvimento do mercado de capitais como um todo. Apesar de uma certa reversão a partir do segundo semestre de 2008, por conta da crise que impactou o mercado global de capitais, dados da CVM revelam que nos últimos anos foram registradas emissões de ações em volumes cada vez maio- res, e o valor das empresas listadas na Bovespa que representava, como proporção do PIB, 35,66% em 2000, chegou a alcançar 90,53% em 2007 e 80,99% em 2008. 291 Gráfico 13. Número Médio Diário de Contratos Negociados (DI) Fonte: BM & F 2.2.2 Avanço no mercado de títulos indexados à inflação Há um número crescente de países, desenvolvidos e em desenvolvimento, lançando estratégias para o desenvolvimento de mercados de títulos indexados à inflação. Esses títulos, que anteriormente eram emitidos por poucos países, agora o são por todos os países membros do G7, bem como por diversos outros. Dentre as principais justificativas estão a demanda de investidores institucionais por ativos que permitam proteção contra a inflação e a importância desses títulos para a composição ótima da dívida. Estudos do Tesouro Nacional,14 corroborados por outros artigos, indicam a importância da participação crescente de títulos indexados à inflação no estoque da dívida pública para a composição ótima da dívida pública. Segundo Missale e Giavazzi:15 [...] A indexação de preços permite um hedge natural contra o impacto da inflação, tanto no superávit primário, quanto na razão dívida líquida sobre o PIB. Sob a perspectiva do gerenciamento de ativos e passivos do Tesouro Nacional, os títulos atrelados a índices de preço não apenas casam com as receitas futuras, mas também com os riscos dos ativos atrelados à inflação do portfólio do governo. Como os títulos indexados à inflação têm um prazo maior, eles também auxiliam a reduzir o risco de refinanciamento do governo, representando um importante fator de estabilidade para a dinâmica da dívida pública.16 Assim como no caso dos prefixados, o Brasil também tem avançado bastante no desenvolvimento do mercado de títulos remunerados por índices de preços, focando mais recentemente nos títulos remunerados pelo IPCA.17 Nesse sentido, o Tesouro vem trabalhando para aumentar a participação dos títulos atrelados a esse indicador, as Notas do Tesouro Nacional – série B (NTN-Bs), e gradualmente reduzir a participação dos títulos indexados ao Índice Geral de Preços de Mercado (IGP-M), as Notas do Tesouro Nacional – série C (NTN-Cs). 14 Conforme indicam os estudos sobre composição ótima da dívida pública, descritos nos Capítulos 2 e 3 da Parte 2. 15 Public debt management in Brazil, june 3, 2003. 16 Tradução livre. 17 Índice de Preços ao Consumidor Amplo, indicador oficial do governo federal para cálculo e monitoramento das metas inflacionárias. 292 Dívida Pública: a experiência brasileira O Tesouro tem procurado, também, criar pontos de referência (benchmarks) que formem uma curva de juros de longo prazo nesse indexador, com as NTN-Bs mais longas vencendo em 2045. Em sua estratégia, a partir de 2007, o Tesouro definiu a emissão exclusiva de NTN-Bs, com a manutenção dos prazos existentes (3, 5, 10, 20, 30 e 40 anos). Além disso, a instituição tem adotado um programa de resgate antecipado para ampliar a liquidez desses títulos no mercado e reduzir custos eventuais a que os investidores estão expostos para ajustar suas necessidades de caixa, visto que esses instrumentos prestam-se tipicamente a lastrear os passivos das entidades fechadas de previdência complementar, que são, geralmente, indexados pela inflação. A dinamização desse mercado vem proporcionando crescente liquidez e demanda, refletida no volume vendido e na maior participação desses títulos no total da DPF. O Gráfico 14 revela as taxas de retorno (yields) dos títulos emitidos em diferentes anos (2003, 2005 e 2008) para os vencimentos da NTN-B, além de mostrar o volume emitido dos títulos de referência (benchmark), representado pela área dos círculos. O que se infere do gráfico é que, à semelhança do que ocorreu com os títulos prefixados, além do alongamento observado ao longo do período, os juros dos títulos reduziram-se e o volume emitido para os vencimentos de referência aumentou. Gráfico 14. Vencimentos, rentabilidades e montantes em circulação das NTN-B Fonte: Tesouro Nacional O desenvolvimento da curva de títulos remunerados por índices de preços vem sendo acompanhado pela maior participação desses títulos no estoque da dívida interna, representando o quinto maior mercado do mundo de instrumentos indexados à inflação. Os dois gráficos a seguir ilustram esses fatos. 293 Gráfico 15. Participação da parcela Índice de Preços no Estoque da DPMFi Fonte: Tesouro Nacional Gráfico 16. Mercados de títulos indexados à inflação – USD bilhões Fonte: Barclays World GILB Index, março de 2009 2.2.3 Mercado de títulos cambiais e indexados à taxa Selic A partir do esforço do Tesouro Nacional para redução significativa das parcelas da dívida interna indexadas ao dólar e à taxa de juros de curto prazo (Selic), o mercado desses títulos vem sendo desestimulado. Assim, medidas como a não emissão de títulos indexados ao câmbio (NTN-D) desde maio de 2002 acabaram com 294 Dívida Pública: a experiência brasileira o mercado de títulos cambiais, enquanto a substituição gradual dos títulos indexados à Selic por prefixados tem sido enfatizada. A drástica redução da exposição cambial do governo federal (Tesouro Nacional e Banco Central), na qual, além da parcela da dívida cambial na DPF, incluem-se os swaps cambiais sob responsabilidade do Banco Central, permitiu diminuição considerável dos indicadores de risco fiscal. A melhor composição da DPF, associada ao maior acúmulo de reservas internacionais, cujo estoque ultrapassou em muito o total da Dívida Pública Federal externa (DPFe), fez com que o impacto negativo sobre a dívida de uma depreciação no câmbio caísse vertiginosamente em relação a 2002, a ponto de ter seu sinal invertido a partir de 2006. Gráfico 17. Dívida interna indexada ao dólar – em % DPMFi Gráfico 18. Impacto na DLSP de 1% de desvalorização cambial 295 No mercado de títulos indexados à taxa Selic, as LFTs, que ainda correspondem a 32,4% da DPF,18 optou-se por criar pontos de referência, concentrando a emissão em prazos mais longos. Esses títulos pos- suem prazo médio de 30,5 meses, contra 16,5 meses dos títulos prefixados, e ainda que se pretenda reduzir a parcela desses instrumentos de forma gradual, não há como negar que eles cumprem um papel importante no alongamento do prazo da dívida. Gráfico 19. Prazo médio do estoque de títulos indexados à taxa Selic – DPMFi 2.2.4 Diversificação da base de investidores Uma das principais forças do mercado brasileiro é sua robusta base de investidores.19 Medidas no sentido de ampliá-la e diversificá-la têm sido priorizadas no gerenciamento da dívida, dado o importante papel desse fator para mitigar riscos associados ao financiamento por meio da emissão de títulos, além de proporcionar maior estabilidade e liquidez ao mercado de títulos. Segundo o BIS:20 “Many observers have emphasized the role of a diversified investor base in promoting market liquidity because of its positive effect on market competition, innovation and sophistication”. 18 Títulos remunerados pela taxa de juros calculada a partir das operações compromissadas por um dia, tendo títulos públicos federais como garantia. Posição em dezembro de 2008. 19 Ainda que exista uma forte cultura de indexação a taxas de juros de curto prazo (ver Capítulo 6 da Parte 3. 20 Financial stability and local currency bond markets, CGFS Papers, n. 28, june 2007. 296 Dívida Pública: a experiência brasileira Nesse sentido, vale mencionar que o aumento da participação na DPF dos títulos remunerados por índices de preços e prefixados foi consequência da maior participação das entidades de previdência priva- da, de estrangeiros, bem como de tesourarias nos leilões de títulos da dívida interna.21 No entanto, cabe observar que, assim como a maioria dos países da América Latina, o Brasil tem uma presença marcante dos bancos na intermediação financeira (carteira própria e fundos de investimento detêm 29% e 40% da DPMFi,22 respectivamente). Ainda segundo o BIS: “As regards domestic ownership, a major difference is that the share held by banks is much larger, and that of other financial institutions is much smaller, in the EMEs than in the industrial countries […]” Vale mencionar que os dados antes citados para o caso brasileiro são vistos sob a ótica do registro (cus- tódia), e não do detentor final do título, conforme enfatizado no capítulo sobre base de investidores (Capítulo 5 da Parte 3). Na tentativa de identificar quem seriam os detentores finais desses títulos gerenciados pelos bancos, um exercício apresentado no capítulo mencionado chega à seguinte composição: Gráfico 20. Composição dos detentores finais da DPMFi – dezembro de 2008 Fonte: Banco Central e CVM Com essa composição, observa-se que a participação conjunta de investidores institucionais (fundos de previdência complementar, seguradoras e sociedades de capitalização, dentre outros) e não residentes é de cerca de 36%. Dado que esses são investidores que tradicionalmente compram títulos de mais longo prazo e retratam base de investidores sólida, apresentando características em linha com as diretrizes de gerenciamento da dívida pública, o Tesouro vem, por meio de suas ações, incentivando a maior participação desse tipo de investidor na dívida pública. Dentre essas ações na busca por uma base de investidor mais diversificada, merece destaque, além dos contatos frequentes com entidades de previdência complementar, instituições financeiras, investidores 21 Para maiores detalhes, ver Capítulo 5 da Parte 3, 22 Relatório Mensal da Dívida Pública Federal, Tesouro Nacional, dezembro de 2008. 297 não residentes e de varejo (programa Tesouro Direto), por meio de reuniões e participações em seminários, a aprovação da Lei nº 11.312, de 2006, que isenta os não residentes do pagamento de imposto de renda sobre ganhos auferidos em investimentos em títulos da dívida interna. A citada lei equiparou o tratamento tributário brasileiro aos não residentes ao praticado pela maioria dos países emergentes, tendo por objetivo aumentar a participação desses investidores, que notadamente investem em títulos de mais longo prazo, principalmente prefixados ou referenciados por índices de preços.23 De fato, essa lei contribuiu significativamente para a maior participação de investidores não residentes,24 que são potenciais demandantes de títulos públicos, haja vista a baixa participação que esses investidores ainda apresentam no total da dívida doméstica, comparativamente a outros investidores. Gráfico 21. Participação % de não residentes na DPMFi Fonte: CVM e Banco Central do Brasil. Elaboração: Secretaria do Tesouro Nacional 2.3 Liquidez e precificação “In assessing the choice of market structure with the goals of liquidity and efficiency in mind, authorities should consider frequency of trading, transparency, and competition, all of which have an impact on liquidity and efficiency.”25 A melhora na liquidez possibilita uma maior transparência aos preços, o que faz com que o investidor exija um prêmio menor para adquirir o título, reduzindo, assim, o custo de financiamento do emissor. Nesse 23 Em linha com as diretrizes do Plano Anual de Financiamento (PAF), tanto no que se refere ao aumento da participação desses títulos como no alongamento do prazo médio da Dívida Pública Federal. 24 O Capítulo 5 da Parte 3 traz estatísticas dessa contribuição dos investidores não residentes. 25 Developing a government bond market: a handbook (2001). 298 Dívida Pública: a experiência brasileira sentido, o Brasil tem se empenhado em desenvolver seu mercado, por meio do aumento da liquidez e da transparência dos títulos públicos federais, tanto por meio de medidas do governo como de iniciativas de entidades do setor financeiro. Segundo dados do Trade Association for the Emerging Markets (EMTA), o Brasil ocupou em 2008 o primeiro lugar nos rankings de volumes negociados de países emergentes, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. Cabe acrescentar que a negociação de instrumentos domésticos correspondeu a 68% do volume total negociado de títulos desses países. Gráfico 22. Participação dos países emergentes no volume negociado de instrumentos domésticos em 2008 (Top 10) Fonte: EMTA, dez. 2008 Gráfico 23. Participação dos países emergentes no volume negociado de instrumentos externos em 2008 (Top 10) Fonte: EMTA, dez. 2008 299 Embora o volume total negociado de títulos seja elevado quando comparado a outros países emergentes, o giro médio diário ainda pode melhorar. Esse giro no mercado dos Estados Unidos, reconhecidamente o mais líquido do mundo, é de 14% do total do estoque da dívida, e o do México, de 4%, enquanto no Brasil esse indicador está abaixo de 2% do total da Dívida Pública Federal.26 O Brasil vem adotando, desde 1999, uma série de medidas para aumentar a liquidez27 de seus títulos, quando, em conjunto com o Banco Central, criou um grupo de estudos para identificar quais seriam as medidas adotadas para dinamizar o mercado de dívida pública. A implementação de algumas medidas tem propiciado, desde então, melhora significativa na liquidez dos títulos públicos. Além disso, medidas de maior transparência das informações têm auxiliado na melhor precificação dos títulos públicos. De acordo com o capítulo sobre mercado secundário,28 esse grupo de medidas pode ser dividido de forma didática em dois grandes blocos: o primeiro busca dar condições diretas para o aumento das negocia- ções entre os participantes de mercado, enquanto o segundo permite maior transparência de informações, como, por exemplo, divulgação regular de estratégia de emissões de títulos públicos, possibilitando maior planejamento e menor incerteza. Com tais medidas, buscava-se criar condições para aumento da liquidez por conta do aumento na base de investidores e maior previsibilidade na precificação dos ativos negociados, bem como alongamento do prazo das emissões. Também no mercado externo, o Brasil tem concentrado esforços, nos últimos anos, para desenvolver a liquidez de vários instrumentos, com reaberturas de títulos com prazos de referência (benchmarks) de dez e trinta anos. Nesse sentido, a partir de 2005, títulos de referência para dez anos foram emitidos em fevereiro, junho e novembro daquele ano, novembro de 2006 e abril de 2007, e para trinta anos, em janeiro e março de 2006 e janeiro de 2007. Relativamente à precificação, além das medidas adotadas pelo Tesouro Nacional, o Banco Central e a Associação Nacional das Instituições de Mercado Aberto (Andima) têm buscado promover a transparência do mercado, com destaque para: a divulgação diária dos preços indicativos dos títulos públicos (76 vencimentos); a Calculadora Eletrônica de Títulos Públicos Federais (Confere); o desenvolvimento de alguns índices benchmark para encorajar a diversificação da carteira dos investidores (Imas); a divulgação de um sistema de comparação de taxas (Compare); e a divulgação intradia dos preços dos títulos públicos federais, antes e após as negocia- ções. Essas iniciativas vêm gerando resultados práticos, conforme apresentado no Capítulo 6 da Parte 3. 3 Medidas para o desenvolvimento do mercado de dívida pública O panorama geral apresentado na seção anterior ilustra a representatividade do mercado de títulos públicos brasileiros e os seguidos avanços em seu desenvolvimento. Além de contar com condições mais fa- voráveis no aspecto macroeconômico, esse desenvolvimento é resultado de uma série de medidas que serão tratadas em maiores detalhes nos capítulos seguintes desta parte do livro. Esta seção destaca algumas dessas medidas, enfatizando suas inter-relações com os principais temas abordados nos capítulos seguintes. Uma das principais características das medidas para o desenvolvimento do mercado é justamente seus efeitos simultâneos sobre vários aspectos do mercado de títulos. Medidas que visem a aprimorar sistemas de custódia e liquidação, por exemplo, além de auxiliarem a melhoria da 26 Amante, Araujo e Jeanneau (2007). 27 Para maiores detalhes sobre tais medidas, vide Capítulo 6 da Parte 3. 28 Capítulo 6 da Parte 3. 300 Dívida Pública: a experiência brasileira infraestrutura do mercado, favorecem também a expansão da base de investidores, a demanda no mercado primário e o maior volume de negociações no mercado secundário. A implementação de um plano de ação coordenado para o desenvolvimento do mercado doméstico de títulos é, portanto, uma tarefa complexa, que requer ao mesmo tempo ordenamento adequado de ações, em virtude de suas interdependências, e o envolvimento de diversos atores que participam do mercado (emissores, reguladores, intermediários financeiros, investidores e entidades de classe). Além disso, conforme concluiu o World Bank (2007) em seu projeto piloto de elaboração de planos de ação para o desenvolvimento do mercado doméstico de títulos públicos em 12 países: “One-size does not fit all”, ou seja, não há uma receita geral aplicável a todos os países. Deve-se procurar, com base em princípios sólidos e boas práticas internacionais, desenhar soluções críveis e adequadas às circunstâncias de cada país. A Tabela 1 tem em cada linha uma medida ou um conjunto de medidas adotadas no Brasil para melhorar de modo geral um ou vários aspectos do mercado de títulos. As colunas da tabela representam os diversos aspectos do mercado afetados pelas medidas adotadas e os respectivos capítulos nos quais estas serão abordadas em maior detalhe. Esse painel fornece um bom exemplo de como um plano de ação para o desenvolvimento do mercado envolve diversas medidas que, por sua vez, impactam vários aspectos simulta- neamente e dependem de múltiplos participantes do mercado. A necessidade dessa visão global e abrangente constitui uma das principais lições para a implementação de projetos para o desenvolvimento do mercado de títulos públicos. As três primeiras medidas mencionadas na tabela anterior têm em comum o fato de poderem ser classificadas como básicas para o desenvolvimento de um mercado de títulos públicos. Tais medidas são relevantes para a constituição de mercados primário e secundário mais eficientes, no sentido de que regras claras, de conhecimento generalizado, de fácil compreensão e baseadas em modelos gerados pelo próprio mercado tendem a atrair maior número de participantes, ampliando a base de investidores e possibilitando um maior número de negociações de títulos, contribuindo assim para um mercado primário mais competitivo e um mercado secundário mais líquido e, em última análise, criando as condições para a redução do custo da dívida pública. Esses princípios estão em linha com as melhores práticas internacionais, e sua relevância no caso brasileiro será tratada em quatro dos capítulos seguintes (ver Tabela 1). Quanto à padronização de instrumentos, por exemplo, a experiência brasileira comprova sua importância no processo de redução da fragmentação da dívida e de construção de pontos de referência mais líquidos em diversos setores da curva de juros. Isso vem funcionando bem, tanto no mercado de títulos prefixados (LTN e NTN-F) quanto no de índices de preços (NTN-B), conforme descrito na seção anterior deste capítulo. Da mesma forma, a existência de regras claras de precificação, aliadas a uma cuidadosa análise e monitoramento sobre os mecanismos mais adequados de financiamento (conforme abordado em detalhes no capítulo sobre mercado primário), tem estimulado a competição e a formação de preços de títulos do governo, com reflexos positivos sobre o mercado secundário de tais instrumentos. Além do grupo das três primeiras medidas descritas na Tabela 1, podemos identificar um segundo grupo de medidas que também contribuem para o desenvolvimento de uma base de investidores mais ampla e para tornar mais competitivos e líquidos os mercados primário e secundário. Esse segundo grupo, no entanto, tem também reflexos positivos na infraestrutura do mercado de títulos como um todo e inclui: sistemas eficientes de liquidação e custódia, sistemas de negociação eletrônica e de dealers. 301 Tabela 1 302 Dívida Pública: a experiência brasileira A existência de uma infraestrutura desenvolvida que dê conforto aos agentes de mercado no que se refere à existência de sistemas modernos e seguros para custódia e liquidação de transações de títulos é uma condição essencial para o desenvolvimento do mercado de renda fixa. Nesse sentido, cabe destacar a introdução, por parte do Banco Central, em 2002, do novo Sistema de Pagamentos Brasileiro, que aperfeiçoa a agilidade e a segurança no processamento de informações a respeito da liquidação de operações com títulos de renda fixa, bem como minimiza os riscos financeiros, mediante liquidação de operações em tempo real, no modelo de entrega contra pagamento (DVP). Destaca-se, ainda, a criação em 2004, pela BM&F, com apoio governamental, de uma clearing house para a liquidação de títulos públicos, integrada a um ambiente de negociação eletrônico. A Câmara de Ativos da BM&F, integrada ao sistema de negociação eletrônico Sisbex, possibilitou transações com mitigação de risco de contraparte, uma vez que a câmara atua como contraparte central. Apesar de o mercado local ser dominantemente composto por negociações de balcão, parece claro que o mercado eletrônico tende a ganhar espaço, na medida em que é incentivado por autoridades governamentais em busca de maior transparência na formação de preços e, consequentemente, maior participação de agentes com menor grau de informação (vide capítulo sobre o mercado secundário). A criação de um sistema de dealers do Tesouro Nacional e do Banco Central, em 2003, com uma estrutura na qual a existência de direitos e deveres contribui para um mercado primário mais competitivo, para um mer- cado secundário mais líquido e para um ambiente no qual o fluxo de informações de mercado é mais uniforme. Tal sistema representa também uma melhoria na infraestrutura do mercado de títulos públicos. A existência do sistema de dealers possibilita, ainda, avanços em outras áreas específicas. Um exemplo foi a implementação em 2007 de novas exigências no sistema de dealers que estimulam a negociação eletrônica e devem contribuir para o crescimento dessa opção, em contraposição ao mercado de balcão. Finalmente, dentre as medidas elencadas na Tabela 1, pode-se destacar um terceiro grupo que possui reflexos positivos nos mercados primário e secundário, bem como sobre a base de investidores. Esse grupo de medidas inclui essencialmente: definição clara do órgão responsável pelas emissões de títulos; divulgação regular de planos para emissões e dados de mercado; criação de títulos de referência (benchmarks), incentivos à participação de investidores institucionais, não residentes e de varejo; e incentivos ao mercado de derivativos. A prática internacional exalta a relevância em se definir formalmente o(s) órgão(s) autorizado(s) a emitir títulos públicos, bem como divulgar planos de emissão, calendários de leilão e dados de mercado.29 Isso porque esses procedimentos fortalecem a transparência e a previsibilidade da gestão da dívida, requisitos importantes 29 Conforme detalhado na seção 2 do Capítulo 1 da Parte 2. 303 no processo de desenvolvimento do mercado de títulos públicos. A ausência de qualquer desses fatores em um mercado de títulos gera incertezas que invariavelmente se traduzem em maiores custos de financiamento para o governo. O Brasil possui um arcabouço sólido nesses temas, seja pela clara atribuição ao Tesouro Nacional para a emissão primária de títulos da dívida federal, estabelecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela difusão de relatórios que projetam metas de emissão (Plano Anual de Financiamento e Calendários Mensais de Emissão, por exemplo) ou pela divulgação regular de estatísticas e análises sobre a gestão da dívida (Relatório Anual da Dívida e Relatórios Mensais).30 Medidas voltadas para a criação e a sustentação de títulos benchmarks também contam com amplo respaldo empírico e conceitual. A criação de pontos de referência, normalmente representados por títulos com volumes significativos em diferentes prazos, estimula a liquidez desses títulos e auxilia na formação de preços de outros instrumentos públicos e privados. A seção anterior deste capítulo ilustrou a experiência brasileira recente nesse campo em relação às curvas de juros de títulos prefixados, NTN-F, e dos remunerados por índices de preços, NTN-B. Quanto à base de investidores, as experiências mais avançadas em gerenciamento de dívida revelam a im- portância de uma base diversificada para o desenvolvimento do mercado. Nesse sentido, algumas recomendações são feitas para que gradualmente a base de investidores tenha uma participação qualitativa no desenvolvimento do mercado de títulos,31 dentre elas permitir a maior participação de instituições que não apenas bancos comerciais, pois estes têm a tendência de investir em títulos mais curtos para atender às suas necessidades de liquidez. Nesse aspecto, investidores institucionais, tais como os fundos de pensão, têm papel fundamental para auxiliar a mudança de perfil da dívida para títulos de mais longo prazo. Outra sugestão é ter em sua base de investidores participação de clientes de varejo. Esse é o caso do Tesouro Direto,32 modalidade de venda de títulos públicos por meio da internet, na qual o Tesouro Nacional oferta, exclusivamente para pessoas físicas, um conjunto de títulos idênticos àqueles ofertados ao mercado.33 Além disso, um nicho importante para o desenvolvimento do mercado doméstico são os investidores não residentes. Finalmente, temos as considerações acerca do mercado de derivativos. O mercado de derivativos de taxas de juros no Brasil é extremamente líquido, e a emissão de títulos prefixados com data de vencimento idêntica à dos contratos mais líquidos negociados na BM&F foi uma medida que contribuiu para o aumento dessa liquidez. Investidores no Brasil utilizam esses dois mercados para administrar suas exposições às taxas de juros. O papel do mercado de derivativos no desenvolvimento do mercado de títulos públicos, e vice-versa, é um tema de atenção internacional. Diversos países buscam desenvolver ambos os mercados, e a experiên- cia brasileira fornece boas lições sobre o tema. Contratos de derivativos indexados ao IPCA foram também lançados em 2004 e possibilitam aos detentores de NTN-B a realização de hedge, além de eventualmente estimular a negociação desses papéis. 30 Para uma descrição detalhada desses relatórios, vide Capítulo 4 da Parte 1. 31 Para maiores detalhes, vide World Bank (2007). 32 Ver Capítulo 7 da Parte 3 33 A exceção é um título de longo prazo corrigido pela inflação (IPCA), similar à NTN-B, porém sem o pagamento de cupons semes- trais, denominado NTN-B Principal. Esse título é ideal, por exemplo, para a formação de reservas individuais para aposentadoria, por não apresentar problemas relacionados ao reinvestimento de cupons. 304 Dívida Pública: a experiência brasileira 4 Considerações finais Respaldada pelas melhores condições macroeconômicas, a condução de uma gestão ativa da dívida vem contribuindo para o desenvolvimento do mercado de títulos públicos federais. Embora esse seja um processo contínuo e com muitos desafios ainda a serem superados, a melhora da composição da dívida e o desenvolvimento de seu mercado reduziram riscos e exposições a choques adversos antes existentes no país, tais como os enfrentados durante esta recente crise internacional. Este capítulo demonstrou que o caminho até aqui foi difícil, com retrocessos causados principalmente pela ausência, no passado, de pré-requisitos fundamentais para assegurar o desenvolvimento sustentável do mercado. À medida que tais pré-requisitos foram alcançados, o processo de desenvolvimento do mercado de títulos ganhou força e robustez crescente ante as turbulências ocasionais de mercado. Alongaram-se prazos e volumes de emissão de títulos prefixados e remunerados por índices de preços e eliminou-se a emissão de títulos vinculados à taxa de câmbio no mercado doméstico, ao mesmo tempo em que o país lançava interna- cionalmente títulos públicos em moeda local. Embora a importância de bons fundamentos seja uma lição irrefutável desse processo, este capítulo procurou mostrar uma dimensão adicional: a relevância de um plano abrangente de medidas e ações para o bom funcionamento do mercado. O processo de desenvolvimento do mercado é complexo e envolve diversas áreas e atores. Felizmente, a maior profissionalização da gestão da dívida em nível internacional e no Brasil vem ampliando a capacidade dos administradores da dívida e dos especialistas de lidarem com esses desafios. O Brasil é um claro exemplo positivo nessa direção. Diversas medidas, respaldadas por melhores práticas internacionais, vêm sendo implementadas nos últimos anos e contribuíram para tornar o mercado brasileiro de títulos públicos mais líquido, seguro e sofisticado, assemelhando-se em alguns aspectos (tais como sua infraestrutura) aos de países mais desenvolvidos. Sem dúvida, há ainda razoável espaço para evolução, nota- damente quanto à formação de referências ainda mais líquidas de longo prazo na estrutura de taxas de juros, potencializando os benefícios esperados de um mercado de capitais mais desenvolvido. Referências AMANTE, André; ARAUJO, Márcio; JEANNEAU, Serge. The search for liquidity in the Brazilian domestic government bond market. BIS Quarterly Review, june 2007. BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS. Committee on the Global Financial System (CGFS), Financial stability and local currency bond markets, Papers, n. 28, june 2007. ITAÚ CORRETORA. Brazil fixed income strategy, feb. 2007. MCCAULEY, R.; REMOLONA E. Size and liquidity of government bond markets. BIS Quarterly Review, nov. 2000. MISSALE, Alessandro; GIAVAZZI, Francesco. Public debt management in Brazil, june 2003 TRADE ASSOCIATION FOR THE EMERGING MARKETS, 2008. Annual Debt Trading. Survey, Feb. 25, 2009. WORLD BANK; IMF. Devoloping government bond market: a handbook. Washington, DC: World Bank and IMF, 2001. ______. Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementation. Washington, DC: World Bank, 2007. 305 306 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 2 Títulos públicos federais e suas formas de precificação Ronnie Gonzaga Tavares Márcia Fernanda Tapajós Tavares 1 Introdução A precificação de um instrumento não é uma questão operacional que se restrinja apenas a critérios matemáticos e convenções de mercado. A forma de valoração de um título tem efeitos em sua negociação, que podem estimular ou reduzir a liquidez desse instrumento no mercado secundário. Tal fato implica dizer que a precificação de um título pode ter efeito direto no custo desse ativo. O Tesouro Nacional, ciente do forte impacto que a precificação pode alcançar no sucesso da emissão de um título, vem ao longo dos últimos anos, com a colaboração de diversos participantes do mercado, gradual- mente adotando medidas que visam a simplificar seus instrumentos, dentre as quais vale destacar: a redução do número de títulos; o ajuste de pagamento de juros, permitindo a fungibilidade dos títulos; a padronização da convenção de juros,1 permitindo a comparação entre alternativas de investimento; entre outras medidas destacadas na Parte 3 deste livro. Nesse contexto, o objetivo principal deste capítulo é apresentar de forma clara e didática os principais instrumentos de financiamento da dívida pública, suas características e metodologias de cálculo, bem como os insumos que servem de base para a formação de preços dos títulos. O capítulo está estruturado de forma que na seção 2 são destacadas as características dos principais títulos, tais como: taxas de juros, fluxo de pagamento, indexadores e padrão de contagem de dia. Na sequên- cia, a seção 3 detalha as fórmulas de cálculo para cada um dos títulos indicados no item anterior. Por último, na seção 4 é apresentada a formação de preços dos instrumentos, em que são explicitados os insumos que servem de referência para a precificação dos instrumentos tanto no mercado local quanto no internacional. 2 Descrição dos instrumentos Nesta seção serão apresentadas as características dos principais títulos da dívida doméstica e interna- cional. A variedade de instrumentos que fazem parte da dívida pública é significativamente superior aos títulos aqui apresentados. Porém, os títulos a seguir mencionados são os mais importantes para o financiamento da Dívida Pública Federal, representando mais de 90% desta. 1 Onde os títulos denominados em reais são expressos na base dias úteis/252 e os denominados em dólares seguem o padrão externo de 30/360. 307 2.1 Títulos da dívida interna A dívida interna contempla um grande número de instrumentos, os quais se encontram detalhados no Decreto nº 3.859/2001,2 o qual estabelece as características dos títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Este capítulo, entretanto, analisará apenas os principais títulos da dívida, emitidos atualmente por meio de oferta pública (leilão) ou que, embora já não façam mais parte da estratégia de financiamento do Tesouro Nacional, tenham sido bastante representativos no passado recente.3 2.1.1 Letras do Tesouro Nacional (LTNs) As LTNs são os títulos mais simples de precificação no mercado doméstico, visto que não pagam cupom de juros e apresentam um único fluxo de principal na data de vencimento do título. Adicionalmente, é importante mencionar que o valor unitário de principal a ser pago será sempre de R$ 1.000,00, independentemente da data de emissão ou de resgate do título. 2.1.2 Notas do Tesouro Nacional, Série F (NTN-Fs) As NTN-Fs são títulos prefixados que pagam cupons de juros (10% a.a.) semestrais, compostos, e apre- sentam um único fluxo de principal na data de vencimento. Assim como as LTNs, no vencimento o principal pago será sempre de R$ 1.000,00. 2.1.3 Notas do Tesouro Nacional, Séries B e C (NTN-Bs e NTN-Cs) As NTN-Bs e as NTN-Cs são títulos pós-fixados que pagam cupons de juros semestrais e apresentam um único fluxo de principal na data de vencimento, de modo similar às NTN-Fs. Entretanto, o valor do principal e dos juros são atualizados, desde a data-base, pelo indexador do respectivo título (IPCA para as NTN-Bs e IGP-M para as NTN-Cs). No vencimento, esses títulos pagam R$ 1.000,00, corrigidos pelo indexador desde a data-base até a data de resgate. 2.1.4 Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) As LFTs são títulos pós-fixados cuja estrutura é semelhante à das LTNs, visto que também não pagam cupom de juros e apresentam um único fluxo de principal na data de vencimento do título. Entretanto, o valor do principal é atualizado pela taxa Selic4 acumulada no período, ou seja, os R$ 1.000,00 pagos no vencimento são corrigidos pelo indexador anteriormente indicado, desde a data-base até a data de resgate. 2 Para maiores detalhes, no Anexo 5 encontra-se uma tabela resumo do decreto em questão. 3 Como as NTN-Cs, por exemplo. 4 Taxa média ponderada das operações compromissadas por um dia, com títulos públicos registrados no sistema Selic. 308 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 1. Descrição dos principais títulos da DPMFi Prazos de Padrão de Título Indexador emissão Principal Juros contagem (regra geral) de dias5 LTN Prefixado 6, 12 e 24 meses No vencimento Não há DU/252 NTN-F Prefixado 3, 5 e 10 anos No vencimento 10% a.a., pagos DU/252 semestralmente NTN-B IPCA 3, 5, 10, 20, 30 e No vencimento 6% a.a., pagos DU/252 40 anos semestralmente NTN-C IGP-M Não é mais emitido No vencimento 6% a.a., pagos DU/252 semestralmente6 LFT Selic 3 e 5 anos No vencimento Não há DU/252 Conforme mencionado, os instrumentos de dívida doméstica não se restringem aos aqui detalhados. Nesta seção foram especificados apenas aqueles que se configuram como títulos de financiamento do Tesouro. Informações relativas aos demais instrumentos que fazem parte da dívida pública podem ser obtidas no Decreto nº 3.859, de 4 de julho de 2001. 2.2 Títulos da dívida externa A dívida externa brasileira atualmente contempla os chamados títulos globais, ou Global Bonds, e os Euro Bonds. A definição teórica desses instrumentos, contudo, difere do que é utilizado na prática para os títulos brasileiros emitidos no exterior. Na literatura, os Euro Bonds são todos os títulos emitidos em algum mercado cuja moeda do título é diferente da moeda do mercado de emissão, enquanto os Global Bonds são aqueles que podem ser emitidos em qualquer mercado e, diferentemente dos Euro Bonds, podem ser emitidos na mesma moeda do país em que estão sendo ofertados. Logo, por esse conceito, os títulos da dívida brasileira emitidos em reais no exterior podem ser classificados como títulos globais ou como Euro Bonds. No conceito utilizado para classificação dos títulos da Dívida Pública Federal externa (DPFe), os globais são títulos que só podem ser negociados no mercado norte-americano. Entretanto, sua moeda não necessariamente é em dólares americanos, tanto que a partir de 2005 o Tesouro passou a emitir títulos globais em reais. Já os títulos negociados no euromercado, os Euro Bonds, são geralmente denominados em euros. O mercado samurai, que também era uma das alternativas de financiamento da República no passado, deixou de ser acessado desde 2001. 5 O padrão de contagem de dias encontra-se detalhado no Anexo 1. 6 À exceção da NTN-C 2031, cujo cupom é de 12% a.a., pagos semestralmente. 309 Outro aspecto relevante no que diz respeito à dívida externa brasileira é que em 2005, por meio de uma operação de troca, foi retirada de circulação a quase totalidade do mais significativo Brady Bond em termos de volume e liquidez, o C-Bond. Na sequência, em 15 de abril de 2006, o Tesouro Nacional exerceu o direito de resgate antecipado, ao par, de todo o estoque remanescente dos Bradies que ainda se encontravam em mercado. Com essa atuação do Tesouro, atualmente, a dívida externa brasileira é composta apenas por títulos de dívida voluntária.7 2.2.1 Global US$ Bonds e Global BRL Bonds Os Globais US$ Bonds e BRLs Bonds são os principais títulos de financiamento externo do Tesouro Nacional. Os Globais (US$) são títulos emitidos no mercado Global, isto é, podem ser negociados em vários mercados e já fazem parte da estratégia de atuação do Tesouro Nacional há muitos anos. Os BRLs, que são títulos prefixados em reais, foram emitidos pela primeira vez em setembro de 2005, com o lançamento do BRL 2016. Desde então, esses títulos estão sendo emitidos regularmente. Vale notar que, pela definição anterior, os BRLs também são títulos globais. Em relação ao pagamento de juros, ambos os títulos pagam cupons de juros semestrais e apresentam um único fluxo de principal na data de vencimento, de modo similar às NTN-Fs. 2.2.2 Euro Bonds Os Euro Bonds brasileiros (ou eurobônus) são títulos emitidos em euros, pagam cupons de juros anuais e apresentam um único fluxo de principal na data de vencimento. Por já serem emitidos em euros, não há atualização do valor nominal. Os títulos emitidos mais recentemente podem também ser negociados no mercado global, sendo, portanto, também títulos globais. Por simplificação, são tratados simplesmente por eurobonds, a exemplo dos demais nessa moeda. 2.2.3 A-Bond O A-Bond, quando emitido, era o segundo título mais líquido da República, sendo superado apenas pelo Global 2040. Ao contrário dos demais títulos aqui especificados, não faz parte dos instrumentos tradicionais de financiamento, sendo originado de uma operação estruturada. O A-Bond foi emitido em uma operação de troca,8 na qual o Brady C-Bond foi substituído pelo título em questão. O C-Bond possuía uma opção embutida, call, que dava direito ao emissor (no caso o Tesouro Nacional) de recomprá-lo ao valor par a partir de 15/10/2005.9 No intuito de reduzir a grande parcela em dinheiro que deveria ser desembolsada no momento em que o Tesouro exercesse sua opção, decidiu-se realizar antecipadamente uma operação de troca de parcela dos C-Bonds por outros títulos com características 7 Em 15 de abril de 1994 foi assinado o último acordo de renegociação da dívida externa, por meio do qual foram emitidos sete Brady Bonds, os quais compuseram, juntamente com o BIB e o IDU, os nove títulos da dívida externa renegociada. Tais títulos foram resgatados antecipadamente, ao par, pelo Tesouro Nacional, em 15 de abril de 2006, à exceção dos BIBs, que não possuíam cláusula de recompra antecipada e ainda estão em circulação. 8 A operação de troca mencionada será explicada em mais detalhes no Capítulo 4 da Parte 3. 9 O exercício da call (opção de recompra ao par) poderia ocorrer em apenas duas datas a cada ano, 15 de abril e 15 de outubro, devendo ser recomprada a totalidade dos títulos eleitos para a call. 310 Dívida Pública: a experiência brasileira semelhantes (os A-Bonds), porém mais longos e sem opção de compra embutida. Os poucos investidores que optaram por não participar da operação tiveram seus C-Bonds recomprados pelo Tesouro na data de exercício da opção, em 15 de abril de 2006. Tabela 2. Descrição dos principais títulos da dívida externa Moeda Prazos de Padrão de Título de emissão Principal Juros contagem Origem (regra geral) de dias Global Dólar 10 e 30 anos No vencimento Varia de acordo 30/360 com o prazo BRL Real 10, 15 e 20 anos No vencimento Varia de acordo 30/360 com o prazo Euro Euro 10 anos No vencimento Varia de acordo Dc/Dc com o prazo A-Bond Dólar Vencimento Em 18 8% a.a., pagos 30/360 em 2018 parcelas iguais semestralmente Além dos títulos mencionados, o Tesouro Nacional possui em mercado um único título flutuante em dólares (o Global FRN 200910), emitido em junho de 2004. Não sendo, atualmente, contempladas novas emissões de títulos flutuantes, esse instrumento não foi detalhado no presente capítulo. 3 Precificação “Precificar” um título público nada mais é que descontar um fluxo de caixa por determinada(s) taxa(s) de desconto para uma data escolhida. Caso o fluxo seja descontado por uma única taxa, esta é chamada de taxa interna de retorno (TIR) e representa o rendimento de uma aplicação naquela data.11 Para um título que apresenta pagamentos periódicos de juros e/ou amortização, é possível precificá-lo descontando-se cada um dos fluxos recebidos por uma taxa de desconto válida para aquele prazo. Vale ressaltar que, após o cálculo do preço do título utilizando-se essa metodologia, é possível proceder ao cálculo inverso e determinar qual a TIR equivalente àquele preço encontrado, ou seja, calculando-se o preço do título por várias taxas ou pela TIR equivalente, o preço encontrado será sempre o mesmo. A forma de negociação de títulos públicos pode variar caso seja efetuada no Brasil ou no exterior.12 No mercado doméstico, são negociadas as taxas de rendimento dos títulos (TIR), as quais são expressas em 10 Maiores informações sobre esses títulos e demais instrumentos da dívida pública podem ser obtidos no site do Tesouro: http:// www.tesouro.fazenda.gov.br/divida_publica/. 11 A taxa interna de retorno apresenta uma limitação, qual seja: se o título apresentar pagamentos periódicos de juros e/ou amor- tização, sua utilização pressupõe que os fluxos recebidos sejam reaplicados exatamente à mesma taxa, a TIR. 12 Deve-se destacar, entretanto, que para cada TIR de um título específico há um único preço equivalente e vice-versa. 311 bases anuais e seguem um padrão de contagem de dias, conforme indicado nas Tabelas 1 e 2. Já no mercado internacional, os negócios são efetuados pelo preço limpo dos títulos.13 Outro detalhe que merece ser comentado é que no mercado doméstico a liquidação financeira dos negócios com títulos públicos normalmente ocorre em D+1, ou seja, no primeiro dia útil subsequente à realização do negócio ou do leilão de títulos pelo Tesouro Nacional. No mercado internacional, porém, a liquidação financeira ocorre em D+3 (dias úteis). 3.1 Títulos da dívida interna14 3.1.1 Letras do Tesouro Nacional (LTNs) As LTNs são chamadas de zero coupon bonds (bônus de cupom zero) ou Discount Bonds (bônus de desconto). Esses títulos são adquiridos com deságio tanto no mercado primário quanto no secundário, e o rendimento do papel está diretamente relacionado a esse deságio negociado. Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de uma LTN: Valor nominal (VN) = R$ 1.000,00 Dias úteis Taxa de juros efetiva no período ( ip ) (du) Preço VN 1.000 PU = = unitário (1+ip) (1+ip) (PU) onde ip = taxa efetiva do período. Como as negociações são efetuadas pelas taxas anuais do título, vale a fórmula: 13 O Box 1 deste capítulo esclarece a diferença entre preço sujo e preço limpo de um título. 14 Todos os cálculos aqui apresentados possuem regras de truncamento e arredondamento de casas decimais. Essas regras, bem como exemplos de cálculos, estão detalhadas no Anexo 3. 312 Dívida Pública: a experiência brasileira onde ia = taxa efetiva anual; du = dias úteis do período. 3.1.2 Notas do Tesouro Nacional, Série F (NTN-Fs) As NTN-Fs, conforme anteriormente mencionado, são títulos prefixados que pagam cupom de juros semestrais. As datas de pagamento dos cupons de juros são determinadas contando-se seis meses retroati- vamente à data de vencimento do título ou do último cupom de juros determinado. Adicionalmente, o valor do cupom de juros é fixo, mesmo que o primeiro pagamento de cupom ocorra com menos de seis meses da data de emissão do título. As NTN-Fs, bem como as NTN-Bs, podem ser adquiridas com ágio ou deságio nos mercados primário e secundário, a depender do cupom de juros do título e do nível de rendimento desejado pelo investidor. Por ser um título com fluxo de juros, pode ser precificada por uma única taxa (TIR) ou por taxas de desconto específicas para cada prazo. O resultado, conforme já mencionado, é o mesmo, independentemente do critério adotado. Em geral, esse título é calculado tendo como referência uma curva de mercado. O cálculo dos valores dos cupons de juros é feito de forma exponencial, ou seja, o valor do cupom segue a seguinte fórmula: onde = cupom semestral; = cupom anual. Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de uma NTN-F: C4+VN C1 C2 C3 du1 du2 du3 du4 PU 313 onde C = pagamento de juros (semestral); VN = R$ 1.000,00; i = taxa efetiva anual (truncada na 4a casa decimal); Tn = dias úteis no período. 3.1.3 Notas do Tesouro Nacional, Séries B e C (NTN-Bs e NTN-Cs) As NTN-Bs e as NTN-Cs, títulos indexados ao IPCA e ao IGP-M, respectivamente, possuem, da mesma forma que as NTN-Fs, datas de pagamento de juros calculadas retroativamente a cada seis meses, a partir da data de vencimento do título. Por possuírem atualização monetária, o valor dos juros é fixo, em percentual, sobre o valor nominal atualizado. Os títulos pós-fixados NTN-B, NTN-C, NTN-D e LFT não podem ser calculados da mesma forma que a NTN-F, que é um título prefixado. Ocorre que para os títulos com indexadores não é possível saber de antemão quais os valores dos cupons de juros e do principal na data de negociação. Assim, é necessário proceder a um cálculo intermediário (com todos os fluxos em base 100 ou percentual) para se achar a cotação do papel, que então será multiplicado pelo valor nominal atualizado do título com vistas a se determinar o preço. O cálculo dos valores dos cupons de juros é feito de forma exponencial, ou seja, o valor do cupom é dado pela seguinte fórmula: onde, = cupom semestral; = cupom anual. É importante ressaltar que, diferentemente das NTN-Fs, a precificação das NTN-Bs e das NTN-Cs não costuma ser efetuada com base nas diversas taxas de mercado distintas, pois ainda não há curvas de juros suficientemente líquidas em IPCA e em IGP-M para esse fim. Contudo, a precificação pode ser efetuada pelo mesmo método da NTN-F utilizando a própria curva zero de NTN-B15 e C. 15 Nesse ponto, vale mencionar que as NTN-Bs 2015 e 2024 (principal), títulos ofertados no âmbito do Programa Tesouro Direto, são precificadas pela curva zero de NTN-B. 314 Dívida Pública: a experiência brasileira Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de uma NTN-B/NTN-C: PU = VNA x cotação onde J = pagamento de juros considerando a cotação do título em 100% (semestral); i = taxa efetiva anual; Tn = dias úteis no período. 3.1.4 Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) As LFTs são chamadas de zero coupon bonds (bônus de cupom zero) ou discount bonds (bônus de desconto). Esses títulos também podem ser adquiridos com ágio ou deságio, dependendo apenas do nível de rendimento que o investidor deseja obter. Apesar de não possuírem fluxo de juros, são títulos vinculados a um indexador (Selic), o que impede que se saiba antecipadamente o valor do principal no vencimento. Assim, a precificação é realizada de forma similar às NTNs, porém sem o fluxo de juros. O fluxo é calculado com base 100 ou percentual, para obter uma cotação, a qual será multiplicada pelo valor nominal atualizado do título para determinar o preço. Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de uma LFT: 315 PU = VNA x cotação onde ip = taxa efetiva do período. Como as negociações são efetuadas pelas taxas anuais do título, vale a fórmula: onde ia = taxa efetiva anual; du = dias úteis do período. 3.2 Títulos da dívida externa É importante salientar alguns aspectos da precificação de títulos da dívida externa: l os cupons de juros são calculados em base linear. O desconto, entretanto, é realizado em base exponencial; l a liquidação das operações no mercado secundário ocorre em D+3 dias úteis, enquanto no mercado primário o padrão é D+5 dias úteis; l o valor presente é calculado de acordo com o critério de contagem de dias do título;16 l o preço utilizado nas negociações é o preço limpo. Entretanto, a operação é fechada com o preço sujo (vide Box 1 a seguir); l a TIR (Yield to Maturity – YTM) informada para o cálculo é expressa sob a forma nominal17 anual e sempre deverá ser transformada para efetiva anual; l as captações externas normalmente têm preço de emissão próximo ao par. Para tanto, os cupons de juros 16 Vide maiores infomações no Anexo 1 deste capítulo. 17 A taxa nominal é simplesmente um formato de expressão da taxa. Para que qualquer cálculo seja realizado, é necessário que se informe o critério de capitalização do título a fim de permitir que a taxa nominal seja convertida em taxa efetiva. A exceção a esse caso ocorre com os Euro Bonds, que possuem fluxo anual de juros (capitalização anual). A taxa informa da nas telas também é uma taxa anual, logo não é necessário realizar nenhum ajuste. 316 Dívida Pública: a experiência brasileira são determinados na véspera da operação, baseando-se na TIR projetada para o título, diferentemente do que ocorre nas emissões internas, em que os cupons de juros são predeterminados, permitindo a fungibilidade dos títulos. Box 1. Preço limpo e preço sujo O preço sujo de uma operação é tão-somente o cálculo do valor presente (cotação) multiplicado pelo valor nominal atualizado (VNA) do título. Já o preço limpo é calculado com base no preço sujo, sendo expurgados os juros devidos entre o último pagamento de cupom e a data de liquidação da operação, valor este que deverá ser devolvido ao vendedor do título no momento da efetivação da transação. Vale destacar que, embora seja o preço de tela18 o negociado pelos agentes de mercado, este não representa o preço que o investidor irá pagar ou receber na operação. A lógica é que os juros por competência incorridos até a data da liquidação pertencem ao vendedor do título – que é quem detinha sua posse até aquele momento –, e não ao seu comprador. Preço limpo = preço sujo – juros pro rata19 Outro aspecto a ser considerado no cálculo do preço limpo é se o título tem amortização ou capitalização. Caso ocorra uma dessas alternativas, ou ambas, o principal do título se altera ao longo de sua vigência. Assim, após calculada a cotação, é necessário que se faça um ajuste nesse resultado, de forma que ele indique efetivamente o percentual sobre o valor do título,20 de acordo com a fórmula abaixo. VP sujo ajustado = onde SDt-1 = saldo devedor do título em t-1 18 Neste ponto, é importante mencionar que, por razões históricas, é bastante usual que o preço de tela de um título seja de- nominado de preço limpo. Entretanto, o preço de tela nada mais é que a cotação do título menos o juro pro rata do período (em base 100 ou percentual). Nos títulos tradicionais, cujo principal é bullet (pago em parcela única no vencimento do título), o valor nominal é igual a $ 1.000,00 (dólares, euros ou ienes). Assim, o preço limpo do título é o preço de tela (em percentual) multiplicado por mil. 19 Juros decorridos desde o último pagamento de juros até a data de liquidação da operação. 20 Esse ajuste será mostrado no cálculo do A-Bond, título que possui amortização. 317 3.2.1 Global e BRL Bonds Os Globais e os BRLs Bonds utilizam para o cálculo de preço o padrão de dias corridos 30/360, ou seja, cada mês possui 30 dias e cada ano 360 dias (por convenção). O cálculo dos valores dos cupons de juros é feito de forma linear, conforme a seguir: onde = cupom semestral; = cupom anual. É importante ressaltar que é possível efetuar a precificação dos títulos da dívida externa com base nas diversas taxas de desconto distintas. Para tanto, é preciso calcular, inicialmente, uma curva zero externa na moeda de referência (pelo método de bootstrapping,21 ou por outra metodologia) para depois proceder a essa forma de cálculo. Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de um global ou BRL: onde J = pagamento de juros considerando a cotação do título em 100%; i = taxa nominal ano; 21 A técnica de bootstrapping consiste em tratar determinado fluxo de um título como vários fluxos únicos separadamente. Ou seja, cada pagamento de cupom passa a ser tratado como um título sem fluxo. 318 Dívida Pública: a experiência brasileira k = frequência de pagamento de cupom do título a cada ano (como esse título paga cupom semestral, k = 2, ou seja, são pagos dois cupons de juros por ano); t = número de dias pelo padrão 30/360. 3.2.2 Euro Bonds A convenção utilizada para o cálculo do preço dos Euro Bonds é diferente daquela dos globais. A con- tagem de dias é expressa em dc/dc e não é necessário realizar o cálculo do valor dos cupons, pois estes são pagos anualmente. Apresentamos, a seguir, o fluxo de caixa de um euro: onde J = pagamento de juros, considerando a cotação do título em 100% (anual); i = taxa nominal ano; k = frequência de pagamento de cupom do título a cada ano (como este título paga cupom anual, k = 1). 3.2.3 A-Bond O A-Bond, a exemplo dos demais títulos externos, também possui capitalização simples dos cupons de juros e o padrão de contagem de dias é 30/360. A diferença é que o A-Bond possui amortizações constantes, que têm início a partir de 15/07/2009. A tabela a seguir apresenta o fluxo do A-Bond em 31/12/2008: 319 Vencimento: 15/01/2018 Juros: 8% a.a. Amortização: 18 parcelas iguais com início em 15/07/2009 Datas Cupom de Juros Amortizações Prestação Saldo devedor 15/01/2009 4 4 100 15/07/2009 4 5,56 9,56 94,44 15/01/2010 3,78 5,56 9,33 88,89 15/07/2010 3,56 5,56 9,11 83,33 15/01/2011 3,33 5,56 8,89 77,78 15/07/2011 3,11 5,56 8,67 72,22 15/01/2012 2,89 5,56 8,44 66,67 15/07/2012 2,67 5,56 8,22 61,11 15/01/2013 2,44 5,56 8,00 55,56 15/07/2013 2,22 5,56 7,78 50,00 15/01/2014 2,00 5,56 7,56 44,44 15/07/2014 1,78 5,56 7,33 38,89 15/01/2015 1,56 5,56 7,11 33,33 15/07/2015 1,33 5,56 6,89 27,78 15/01/2016 1,11 5,56 6,67 22,22 15/07/2016 0,89 5,56 6,44 16,67 15/01/2017 0,67 5,56 6,22 11,11 15/07/2017 0,44 5,56 6,00 5,56 15/01/2018 0,22 5,56 5,78 0 A série de saldo devedor é construída segundo esta fórmula: Conforme mencionado, o pagamento da amortização inicia-se em 15/07/2009 e é calculado com base no saldo devedor do semestre anterior ao início do pagamento da amortização. Do início da amortização até a data de vencimento do título, em 15/01/2018, ocorrem 18 pagamentos. Dessa forma, o valor da amortização é dado por: 320 Dívida Pública: a experiência brasileira A segunda coluna da tabela representa o cálculo do cupom do A-Bond, que é dado pela seguinte fórmula: A quarta coluna representa a prestação que o título paga periodicamente, composta pela seguinte fórmula: 4 Formação de preços A descrição dos instrumentos e suas fórmulas de cálculo foram apresentadas nas seções anteriores. A precificação de um título, entretanto, requer diversos insumos, os quais servem de base para a originação de preços. A formação de preço dos instrumentos da dívida local difere da dos títulos da dívida externa. Enquanto na dívida interna a regra geral é que os títulos públicos são valorados com base nas curvas de mercado de derivativos (DI Futuro), na externa usualmente as curvas de outros emissores são a referência para os títulos brasileiros emitidos no exterior. 4.1 Dívida doméstica As taxas de rendimentos dos títulos públicos da dívida doméstica brasileira são baseadas nos derivativos de taxas de juros, diferentemente do que ocorre na grande maioria dos países. Nos mercados mais desen- volvidos, a curva de rendimentos dos títulos públicos prefixados é a base de referência para todos os outros ativos de renda fixa. Já para o caso brasileiro, essa afirmação somente é válida para fins de comparação com os títulos de renda fixa privados (por exemplo, debêntures). Adicionalmente, há de se destacar que a formação da taxa de juros dos títulos públicos domésticos é derivada de outros ativos da economia, principalmente o DI Futuro, o qual é utilizado para balizar as taxas das LTNs e das NTN-Fs. Vale notar que as LTNs e NTN-Fs normalmente são negociadas tendo por referência “pontos” sobre o ativo privado anteriormente mencionado, fato raro no mercado financeiro internacional. Isso é motivado por algumas razões, dentre as quais destacamos: i) o DI Futuro é, na prática, contrato de swap com ajuste diário, ou seja, não há desembolso efetivo de recursos ao se aplicar nesse ativo. Além disso, não se corre o risco do principal (valor nocional), somente do descasamento de fluxos entre a ponta ativa e a ponta passiva do contrato; ii) liquidez – este contrato é negociado na BM&F e apresenta liquidez superior à dos títulos públicos; e iii) risco – como os contratos de DI Futuro são negociados na BM&F e, portanto, têm o risco de contraparte minimizado em virtude das garantias alocadas e dos ajustes diários, o risco desses instrumentos assemelha-se ao risco de um título público que, por definição, é inferior ao de qualquer ativo privado. A definição do prêmio22 que o investidor deseja obter nesses papéis é o ponto de partida para o cálculo da rentabilidade dos títulos. O investidor sabe o prêmio que deseja obter sobre a curva DI,23 por exemplo, e 22 Os cálculos de prêmio estão apresentados no Anexo 2. 23 Atualmente, os títulos prefixados são negociados sob a forma de “pontos sobre o DI”, como um spread sobre a curva de swap. 321 com base nessa estimativa calcula a taxa do título e obtém o preço equivalente. A negociação no mercado, entretanto, é feita em pontos sobre o ativo de referência. Os pontos são obtidos pela diferença direta entre a taxa de rendimento calculada para o título e a taxa do DI. Os títulos indexados a índices de preços não possuem, no mercado, um instrumento equivalente. Os contratos de swap de IPCA x DI e IGP x DI possuem baixa liquidez, não sendo, portanto, referência para os títulos do Tesouro. Entretanto, para os títulos indexados a preços mais curtos há uma forte relação com a curva pré (DI) por causa da “inflação de equilíbrio”. Como o mercado estima a inflação, por uma relação de não arbitragem é possível expurgar a inflação da curva pré do mercado (curva de DI), e a diferença indica a taxa real dos títulos vinculados a IPCA ou IGP-M. Atualmente, para os títulos mais longos não há a referên- cia da curva prefixada, que é mais curta. Dessa forma, a taxa real é negociada sem nenhum vínculo com os instrumentos do mercado. A lógica apresentada, conforme mencionado, vale para as NTN-Cs. Contudo, como o Tesouro parou de emitir esses títulos, a liquidez atual é baixa, o que pode gerar distorções em sua precificação. 4.1.1 Contratos Futuros de Depósitos Interfinanceiros de 1 Dia O Contrato Futuro de Depósitos Interfinanceiros de 1 Dia (DI Futuro), calculado e divulgado pela BM&F, é atualmente o principal ativo do mercado futuro em termos de volume.24 Esse ativo referencia-se nas taxas médias das operações de troca de recursos, sem lastro em títulos, disponíveis entre instituições financeiras, calculadas pela Cetip. O objeto de negociação dos contratos é a taxa de juros efetiva dos DIs, definida como a acumulação das taxas médias diárias de DI de um dia, calculadas pela Cetip para o período compreendido entre a data de operação no mercado futuro, inclusive, e a última data de negociação (data de resgate), exclusive. Sua cotação é feita pela compra ou venda de uma taxa, calculada pela divisão do valor de resgate fixado pela BM&F pelo fator de acumulação das taxas médias diárias até a data de resgate. As posições em aberto ao final de cada pregão da BM&F são ajustadas diariamente pelo preço de ajuste do dia anterior (D-1), corrigido pela taxa média diária do DI de um dia, da Cetip, de D-1. Na prática, o DI Futuro é um swap DI x taxa prefixada, com ajuste diário. Os diversos contratos de DI Futuro formam a curva prefixada básica do mercado financeiro doméstico, a qual é utilizada como o principal parâmetro para a precificação das LTNs,25 que têm sido negociadas com um prêmio sobre essa curva. 4.2 Dívida externa Os títulos da dívida externa têm como parâmetro os títulos sem risco do mercado no qual são negociados. Assim, os títulos são precificados com base em duas informações distintas: a curva benchmark (risk free)26 do mercado no qual o título foi lançado e o spread over treasury, que representa o custo adicional pago pelos títulos brasileiros em relação à curva risk free. 24 Maiores informações sobre a liquidez dos contratos de DI estão detalhadas no Capítulo 6 da Parte 3. 25 Também utilizam o DI Futuro como parâmetro as NTN-Fs, as LFTs e, indiretamente, as NTN-Bs e as NTN-Cs. 26 Exceção a essa lógica são os títulos em euros. As curvas do Tesouro alemão e francês serviam como referência para a precifica- ção. Com o passar do tempo, a crescente liquidez dos contratos de swap em euros no mercado fizeram com que esse instrumento se tornasse a referência para precificação dos títulos soberanos naquela moeda. 322 Dívida Pública: a experiência brasileira Em virtude do exposto, os diversos indicadores do papel (yield to maturity, duration, convexidade etc.) podem ser decompostos nesses dois fatores, amplificando o poder de análise sobre o título, ou seja, o que adveio de mudanças na curva risk free e o que foi provocado por alterações no Spread Over Treasury. O fato é que, ao longo do tempo, a própria curva risk free passa a apresentar distorções advindas das colocações mais recentes de títulos, que amplia a liquidez nos respectivos pontos da curva em detrimento dos títulos mais antigos. Dessa forma, há de se considerar na análise essa distorção e verificar possíveis efeitos na curva de rendimento dos títulos brasileiros. Assim, por exemplo, é bastante comum se apresentar um gráfico de spread versus duration em adição ao tradicional yield versus duration, conforme gráficos a seguir. Gráfico 1. Yield X duration Gráfico 2. Spread X duration 323 Pode-se, inclusive, precificar um título brasileiro com base na curva zero benchmark, que é calculada se utilizando o método de bootstrapping, ou alternativo. Os vértices utilizados para a construção da curva são escolhidos entre os títulos de maior liquidez, o que neutraliza as distorções porventura existentes. Considerando-se essa curva, adiciona-se o Spread Over Treasury (SOT), sendo possível o cálculo da curva zero brasileira. Outra possibilidade é se iniciar pelo cálculo da curva zero brasileira, a partir dos títulos mais líquidos em mercado (e utilizando o método de bootstrapping, ou alternativo), e, então, calcular o Spread Over Treasury, tendo por base a curva benchmark. Diferentemente do mercado local, o investidor estrangeiro não atua com base em prêmio. O custo do investidor local é sempre CDI, ainda que não diretamente, e para o investidor estrangeiro essa referência não existe. Logo, o que vale é a taxa nominal obtida pelos critérios anteriormente descritos. Em relação aos títulos em reais (BRLs), a lógica indicaria que seu rendimento deveria ser relacionado à curva prefixada local, mas tal fato não foi observado até agora. Parte da explicação para essa situação decorre da diferença na base de investidores. Os investidores domésticos podem atuar tanto no mercado local quanto no externo em reais (BRL). Porém, isso não é verdade para o investidor estrangeiro. Embora boa parte dos investidores não residentes já atuem no mercado doméstico,27 há uma parcela significativa que, por questões legais ou regulamentares, não pode acessar esse mercado. Nesse sentido, um investidor estrangeiro que deseja investir em títulos públicos do Brasil pode preferir aplicar nos títulos em reais emitidos no exterior, mesmo ciente de que o rendimento é inferior ao dos títulos do Tesouro emitidos internamente. Gráfico 3. BRL X NTN-F 4.2.1 Spread Over Treasury (SOT) dos títulos externos O Spread Over Treasury (SOT) representa o custo adicional pago pelos títulos brasileiros (ou de quaisquer outros países ou empresas) em relação ao custo de um título risk free. Para cada um dos principais mercados, 27 Em dezembro de 2008, enquanto os títulos da dívida externa representavam 7,2% da DPF, a participação de não residentes em títulos da dívida interna era de 6,5%. 324 Dívida Pública: a experiência brasileira há uma curva benchmark representada pelos títulos do país com menor risco para aquele mercado. Por exemplo, no caso dos globais, o parâmetro é dado pelos títulos do Tesouro americano. Já para as emissões em euro, a curva benchmark é calculada com base nos títulos do Tesouro alemão (e, eventualmente, do Tesouro francês). No mercado samurai, os títulos do governo japonês são chamados de risk free. É possível calcular o SOT de diversas maneiras distintas. Apresentamos, a seguir, as três prin- cipais formas. 4.2.1.1 Cálculo do SOT pela data de vencimento A forma mais comum de calcular o spread de um determinado título é subtrair a sua TIR (YTM) da observada para um título de referência (título benchmark) com maturidade mais próxima da dele. A grande vantagem dessa metodologia é sua simplicidade. No entanto, esse não é o melhor método, pois títulos com vencimentos próximos podem ter duration bastante diferente, em função do valor dos cupons e da própria taxa de rendimento dos papéis. Exemplo: O spread do global 2027 pode ser determinado com base no título de trinta anos do Tesouro americano, cuja emissão seja a mais recente (on the run), conforme a seguir: YTM global 2027 = 6,54% ao ano; YTM US Treasury 30y = 5,20% ao ano; Spread Over Treasury (SOT) = (6,54% _ 5,20%)*100 = 134 pontos base (bps). 4.2.1.2 Cálculo do SOT pela duration Uma forma mais precisa e não muito complexa de calcular o spread de um título é partir da sua du- ration. Nesse caso, verifica-se qual o valor da curva benchmark no ponto correspondente àquela duration e faz-se a subtração. Tabela 3. Exemplo para o global 2027 com interpolação de duration Duration Taxa do US Treasury Prazo (anos) (% ao ano) 3 meses 0,25 0,96 6 meses 0,50 1,02 2 anos 1,93 1,64 5 anos 4,55 3,18 10 anos 7,99 4,30 30 anos 14,36 5,20 325 Duration do global 2027 = 8,03 anos. Interpola-se os treasurys de 10y e 30y; resultado = 4,31% ao ano. Spread = 6,54% - 4,31% = 223 bps. 4.2.1.3 Cálculo do SOT pela curva zero A forma mais precisa, porém a mais complexa, de calcular o spread de um título advém do cálculo de cada um dos fluxos de pagamentos desse papel em comparação com a curva zero benchmark. Nesse caso, o spread corresponde ao deslocamento paralelo da curva benchmark tal que o valor pre- sente do título (trazido por essa curva deslocada) corresponda a seu valor de mercado. Dessa forma, cada pagamento é trazido a valor presente pelo valor da curva zero benchmark para o vencimento correspondente acrescido do spread (que é único para todos os pontos da curva). 5 Conclusões O objetivo deste capítulo foi esclarecer acerca dos principais instrumentos utilizados pelos gestores da Dívida Pública Federal, detalhando toda a precificação, as características e as convenções de mercado que envolvem tais títulos. Os cálculos aqui apresentados são resultado de uma gestão ativa que buscou aperfeiçoar o desempenho da dívida pública, analisando inclusive o impacto que pequenas mudanças de cálculo poderiam causar na demanda e na liquidez dos papéis do Tesouro. As atuações do Tesouro em conjunto com diversos participantes de mercado geraram maior transparência e, consequentemente, segurança ao investidor. Os esforços envidados até o presente momento não se encerram aqui. O processo de desenvolvimento é contínuo, e melhorias são sempre necessárias, estando os objetivos e as diretrizes do Tesouro voltados para essa direção. 326 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo 1. Padrões de contagem de dias 1) Padrão 30/360 Considera o ano com 12 meses de 30 dias cada. É o caso dos Global Bonds, BRLs e A-Bonds. d = (A2 – A1) x 360 + (M2 – M1) x 30 + (D2 – D1) onde d = número de dias entre a data 1 e a data 2; D1 , M1 e A1 = dia, mês e ano relativos à data 1; D2, M2 e A2 = dia, mês e ano relativos à data 2. Nos casos em que pelo menos uma das duas datas se referir ao dia 31 ou ao último dia de fevereiro, serão efetuados os seguintes ajustes: l se D1 for 31 ou o último dia de fevereiro, D1 assumirá o valor de 30; l se D2 for 31 e D1 for 31, 30 ou o último dia de fevereiro, D2 assumirá o valor de 30; l se D2 for 31 e D1 não for 31, 30 ou o último dia de fevereiro, D2 assumirá o valor de 1, M2 o relativo ao do mês subsequente e, quando for o caso, A2 o do ano subsequente; l se D2 for o último dia de fevereiro, D2 assumirá o valor de 30 se, e somente se, D1 também for o último dia de fevereiro. Exemplo: número de dias entre 04/07/2007 e 24/12/2007 d = (2007-2007)* 360 + (12-7)* 30 + (24-04) d = 170 30/360 = 0,472 No Excel, é possível obter esses resultados utilizando a ferramenta: l dias 360 – para o formato em dias; l dias 360/360 – para o formato em anos. 2) Padrão dias corridos/dias corridos (actual/actual) Considera os dias corridos e a contagem de ano também é por dias corridos. É o caso dos Euro Bonds. Exemplo: número de dias entre 04/07/2007 e 24/12/2007; 04/07/2007 e 24/12/2007 = 173 dias; 24/12/2007 e 24/12/2006 = 365 dias; dc/dc = 0,474. 327 3) Padrão dias corridos/365 (actual/365) Considera os dias corridos e anos de 365 dias. É o caso dos Samurai28 Bonds. Exemplo: número de dias entre 04/07/2007 e 24/12/2007; 04/07/2007 e 24/12/2007 = 173 dias; dc/365 = 0,474. 4) Padrão dias corridos/360 (actual/360) Considera os dias corridos e anos de 360 dias. É o caso dos títulos a taxas flutuantes.29 Exemplo: número de dias entre 04/07/2007 e 24/12/2007; 04/07/2007 e 24/12/2007 = 173 dias; dc/360 = 0,481. 5) Padrão dias úteis/252 (du/252) Considera os dias úteis, excluindo finais de semana e feriados (do calendário brasileiro) e ano de 252 dias úteis. Exemplo: número de dias entre 04/07/2007 e 24/12/2007; 04/07/2007 e 24/12/2007 = 119 dias úteis; du/252 = 0,472. No Excel é possível obter o número de dias úteis com a função “diatrabalhototal”, onde a data inicial é 04/07/2007 e a data final é 24/12/2007, menos um dia. É necessário que se tenha uma lista de feriados contemplada para o período. Anexo 2. Cálculo do prêmio dos títulos públicos30 1) Prêmio das LTNs Prêmio = onde y = a taxa % ao ano da LTN de vencimento n; i = a taxa % ao ano do DI Futuro para o mesmo vencimento da LTN. 28 Para o cálculo dos samurais não se consideram os anos bissextos. 29 Atualmente, no estoque da dívida pública há apenas um único título a taxas flutuantes, o Global 2009. 30 Os dados aqui apresentados são hipotéticos, não refletindo as taxas de mercado do dia. 328 Dívida Pública: a experiência brasileira Exemplo: Qual o prêmio para a LTN com vencimento em 01/01/2009 precificada a 10,80% a.a.? LTN (01/01/2009) = 10,80 % ao ano; DI (01/01/2009) = 10,75 % ao ano. Prêmio = Prêmio = 100,44% A negociação da LTN no mercado é dada em pontos sobre o DI, no caso 5 pontos (equivalentes a 10,80% – 10,75%). 2) Prêmio das NTN-Fs Prêmio = onde tx_da_operação = TIR da NTN-F, calculada com base na curva de LTN; tx_de_mercado = TIR da NTN-F, calculada com base na curva prefixada do mercado (curva de DI Futuro). onde C = pagamento de juros (semestral); VN = R$ 1.000,00; i = taxa efetiva anual. Para o cálculo do preço unitário da operação, a taxa de desconto utilizada é a curva de LTN. O preço de mercado é obtido quando o desconto do fluxo é feito pela curva prefixada mais líquida do mercado, no caso a curva de DI. Exemplo: Qual o prêmio para a NTN-F com vencimento em 01/01/2008 e juros de 10% ao ano, nego- ciada em 03/07/2007, para liquidação em 04/07/2007, com base na tabela a seguir? Com base na tabela anterior, chegamos aos seguintes PUs: 329 Curva da LTN Curva do DI DU Vencimento em 03/07/2007 (a.a.) em 03/07/2007 (a.a.) (em relação a 04/07/2007) 1/01/08 11,23% 11,20% 124 1/07/08 10,94% 10,89% 247 1/01/09 10,80% 10,76% 378 1/07/09 10,84% 10,78% 500 1/01/10 10,88% 10,78% 628 pu_de_mercado = 984,774676; pu_da_operação = 982,858400. De posse dos PUs da NTN-F, é possível calcular a Taxa Interna de Retorno (TIR) de mercado e da operação: tx_de_mercado          = 10,786% ao ano; tx_da_operação         = 10,881% ao ano. Prêmio = Prêmio =100,84% A negociação da NTN-F será de 9,5 pontos, oriundos da diferença entre 10,881% e 10,786%. 3) Prêmio das LFTs Prêmio = onde y = a taxa % ao ano da LFT de vencimento n; i = a taxa % ao ano do DI Futuro interpolado para o mesmo vencimento da LFT. Exemplo: Qual o prêmio para a LFT com vencimento em 07/06/2010, a -0,0006% ao ano? LFT (07/06/2010) = - 0,0006% ao ano; DI (07/06/2010) = 10,80% ao ano. 330 Dívida Pública: a experiência brasileira Prêmio = Prêmio = 99,99% Anexo 3. Exemplos de precificação 1) LTN Vencimento : 01/01/2009; Taxa : 10,8036% (truncada na 4ª casa decimal); Data de negociação : 03/07/2007; dias úteis entre 01/01/2009 e 04/7/2007 : 378. 857,371797 (truncado na 6ª casa decimal) 2) NTN-F Vencimento : 01/01/2010; Data de negociação : 03/07/2007. Curva da LTN Taxa DU Vencimento em 03/07/2007 (ao ano) (em relação a 04/07/2007) LTN 1/01/2008 11,2300% 124 LTN 1/07/2008 10,9400% 247 LTN 1/01/2009 10,8000% 378 LTN 1/07/2009 10,8400% 500 LTN 1/01/2010 10,8800% 628 onde 331 De posse do PU da NTN-F, é possível calcular a Taxa Interna de Retorno (TIR) do título: TIR: 10,936% ao ano Observação: Independentemente de se descontar o fluxo de uma NTN-F por diferentes taxas ou pela TIR equivalente, o PU será sempre o mesmo. Nesse caso, a diferença será apenas o valor presente de cada um dos fluxos, mas o somatório será idêntico. 3) NTN-B31 Vencimento : 01/05/2015; Juros : 6% a.a.; Taxa : 6,5079% (truncada na 6ª decimal); Data de negociação : 03/07/2007; IPCA acumulado : 1,651293. 4) LFT Vencimento : 07/06/2010; Taxa : -0,0006% (truncada na 6ª decimal); Data de negociação : 03/07/2007; Dias úteis entre 07/06/2010 e 04/7/2007 : 763; Selic acumulado : 3,14455. 31 A regra de truncamento das NTN-Cs e NTN-Ds são idênticas. 332 Dívida Pública: a experiência brasileira 5) BRL (os globais seguem a mesma metodologia de cálculo) Vencimento : 05/01/2022; Juros : 12,50; Taxa : 9,0%; Data de negociação : 10/07/2007; Data de liquidação (D+3)32 : 13/07/2007; Data do últ. pag. de cupom : 05/07/2007. Onde Preço limpo = preço sujo – juro pro rata33 32 Todo o cálculo é feito com base na data de liquidação. 33 O cálculo para contagem de dias do juro pro rata deve respeitar o critério do título. No caso dos BRLs, o critério é 30/360. Assim sendo, na fórmula de juro pro rata acima descrita a diferença entre as datas deverá ser calculada com base em meses de trinta dias. 333 6) EURO34 Vencimento : 24/09/2012; Juros : 8,5; Taxa : 8%; Data de negociação : 04/07/2007; Data de liquidação (D+3) : 09/07/2007; 35 Data do últ. pag. de cupom : 24/09/2006. 7) A-Bond36 Taxa : 7%; Data de negociação : 04/07/2007; Data de liquidação (D+3)37 : 09/07/2007; Data do últ. Pag. de cupom : 15/01/2007. Conforme mencionado, o A-Bond possui amortizações constantes (18 parcelas) que terão início em 15/07/2009. Dessa forma, o cálculo da cotação38 apresenta-se na fórmula a seguir: 34 Atenção ao cálculo do juro pro rata. Os euros seguem a regra de dc/dc. 35 Todo o cálculo é feito com base na data de liquidação. 36 Atenção para o cálculo de juro pro rata. O A-Bond segue a regra 30/360. 37 Todo o cálculo é feito com base na data de liquidação. 38 Para facilitar o cálculo é válido utilizar os fluxos apresentados na seção 3. 334 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo 4. Resumo do Decreto nº 3.859, DE 4 DE JULHO DE 2001 Os CFTs poderão ser emitidos em cinco subséries distintas: subsérie 1, subsérie 2, subsérie 3, subsérie 4 e subsérie 5, com as seguintes características gerais: Prazo Taxa de Forma de Valor nominal Atualização do Pagamento Pagamento Título juros colocação valor nominal de juros do principal LTN Não específico - Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 - - No vencimento LFT Não específico - Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Selic - No vencimento Data-base: 01/07/00 LFT-A Até 15 anos - Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Selic + 0,0245% a.m. - Até 180 parcelas Data-base: 01/07/00 mensais LFT-B Até 15 anos - Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Selic - No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-A1 Até 16 anos 6% a.a. Direta (troca por BIB) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de março Mesmas condições e setembro do BIB NTN-A3 Até 27 anos 6% a.a. Direta (troca por Par Bond) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições e outubro do Par Bond NTN-A4 Até 27 anos Libor + Direta (troca por Discount Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições 0,8125% a.a. Bond) e outubro do Discount Bond NTN-A5 Até 12 anos Libor + Direta (troca por Flirb) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições 0,8125% a.a. e outubro do Flirb NTN-A6 Até 17 anos 8% a.a. Direta (troca por C-Bond) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições e outubro do C-Bond NTN-A7 Até 15 anos Libor + Direta (troca por DCB) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições 0,875% a.a. e outubro do DCB NTN-A8 Até 12 anos Libor + Direta (troca por NMB) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições 0,875% a.a. e outubro do NMB NTN-A9 Até 9 anos Libor + Direta (troca por Ei Bond) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de abril Mesmas condições 0,8125% a.a. e outubro do Ei Bond NTN-A10 Até 9 anos Libor + Direta (troca por MYDFA) Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Todo dia 15 de março Mesmas condições 0,8125% a.a. e setembro do MYDFA 335 336 Prazo Taxa de Forma de Valor nominal Atualização do Pagamento Pagamento Título juros colocação valor nominal de juros do principal NTN-B Não específico Não específico Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 IPCA Semestralmente No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-C Não específico Não específico Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 IGPM Semestralmente No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-D Não específico Não específico Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Semestralmente No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-F Não específico Não específico Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 - Semestralmente No vencimento NTN-H Não específico - Leilões ou emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 TR - No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-I Não específico Não específico Emissão direta (Proex) Múltiplo de R$ 1,00 Dólar americano No vencimento No vencimento Data-base: 01/07/00 NTN-M 15 anos Libo + 8,75%aa Direta (bônus Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Semestralmente 17 parcelas semestrais de dinheiro novo) Data-base: 01/07/00 NTN-P Mínimo de 6% aa Emissão direta (PND) Múltiplo de R$ 1,00 TR No vencimento No vencimento 15 anos Data-base: 01/07/00 NTN-R2 10 anos 12% aa Direta (previdência fechada com Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Mensalmente 10 parcelas anuais o governo como patrocinador) Data-base: 01/07/00 CTN 20 anos - Leilão Múltiplo de R$ 1.000,00 IGPM - No vencimento Data-base: 01/07/00 CFT-A Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 IGP-DI Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CFT-B Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1,00 TR Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CFT-C Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Selic Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CFT-D Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 Dólar americano Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo Data-base: 01/07/00 CFT-E Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1,00 IGP-M Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CFT-G Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 IPCA Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CFT-H Não específico Não específico Emissão direta Múltiplo de R$ 1.000,00 TJLP Ver tabela abaixo Ver tabela abaixo CDP Não específico Não específico Leilão Múltiplo de R$ 1.000,00 TR No vencimento No vencimento Dívida Pública: a experiência brasileira Os CFTs poderão ser emitidos em cinco subséries distintas: subsérie 1, subsérie 2, subsérie 3, subsérie 4 e subsérie 5, com as seguintes características gerais: CFT Subsérie 1 CFT Subsérie 2 CFT Subsérie 3 CFT Subsérie 4 CFT Subsérie 5 Pagamento de juros No vencimento Anual Semestral Mensal Periodicamente - nas datas de aniversário Pagamento de principal No vencimento No vencimento No vencimento No vencimento Tabela Price 337 338 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 3 Organização do mercado financeiro no Brasil Helena Mulim Venceslau Guilherme Binato Villela Pedras 1 Introdução Este capítulo irá abordar a participação das diversas instituições privadas e públicas integrantes do sistema financeiro brasileiro no mercado de títulos públicos. O eficiente gerenciamento da dívida pública bra- sileira está condicionado ao bom funcionamento do sistema financeiro nacional. Os normativos que regulam as instituições participantes do sistema definem os possíveis caminhos dos recursos financeiros e a maneira como eles devem ser aplicados. Os órgãos normativos relacionados às instituições participantes do sistema são, entre outros, o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e o Conselho de Gestão da Previdência Complementar (CGPC). Eles estabelecem as diretrizes gerais para a atuação dos órgãos regula- dores. Os órgãos normativos têm a função de normatizar as atividades dos entes a eles subordinados, sendo as normas geralmente elaboradas no âmbito dos órgãos reguladores e sujeitas à aprovação dos órgãos nor- mativos. Por exemplo, regulamentos pertinentes ao funcionamento das instituições financeiras são propostos pelo Banco Central do Brasil (BC) ou pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no âmbito do CMN, para serem aprovados e então implementados. O CMN atua sobre as instituições financeiras e outras que estejam sob a regulação e a fiscalização do Banco Central e da CVM. O CNSP atua sobre as entidades abertas de previdência privada, companhias segu- radoras e resseguradoras, e o CGPC dá as diretrizes para a regulação e a fiscalização das entidades fechadas de previdência complementar. Figura 1. Estrutura normativa, regulatória e de fiscalização do sistema financeiro nacional Órgãos normativos Reguladores e/ou fiscalizadores Participantes BC Bancos múltiplos e comerciais Outras IFs e bancos câmbio Outros CMN intermediários BM&FBovespa financeiros CVM CNSP SUSEP IRB Seguradoras Capitalização EAPC CGPC SPC EFPC (Fundos de pensão) Receita Federal Fonte: Banco Central Elaboração: autores 339 IF: instituições financeiras BM&FBovespa: Bolsa de Futuros e Valores IRB: Instituto de Resseguros do Brasil EAPC: Entidades abertas de previdência complementar EFPC: Entidades fechadas de previdência complementar Os títulos públicos federais ofertados em leilões são vendidos primariamente por meio de sistema administrado pelo Banco Central. O mercado secundário acontece, para a maioria dos títulos em mercado, em mercado de balcão, e todas as instituições participantes do mercado financeiro estão sujeitas às regras estabelecidas pelas instituições normativas. Os participantes do mercado primário e do mercado secundário são parceiros importantes do Tesouro Nacional para a boa distribuição dos títulos e a eficiente formação de preços dos ativos. Para que a administração da dívida enfrente um ambiente propício para a obtenção de seus objetivos, são importantes o contato e o relacionamento periódico com diversos segmentos do mercado financeiro, tais como associações de classe, câmaras de custódia e bolsas de valores. A intenção deste capítulo é discorrer sobre os principais participantes do mercado financeiro domés- tico e sua importância no desenvolvimento do mercado de títulos públicos. Primeiramente, trataremos dos órgãos reguladores dos participantes do sistema financeiro. Em seguida, apresentaremos os participantes do mercado de títulos públicos que desempenham a função de intermediários e também os investidores, que são os detentores ou clientes finais dos títulos. Na quarta seção trataremos da relevância e da atuação das entidades de classe. No âmbito do funcionamento do mercado, abordaremos o papel das centrais de custódia e das câmaras de liquidação, assim como dos sistemas e do ambiente de negociação de títulos, e citaremos a relevância de ativos negociados nas bolsas para a formação de preços dos títulos públicos. Por fim, em uma seção especial sobre a dívida externa, abordaremos algumas características do mercado internacional, bem como os principais agentes envolvidos no processo de negociação dos títulos soberanos. 2 Órgãos reguladores A função dos órgãos reguladores é regulamentar normas expedidas pelos órgãos normativos, assim como propor a adoção de regras para o melhor funcionamento de todas as entidades participantes do mercado financeiro. Em razão de o Tesouro Nacional vender os títulos da dívida pública doméstica no mercado em que os participantes são regulados por diferentes órgãos, é importante que haja boa comunicação entre estes e o Tesouro Nacional, no sentido de se estabelecerem normas que busquem o desenvolvimento e a segurança do mercado e, em paralelo, que estejam de acordo com as necessidades de financiamento da dívida pública doméstica. As entidades reguladoras dos entes que compõem o sistema financeiro nacional são o Banco Central (BC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para os intermediários financeiros; a Secretaria de Previdência Complementar (SPC) para as entidades fechadas de previdência privada ou fundos de pensão; a Superintendên- cia de Seguros Privados (Susep) para os órgãos responsáveis por seguros, as entidades de previdência aberta e as sociedades de capitalização; a Secretaria de Políticas de Previdência Social (SPS) para ações relacionadas ao Regime Geral de Previdência Social e ao Regime Próprio de Previdência destinado aos servidores civis da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios; e, por fim, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), responsável pelas normas dos resseguros. A Receita Federal, apesar de não ser um órgão regulador 340 Dívida Pública: a experiência brasileira do sistema financeiro, expede normas tributárias que influenciam as decisões dos agentes econômicos no mercado financeiro. Tais órgãos estabelecem normas relativas a diversas ações dos entes financeiros. Em particular, ao definirem o arcabouço de investimentos possível para os diferentes tipos de ativos disponíveis no mercado financeiro brasileiro, são capazes de influenciar quais serão os ativos mais demandados por cada segmento gestor de recursos de terceiros. O Banco Central, ao regular os bancos e estabelecer normas para o sistema financeiro,1 influencia dire- tamente o tipo e a quantidade de cada ativo financeiro nos quais as instituições podem investir seus recursos. Os fundos de investimento, nos quais está depositada a maior parte dos recursos de poupança doméstica, são regulados pela CVM, que define as diferentes modalidades de fundos e os limites para os diversos ativos em que cada tipo de fundo pode aplicar seus recursos, dentre outras regras. A SPC, a SPS e a Susep têm a função de definir limites de investimento dos fundos de pensão em geral, dos fundos de pensão dos servidores dos estados e dos municípios e das instituições seguradoras e de previdência privada aberta, respectivamente. O mercado financeiro doméstico oferece ativos líquidos tanto no mercado de renda variável quanto no de renda fixa. Na modalidade renda fixa, existem títulos privados e públicos. Como os títulos públicos federais são definidos, pelo Banco Central, como ativos livres de risco de crédito, as restrições para aplicação neles são menores do que para os ativos privados. O BC edita normas a respeito dos limites de risco aos quais as instituições podem ficar expostas.2 Nesse contexto, estão inseridos os limites relativos ao risco de mercado e ao risco de volatilidade das taxas de juros (VaR), que causam impacto direto sobre a posição que os bancos e outros participantes podem apresentar quanto à aplicação em ativos prefixados. Quanto a esse ponto, os gestores da Dívida Pública Federal necessitam receber especial atenção, pois, embora tais limites devam ser compatíveis com as regras de risco, não podem ser restritivos a ponto de impedir a venda, pelo Tesouro Nacional, de títulos em linha com suas diretrizes de médio e longo prazos. A Receita Federal edita normas tributárias que afetam as aplicações no mercado financeiro. Algumas ações conjuntas entre Tesouro Nacional e Receita Federal promoveram mudanças em regras tributárias que provocaram nova cultura no mercado de títulos públicos. O estabelecimento da alíquota decrescente do im- posto de renda sobre o ganho com títulos de renda fixa, inversamente ao prazo da aplicação,3 por exemplo, gerou o benefício para o Tesouro do alongamento do prazo dos títulos emitidos. Outra importante alteração na legislação tributária para títulos públicos foi o estabelecimento da isenção, para os investidores não re- sidentes, do pagamento de imposto de renda sobre os ganhos em títulos públicos federais. Tais investidores apresentam perfil de aplicação de prazo mais longo e sofriam de dupla taxação em seus investimentos (no Brasil e no seu país de origem). Com a adoção da isenção, os títulos brasileiros ficaram mais atrativos, o que gerou alongamento da dívida, juntamente com redução do custo. 1 Os atos de regulamentação estão associados a vários fatores, como adequação de normas de controle de riscos das entidades, no âmbito do Acordo da Basiléia, e determinação de limites de VaR relativos ao comportamento das taxas de juros domésticos. 2 Por exemplo, a Resolução nº 3.464, de 26 de junho de 2007, que dispõe sobre a implementação de estrutura de gerenciamento do risco de mercado. 3 Para investimentos com prazo de até 180 dias, aplica-se a alíquota de 22,5%; de 181 a 360 dias, 20%; entre 361 e 720 de aplicação, a alíquota é de 17,5%; e, acima desse prazo, aplica-se 15%. 341 A tabela a seguir apresenta os principais normativos existentes que interferem diretamente no mercado de títulos públicos e na forma como os ativos são aplicados: Tabela 1. Principais normativos do sistema financeiro nacional relacionados aos títulos públicos Tipo Normativo Assunto Impactos Demanda por CVM IN nº 409, de 18 de agosto de 2004, com Dispõe sobre a constituição, a ad- Define o percentual mínimo de aplicação de títulos alterações introduzidas pelas instruções ministração, o funcionamento e recursos nos ativos para cada classe de fundo, CVM nº 411/04, 413/04, 450/07. 457/07, a divulgação de informações dos não havendo, para aplicações em títulos públicos 465/08 fundos de investimento. federais, limite de concentração. CMN Resolução n º 3.456, de 1 º de junho Dispõe sobre as diretrizes de aplica- Define os percentuais máximos de aplicação de de 2007. ção dos recursos garantidores dos aplicação de recursos garantidores dos planos de planos de benefícios administrados benefícios das entidades fechadas de previdência pelas entidades fechadas de previ- complementar, as quais podem investir até 100% dência complementar. em títulos emitidos pelo Tesouro Nacional. Melhoria do Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de Altera a tributação no mercado Estabelece a alíquota de-crescente de imposto perfil da dívida 2004. financeiro e de capitais [...]; e dá de renda para aplicações de prazos mais lon- (alogamento outras providências. gos. Os prazos de aplicação e suas respectivas do prazo alíquotas são: médio) u até 180 dias: 27,5% u entre 181 e 360 dias: 20% u entre 361 e 720 dias: 17,5% u acima de 720 dias: 15% SRF IN nº 487, de 30 de dezembro de 2004, e Dispõe sobre o imposto de renda Tal norma regulamenta a lei acima e define fundo alterações dadas pelas IN nº 489/2005 e incidente sobre os rendimentos e os de investimento de longo prazo, para fins tribu- IN nº 822/2008. ganhos auferidos em operações de tários, como aquele com prazo médio da carteira renda fixa e de venda variável e em superior a 365 dias, sendo o de curto prazo aquele fundos de investimentos. com prazo inferior. Lei nº 11.312, de 27 de junho de 2006. Reduz a zero as alíquotas do imposto Lei que isenta os investidores não residentes de renda e da Contribuição Provisória do recolhimento de imposto de renda relativo a sobre Movimentação ou Transmissão ganhos auferidos com aplicação de recursos em de Valores e de Créditos e Direitos títulos públicos federais. de Natureza Financeira (CPMF) nos casos que especifica; altera a Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996; e dá outras providências. Mercado Lei nº 10.892, de 13 de julho de 2004. Altera os arts. 8º e 16 da Lei nº Esta lei criou a Conta Investimento, que permite a secundário 9.311, de 24 de outubro de 1996, migração de investimentos entre diferentes aplica- que institui a Contribuição Provisória ções financeiras sem a incidência da CPMF.* sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF, e dá outras providências. CGPC Resolução nº 21, de dezembro de 2006. Dispõe sobre operações de compra Determina que as instituições de previdência ou venda de títulos e valores mo- fechada apresentam justificativa para os preços de biliários do segmento de renda fixa compra e venda dos títulos públicos, desde que não dos planos de benefícios operados negociados em sistema eletrônico de negociação. pelas entidades fechadas de previ- dência complementar, e dá outras providências. * A CPMF, contribuição sobre movimentações financeiras em conta corrente, era arrecadada com base em leis e emendas constitucionais que garantiam sua prorrogação periodicamente desde sua criação em 1996, com vigência a partir de 1997. A última tentativa de prorrogação da cobrança de tal contribuição provisória foi no dia 13/12/2007, quando o Senado Federal negou a solicitação do Executivo, extinguindo, assim, esse tributo a partir de 2008. Fonte: normativos citados Elaboração: autores. 342 Dívida Pública: a experiência brasileira 3 Intermediários e investidores Os títulos públicos federais são vendidos pelo Tesouro Nacional no mercado primário para as instituições detentoras de reserva bancária, bem como para aquelas autorizadas pelo Selic4 a participar dos leilões por meio de subcontas de reserva bancária das instituições financeiras. Tais bancos atuam na maioria das vezes como intermediários para os clientes finais. No mercado secundário, as principais instituições que distribuem os títulos públicos são responsáveis por disponibilizar os preços e as cotações e intermediar as operações. 3.1 Intermediários Os principais intermediários de títulos públicos entre o Tesouro Nacional e os clientes finais são os ban- cos e as corretoras/distribuidoras de valores mobiliários,5 que participam tanto do mercado primário quanto do mercado secundário. As instituições dealers6 são formadas na classe dos intermediários e classificadas em dois grupos distintos, em que um leva em consideração a participação da instituição nas aquisições primárias e o outro as classifica quanto às atuações no mercado secundário. Os critérios de definição e escolha de instituições dealers estão regulados por meio dos Atos Nor- mativos do Tesouro Nacional e do Banco Central, nos quais estão estabelecidos seus deveres e direitos. Os dealers primários são direcionados para as emissões primárias de títulos públicos federais,7 enquanto os dealers especialistas são os responsáveis por girar determinados títulos no mercado secundário, promovendo a liquidez e divulgando preços para tais ativos. O Tesouro Nacional consulta regularmente essas instituições para a definição dos lotes de títulos a serem ofertados em leilão. A partir dessa amostra, é possível capturar uma proxy da demanda por títulos públicos a cada semana. Os dois grupos de dealers repassam, no mínimo, duas vezes ao dia informações sobre as taxas dos títulos no mercado secundário, que são bastante importantes para o monitoramento do mercado, assim como para a definição do preço dos títulos oferecidos no Programa Tesouro Direto.8 Atualmente, existem 156 bancos, dos quais 136 são bancos múltiplos e 20 estão distribuídos entre bancos comerciais nacionais e filiais de bancos estrangeiros; 107 corretoras de títulos e valores mobiliários e 133 distribuidoras de valores mobiliários.9 Os intermediários desempenham papel fundamental para a boa distribuição e apreçamento dos ativos no mercado financeiro. Eles são capazes de identificar as necessidades dos investidores, tais como: tipo de instrumento, rentabilidade, prazo desejado, e supri-las por meio do mercado secundário. Os intermediários também repassam ao Tesouro percepção acerca da aceitabilidade de determinado título, assim como a existência de demanda por algum tipo de título ou prazo que ainda não esteja sendo atendido pelo Tesouro Nacional. Tais informações são bastante relevantes para o planejamento de emissões. Nesse sentido, tanto os bancos quanto as corretoras/distribuidoras de valores são vistos também como parceiros do Tesouro Nacional para promover o bom funcionamento do mercado de títulos públicos federais. 4 Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, administrado pelo Banco Central. 5 Os bancos e as corretoras/distribuidoras também adquirem títulos para suprir suas necessidades de carteira própria e outros fins. Porém, nesta seção trataremos apenas de seus papéis como intermediários. 6 Tanto bancos quanto corretoras/distribuidoras podem ser dealers. Para maiores informações, ver o Ato Normativo que regula- menta o tema em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/leg_divida.asp. 7 Para mais informações sobre leilões de títulos e seus participantes, ver Capítulo 4 da Parte 3. 8 Este assunto é tema do Capítulo 7 da Parte 3. 9 Fonte: Relatório de estabilidade financeira, novembro 2008, Banco Central do Brasil. 343 3.2 Investidores10 Os principais clientes finais de títulos públicos no mercado doméstico são os fundos de investimento, os bancos,11 os fundos de pensão, as companhias seguradoras e os investidores não residentes. Os fundos de investimento (FI) são regulados pela CVM e apresentam a seguinte classificação: curto prazo, referenciado, renda fixa, ações, cambial, dívida externa e multimercado. Os fundos podem ter a classificação “longo prazo” em sua denominação, desde que tenham interesse em atender às condições necessárias para obter os benefícios da tributação decrescente de imposto de renda. As aplicações em títulos públicos representam cerca de 50% do montante total de recursos em FI, distribuídos entre os diversos tipos de fundos. Esta é a maior categoria de investidor em títulos do governo federal e, em geral, apresenta negociação no mercado secundário menor que a dos bancos. Os bancos têm uma característica bastante diferente dos FIs,12 na medida em que tendem a ser mais ágeis e sempre observam os movimentos do mercado em busca de possíveis arbitragens entre os diferentes ativos. Proporcionalmente à carteira de títulos que possuem, os de maior participação são os prefixados. Em razão de os bancos também participarem do mercado como intermediários no relacionamento com o Tesouro, apresentam-se como parceiros tanto para o Tesouro entender as demandas quanto no papel de auxílio na divulgação das estratégias de emissão. Os fundos de pensão, ou EFPC, gerenciam os recursos da previdência complementar de funcionários de empresas (públicas e privadas) e funcionários públicos estaduais e municipais. A remuneração mínima dos recursos é determinada por normas estabelecidas no regulamento das entidades e pelas regras determinadas pelas SPCs e SPSs. Tais recursos caracterizam-se por serem de prazo longo e estão relacionados ao tempo que cada participante contribui e ao momento em que se aposenta, quando passa a ser recebedor da aplicação. Em razão das características desse tipo de passivo, essas entidades são demandantes dos títulos públicos de longo prazo, especialmente aqueles indexados a índices de inflação. Existem no Brasil dois grupos distintos de fundos de pensão em termos de prazo médio de aplicação, aqueles em que uma parte dos contribuintes está na fase de realizar saques do fundo e aqueles em fase de formação. Os do segundo grupo são os principais investidores em títulos indexados ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), de longo prazo, principalmente a NTN-B13 com vencimento em 2045. As companhias seguradoras também aplicam em títulos públicos. Elas compõem o grupo de pessoas jurídicas não financeiras que podem participar dos leilões do Tesouro Nacional por meio de conta de subcustódia no Selic, e assim, têm a possibilidade de gerenciar suas carteiras de aplicação sem intermediários. Os investidores não residentes atualmente são os principais demandantes de títulos prefixados de longo prazo. Estes participam principalmente dos leilões de NTN-F14 e de alguns vencimentos de NTN-B. A presença desses investidores no Brasil auxilia no alongamento do prazo da dívida, por apresentarem perfil de aplicação de prazo mais longo e, assim, auxiliarem na mudança da cultura de aplicação de curto prazo. 10 Este tema é apresentado no Capítulo 5 da Parte 3. 11 Os bancos apresentam-se como clientes finais quando adquirem títulos para carteira própria. 12 À exceção dos Fundos Multimercado, que têm postura de investimento bastante agressiva. 13 Nota do Tesouro Nacional, série B, título indexado ao IPCA. 14 Nota do Tesouro Nacional, série F, título prefixado de prazo mais longo (3, 5 e 10 anos), com cupom semestral de juros. 344 Dívida Pública: a experiência brasileira 4 Entidades de classe As entidades de classe reúnem os principais participantes do mercado de títulos públicos e facilitam o debate entre Tesouro Nacional, intermediários e clientes. Nesse sentido, mostram-se como importantes parceiros para a divulgação de temas de dívida pública e auxílio na mudança de cultura dos investidores, bem como capturam as dificuldades que tais participantes encontram no mercado em questões relacionadas à negociação de títulos públicos. No mercado doméstico brasileiro, as principais associações são: Associação Brasileira de Instituições de Previdência e Assistência Estaduais e Municipais (Abipem); Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp); Associação Nacional dos Bancos de Inves- timento (Anbid); Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima); Federação Brasileira de Bancos (Febraban); Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi); e Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização (Fenaseg). A Abipem foi criada em 23 de outubro de 1980, como Abipe, e era integrada apenas pelos institutos estaduais de previdência. Posteriormente, com o ingresso de institutos municipais, transformou-se em Abipem, e tem por objetivo congregar as instituições que dela participam, promovendo aprimoramento de seu conhecimento técnico-administrativo, atividades de intercâmbio, realização de congressos nacionais e encontros regionais, discutindo e difundindo os princípios da doutrina previdenciária e assistencial. A Abrapp foi fundada em 1978 para representar os fundos de pensão, ou EFPC, perante a sociedade. Tem como objetivos [...] colaborar com o poder público em tudo o que disser respeito à previdência complementar, especialmente no tocante à sua regulamentação e ao estabelecimento e execução de políticas e diretrizes básicas pertinen- tes às suas atividades, [...] organizar, promover ou realizar estudos, análises, pesquisas, cursos, congressos, simpósios ou outros tipos de conclave sobre temas, problemas e aspectos da previdência complementar,15 dentre outros. Nesse sentido, ela auxilia a comunicação com órgãos do governo, como o Tesouro Nacional e a SPC, e também divulga informações, dados e trabalhos sobre o setor. Em outubro de 2008, o sistema fechado de previdência era composto por 369 fundos de pensão. O Tesouro Nacional, convidado pela Abrapp, participa de reuniões e seminários, nos quais é possível divulgar a política de emissão de títulos públicos federais e esclarecer os investidores sobre as características dos títulos ofertados em leilão com o objetivo de auxiliar na mudança da cultura do CDI por grandes inves- tidores de recursos no mercado doméstico brasileiro. Tais reuniões são também uma boa oportunidade para debater sobre as particularidades do mercado em questão e sobre o papel dos fundos de pensão no âmbito da administração da Dívida Pública Federal. A Anbid foi criada em 1967 com o objetivo de representar os bancos de investimento. Atualmente, possui mais de setenta associados dentre bancos de investimento e bancos múltiplos que atuam na gestão e na administração de fundos de investimento, empresas de asset management e de consultoria financeira. Em fevereiro de 2009, foram contabilizados 8.190 fundos de investimento, com patrimônio líquido total de R$ 1.135,9 bilhões, todos pertencentes a instituições associadas à Anbid. Em 1999, a Anbid lançou o primeiro Código de Auto-Regulação de Ofertas Públicas de Distribuição e Aquisição de Valores Mobiliários, o que inaugurou sua função de entidade autorreguladora. Atualmente, tal entidade apresenta mais quatro códigos: Autorregulação de Fundos de Investimento, Autorregulação para os 15 Trecho extraído do Estatuto Social da Abrapp, disponível no site: http://www.abrapp.org.br. 345 Serviços Qualificados ao Mercado de Capitais, Autorregulação para o Programa de Certificação Continuada, e Autorregulação para a Atividade de Private Banking no Mercado Doméstico. A associação tem como objetivos permanentes fortificar o mercado de capitais, apoiar o fortalecimento da CVM como órgão regulador do mercado de capitais, incentivar a adoção de melhores práticas entre os associados e o respeito aos direitos dos investidores, contribuir para a ampliação do conhecimento dos in- vestidores e dos agentes relevantes do mercado sobre os produtos de investimento disponíveis no mercado de capitais, dentre outros.16 A parceria entre Tesouro Nacional e Anbid dá-se no sentido de divulgar as ações do Tesouro no âmbito da administração da dívida pública e também dos títulos a serem emitidos, com prazo e perfil de indexação mais condizentes com as estratégias de alongamento do prazo médio da dívida e redução do risco e consequente mudança na cultura de aplicação dos investidores. A Andima, criada em 1971, tem como missão “atuar para o fortalecimento do mercado financeiro, com ênfase na renda fixa, estabelecendo padrões éticos e operacionais para os participantes e assegurando a produção e a divulgação de informações técnicas que contribuam para seu crescimento”.17 É a mais abrangente de todas as instituições, nela se reunindo bancos, corretoras e distribuidoras de valores mobiliários, fundos de investimento e fundos de pensão. Além disso, também se mostra como presta- dora de serviços e oferece suporte técnico e operacional às instituições associadas, fomenta novos mercados e trabalha para o desenvolvimento do sistema financeiro nacional. Como entidade autorreguladora, possui o Código de Ética (CE) e o Código Operacional do Mercado (COM), ambos adotados pela Cetip, pelo Sisbex e pela Abrapp. A Andima desempenha papel importante no mercado de títulos públicos brasileiro ao divulgar diariamente preços para todos os títulos de emissão do Tesouro Nacional que estão em poder do mercado, por meio do Projeto de Consolidação, Disseminação e Monitoramento de Preços, que contribui para a melhoria da transparência do mercado. Isso torna a Andima uma instituição de referência para todo o mercado que precisa de preços para marcação a mercado de suas carteiras. A coleta de preços realizada pela instituição obedece a critérios estatísticos de expurgo dos preços de operações fora de mercado e apresenta critérios de classificação em relação aos provedores de preços que relacionam a qualidade da instituição relativamente à assiduidade dos dados e à dispersão em relação à amostra, dentre outros. A base para esse trabalho está em três pilares: coleta e divulgação de informações, construção de intervalo indicativo de preços e monitoramento efetivo dos preços praticados no segmento. Na Andima, funcionam vários comitês e comissões que têm como finalidade debater assuntos correlatos ao funcionamento do mercado financeiro, com ênfase para o mercado de renda fixa, tanto de títulos públicos quanto de títulos privados. São comitês da Andima, atualmente: Acompanhamento Macroeconômico, Consultivo do Selic, de Gestão de Recursos, de Mercado, de Novos Produtos, Operacional e de Ética, Operacional e de Ética Misto – Andima/Abrapp, de Política Monetária, de Precificação de Ativos, Tributário e de Normas e de Valores Mobiliários. O Tesouro participa de grupos de trabalho associados a esses Comitês que discutem sobre o desenvolvimento do mercado secundário e também sobre o desenvolvimento do mercado de empréstimo de títulos públicos. Institucionalmente associada ao Comitê de Precificação de Ativos está a Comissão de Benchmarks, da qual o Tesouro Nacional é participante. Tal comissão é um grupo de trabalho responsável pela divulgação, 16 Ver htpp://www.anbid.com.br. 17 Consultar htpp://www.andima.com.br. 346 Dívida Pública: a experiência brasileira pelo acompanhamento e pelos estudos que promovam o aprimoramento dos índices de renda fixa da Andima. Atualmente, os principais índices elaborados e divulgados diariamente são o Índice de Renda Fixa Mercado (IRFM) e o Índice de Mercado Andima (IMA).18 O IRFM é formado pelos títulos prefixados emitidos pelo Tesouro Nacional; já o IMA apresenta diferentes classificações, definidas a seguir. O IMA-B é composto pelos títulos indexados ao IPCA; o IMA-C, pelos títulos públicos federais indexados ao IGPM; e o IMA-S, pelos títulos com rentabilidade atrelada à taxa Selic. Existe também o IMA-Geral, que é a composição de todos os IMAs, inclusive o IRFM, já citado. Os IMAs indexados a índice de preços (IMA-B e IMA-C) apresentam, adicionalmente, duas classificações intermediárias por prazo: no grupo chamado de IMA 5 estão os títulos com prazo de vencimento até cinco anos e no grupo IMA 5+ estão os títulos com prazos mais longos. A criação de tais índices é mais um passo no caminho de dar referência de rentabilidade aos inves- tidores, diferente do usual CDI,19 um dos objetivos é o de que esses índices referenciados em títulos públicos levem os aplicadores a buscarem ativos diferentes para referenciar suas aplicações. A Febraban, como representante oficial dos bancos, auxilia na comunicação com esses agentes, assim como apresenta propostas, aos órgãos competentes, de desregulamentação do mercado e possíveis ações no sentido de modernizar regulamentos. Foi criada em 1967 e tem como objetivo “representar seus associados em todas as esferas – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e entidades representativas da sociedade – para o aperfeiçoamento do sistema normativo, a continuada melhoria da produção e a redução dos níveis de risco”.20 Possui 120 bancos associados, de um total de 156 em atuação no Brasil. O Código de Ética Bancária e os Estatutos do Sistema Nacional de Ética Bancária, elaborados pela Febraban, entraram em vigor em janeiro de 1986. No Código de Ética (CE) estão os princípios fundamentais que devem nortear a atividade do sistema bancário, enquanto o Sistema Nacional é o organismo que aplica os princípios do CE, defende os mercados em que os bancos atuam e promove as práticas de mercado. Na referida Federação funcionam 25 comissões técnicas, que têm o objetivo de desenvolver estudos e trabalhos sobre os temas relacionados à atividade bancária, como, por exemplo, Comissão de Economia, de Serviços Bancários, de Tecnologia e Automação Bancária, de Gestão de Riscos e de Assuntos de Bancos Internacionais. A Fenaprevi, criada em março de 2007, é a entidade sucessora da Associação Nacional de Previdência Privada (Anapp)21 e representa as Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPC). Presta serviços para as associadas, fomenta novos mercados, desenvolve conhecimento técnico e trabalha pelo desenvolvimento da previdência complementar no Brasil. Alguns dos objetivos da Fenaprevi são o de: [...] promover a permanente defesa dos interesses dos segmentos representados junto ao mercado, aos poderes públicos, às instituições da sociedade civil e demais entidades de classe; atuar na criação e aperfeiçoamento de leis, normas e regulamentos que aumentem a eficiência dos segmentos econômicos representados, mediante interação e cooperação com autoridades e instituições da sociedade civil [...].22 18 Para a elaboração de tais índices, a Andima possui um convênio com o Tesouro Nacional em que este é responsável por enviar à referida associação, diariamente, o estoque de cada título, sob a forma de quantidade de títulos. 19 Os Certificados de Depósito Interbancário (CDIs) são os títulos de emissão das instituições financeiras que lastreiam as operações do mercado interbancário. Sua negociação é restrita ao mercado interbancário, e sua função é, portanto, transferir recursos de uma instituição financeira para outra. Em outras palavras, para que o sistema seja mais fluido, quem tem dinheiro sobrando empresta para quem não tem. 20 Para mais informações, consulte htpp://www.febraban.org.br. 21 Instituição criada em 1975. 22 Para maiores informações, consultar htpp://www.fenaprevi.org.br. 347 O universo de empresas associadas à Fenaprevi possui carteira de R$ 139,34 bilhões, e o Código de Ética adotado ainda é o da antiga Anapp, até que a nova instituição defina e aprove o seu próprio. A entidade possui 11 comissões técnico-regulatórias que têm o objetivo de acompanhar e coordenar assuntos e atividades relacionados às questões jurídicas, atuariais, financeiras, contábeis, tecnológicas e de produtos do setor de previdência privada e vida. A Fenaseg foi fundada em 1951 e tem como objetivo promover o desenvolvimento do setor de seguros e capitalização. Atualmente existem 160 empresas associadas, das quais 143 são seguradoras que representam 99,2% da arrecadação do mercado de seguros.23 A entidade tem como uma de suas várias missões “colaborar com o governo no estudo e na elaboração de normas que possam contribuir para o desenvolvimento e aprimoramento da atividade que representa, e para a solução de problemas que se relacionem com o setor”.24 A Fenaseg tem em seu quadro seis comissões técnicas e três grupos de trabalho, dos quais um sobre ética e autorregulação. Todas essas instituições exercem a função de parceria com os órgãos públicos, tanto com os órgãos reguladores quanto com o Tesouro Nacional, que, por sua vez, entende que o desenvolvimento e a moderni- zação do mercado financeiro brasileiro permitirão a melhoria do perfil da Dívida Pública Federal doméstica. 5 Infraestrutura de liquidação das operações com títulos públicos federais Operações no mercado primário Figura 2. Ciclo de operação de venda de um título público no mercado primário Título Público Federal (TP) Selic Instituição detentora de reserva Leilão do Tesouro bancária (bancos) – Conta de Custódia. Reserva bancária (RB) Fonte: Selic, Banco Central Elaboração: autores. O mercado primário de títulos públicos federais acontece com a oferta de títulos pelo Tesouro Nacional por meio do sistema Selic. As instituições detentoras de reserva bancária que são contempladas no leilão têm seu saldo debitado em dinheiro no mesmo dia e recebem o registro de posse do título no dia seguinte à realização do leilão. 23 Que em dezembro de 2008 alcançou o total de R$ 67,8 bilhões. Para maiores informações, ver: http://www.susep.gov.br, Relatório de Acompanhamento de Mercado – Ago./2007. 24 Para maiores informações, consultar http://www.fenaseg.org.br. 348 Dívida Pública: a experiência brasileira Operações no mercado secundário de balcão Figura 3. Ciclo de operação de negociação de títulos públicos no mercado secundário Selic/STR TP e informações TP RB e informações R$ R$ Banco com reserva Banco com reserva TP bancária (custodiante) 1 bancária (custodiante) 2 TP TP R$ TP R$ R$ Intermediário TP R$ R$ TP Cliente 1 Cliente 2 Cliente 3 Fonte: Banco Central Elaboração: autores No mercado de balcão por telefone, com liquidação e registro via Selic/STR, o banco custodiante faz a transferência de reserva bancária (RB) e recebe o registro do título (TP) em sua conta. Porém, se a operação é efetuada entre dois clientes por um intermediário, ela deve ser informada aos custodiantes para que estes efetuem as transferências necessárias (de TP e RB) e informem ao Banco Central (Selic) a alteração da posição do detentor do título (informações). 5.1 Centrais de custódia e câmaras de liquidação No Brasil, existiam quatro centrais de custódia e liquidação responsáveis por operações com títulos públicos, a saber: Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic); Câmara de Custódia e Liquidação (Cetip); Câmara (Clearing) de Ativos da BM&FBovespa e a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC).25 A BM&FBovespa possui mais duas outras câmaras de liquidação responsáveis por liquidar operações de câmbio e de derivativos, respectivamente, Câmara (Clearing) de Câmbio e Câmara (Clearing) de Derivativos. O Selic, o primeiro sistema de registro eletrônico de títulos no Brasil, funciona como depositário cen- tral, sendo, consequentemente, central de custódia e liquidação da maior parte dos títulos públicos federais emitidos pelo Tesouro Nacional (96,3%,26 em dezembro de 2008, da dívida doméstica em mercado). Nesse sistema, existem módulos para a realização dos leilões primários do Tesouro e são registradas as negociações 25 A partir da integração entre a BM&FBovespa e a CBLC, em dezembro de 2008, estas duas centrais se fundiram em uma. 26 Fonte: Relatório mensal da Dívida Pública Federal. 349 do mercado secundário realizadas em balcão. Tais informações podem ser obtidas em detalhe no Manual do Usuário do Selic (MUS).27 O sistema Selic foi criado em 1979, por meio de uma parceria entre a Andima e o BC, para promover a liquidação financeira das operações com títulos públicos ao final de cada dia, pelo resultado líquido, dire- tamente na conta de reservas bancárias. A partir de 1996, todos os procedimentos, inclusive a realização de leilões,28 passaram a ser realizados eletronicamente. Desde abril de 2002, pela implementação do novo SPB, a forma de liquidação foi alterada e passou a ser realizada pelo valor bruto em tempo real (LBTR), onde existem várias janelas de liquidação ao longo do dia. Com essa nova modalidade de liquidação, o vendedor do título tem sua posição automaticamente bloqueada, e na ponta compradora a conta é debitada.29 Essa forma de liquidação surgiu com o advento do Sistema de Transferência de Reservas (STR), que está vinculado ao Selic. Tal sistema compreende os bancos comerciais e as casas de Clearing, que têm contas especiais de liquidação no Banco Central, assim como o Tesouro Nacional. Todas as transferências de recursos são liquidadas e finalizadas no intraday. Cabe destacar que as liquidações no Selic ou no STR, quando não honradas por uma das partes, têm registro cancelado, e a operação não é concluída. Participam do Selic como titular da conta de custódia, além do Tesouro e do BC, bancos comerciais, bancos múltiplos, bancos de investimento, caixas econômicas, distribuidoras e corretoras de títulos e valores mobiliários, entidades operadoras de serviços de compensação e liquidação, fundos de investimento e diversas outras instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional. São considerados liquidantes os participantes titulares de conta de reserva bancária; os não liquidantes são classificados como autônomos ou subordinados e liquidam suas operações por intermédio de participantes liquidantes.30 Os participantes não liquidantes no Selic podem ter conta individualizada e, dessa forma, é possível ao Bacen identificar alguns dos clientes finais de títulos públicos. No documento mensal divulgado pelo Tesouro Nacional, denominado Relatório mensal da Dívida Pública Federal, a Tabela 5.1 do relatório apresenta os principais detentores de títulos públicos federais da dívida doméstica. Os montantes mais expressivos estão nas contas de carteira própria dos bancos e dos clientes (que são os não liquidantes). Os clientes estão subdivididos em: pessoa física, pessoa jurídica não financeira (PJNF), pessoa jurídica financeira, fundos de investimento e outros fundos. É possível identificar na conta de PJNF os participantes do sistema de previdência (tanto fundos de pensão quanto os do sistema de previdência privada aberta), seguradoras, empresas de capitalização e investidores não residentes que têm títulos registrados em suas carteiras próprias. Porém, tais informações não estão disponíveis para o público. A Tabela 5.2 do citado relatório apresenta uma abertura da posição carteira própria em banco comercial nacional e estrangeiro (banco que opera no Brasil, mas tem sede no exterior), banco de investimento nacional, corretora/distribuidora nacional e estrangeira, dentre outros. 27 Disponível em: http://www3.bcb.gov.br/selic/documentos/MusSpb.pdf. 28 Os leilões do Tesouro Nacional são realizados pelo sistema Oferta Pública Formal Eletrônica (Ofpub), desenvolvido e administrado pelo Banco Central. 29 A operação é mantida por 60 minutos ou até 18h30, o que ocorrer primeiro. Se durante esse período não houver saldo suficiente para sua liquidação, a operação será rejeitada. 30 Os bancos comerciais, os bancos múltiplos com carteira comercial e as caixas econômicas possuem, obrigatoriamente, conta de reserva bancária. Os bancos de investimento podem optar em tê-la ou não. As corretoras, as distribuidoras de valores mobiliários e as entidades responsáveis por sistemas de compensação e de liquidação são os autônomos, e os fundos de investimento, as sociedades seguradoras, as sociedades de capitalização, as entidades abertas e fechadas de previdência e as resseguradoras locais são os subordinados. 350 Dívida Pública: a experiência brasileira A Cetip presta serviços de custódia, negociação eletrônica, registro de negócios e liquidação financeira, principalmente para os títulos de renda fixa. Foi criada em 1984, também por uma parceria entre a Andima e o BC e tem como participantes, além dos cotistas, cerca de 6 mil instituições, dentre as quais empresas de leasing, fundos de investimento e pessoas jurídicas não financeiras, tais como seguradoras e fundos de pensão. Podem ser cotistas da Cetip apenas instituições financeiras31 (as demais pessoas jurídicas podem ser participantes), e todos os que não detenham conta de reserva bancária devem liquidar suas operações por meio de uma instituição liquidante. Na Cetip, são registrados e liquidados os poucos títulos do Tesouro Nacional que não estão custodiados no Selic, que representam 3,7%32 da dívida doméstica em mercado. Os chamados títulos “cetipados” são: CDP/ INSS, CFT, CTN, LFTE-M, TDA, JSTN, contrato de crédito contra terceiros, dívidas securitizadas e dívida agrícola. Tais títulos tiveram e têm origem em operações especiais realizadas pelo Tesouro Nacional,33 a maioria deles pode ser negociada no mercado secundário e alguns são aceitos pelo Tesouro Nacional nos leilões de troca por títulos do Selic.34 Também são registrados na Cetip títulos emitidos pelos estados e pelos municípios, as LFT-Es e LFT-Ms, respectivamente. A grande maioria dos títulos privados e alguns derivativos negociados no mercado doméstico é regis- trada na Cetip,35 tais como os Certificados de Depósito Bancário (CDBs), as debêntures, as cotas de fundos, os derivativos (swaps e opções) e os contratos e produtos de financiamento ao agronegócio. A Cetip oferece quatro possíveis modalidades de liquidação, a depender do tipo de transação realizada: liquidação bruta em tempo real no STR; liquidação bruta em tempo real via transferência; multilateral netting na Cetip; e bilateral netting na Cetip. A instituição ainda oferece facilidades de negociação, como, por exemplo, o sistema eletrônico chamado CetipNet, que é um portal, via tela eletrônica, para negociar títulos públicos e privados e serviços de solicitação de cotação (request for quote); esse sistema também processa vários tipos de leilões para ativos de renda fixa. Importante para o desenvolvimento da negociação eletrônica de títulos públicos, a Câmara de Ativos da BM&F36 foi inaugurada em maio de 2004 com o objetivo de ser a liquidante das operações contratadas no âmbito do Sisbex37 e também das operações realizadas no mercado de balcão tradicional. Em qualquer das situações, a câmara atua como contraparte central e a compensação é multilateral. Ela liquida tanto operações definitivas (à vista ou a termo) quanto operações compromissadas. No âmbito da câmara, é possível realizar operação de venda a descoberto (short) com títulos que se enquadram no Serviço de Empréstimo de Títulos (SET) ou no programa de empréstimo de títulos do Selic. 31 Bancos comerciais, bancos múltiplos, caixas econômicas, bancos de investimento, bancos de desenvolvimento, sociedades cor- retoras de valores, sociedades distribuidoras de valores, sociedades corretoras de mercadorias e de contratos futuros, empresas de leasing, companhias de seguros, bolsas de valores, bolsas de mercadorias e futuros, investidores institucionais, pessoas jurídicas não financeiras, incluindo fundos de investimento e sociedades de previdência privada, investidores estrangeiros, além de outras instituições autorizadas a operar nos mercados financeiro e de capitais. 32 Fonte: Relatório mensal da Dívida Pública Federal – dezembro 2008. 33 Como, por exemplo, os títulos emitidos quando da desapropriação de terras rurais no âmbito do programa de reforma agrária (TDA). 34 Podem ser negociados os títulos que não apresentam a cláusula de não negociável em suas características. Os títulos aceitos em troca por títulos do Selic estão definidos nas portarias dos leilões. 35 Para maiores informações, acessar o site: http://www.cetip.com.br. 36 Em 2008, houve integração das bolsas BM&F e Bovespa, criando-se a BM&FBovespa, conforme será explicado na seção 6. 37 Sistema Eletrônico de Negociação e Registro, desenvolvido inicialmente na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ) e posterior- mente adquirido pela BM&F. Maiores detalhes sobre o Sisbex serão apresentados a seguir, neste capítulo. 351 Os títulos públicos negociados ou registrados no Sisbex são liquidados no modelo entrega contra paga- mento (delivery versus payment), e Câmara de Ativos da BM&FBovespa atua como contraparte central. Se um participante falha no pagamento, seja em dinheiro seja em ativo, a câmara utiliza a garantia do participante para honrar a liquidação. Nesses casos, a contraparte central (BM&FBovespa) pode: i) emprestar o dinheiro para o não pagador honrar a operação; ii) oferecer ativos equivalentes para o participante que honrou sua parte na compra e não recebeu o ativo original; ou iii) pagar o montante em dinheiro para o participante que honrou a operação na ponta de venda do ativo. Os membros da câmara liquidam operações por meio de membros de compensação (em geral, bancos), ou podem liquidar diretamente, quando apresentam registro para essa função. Nesse caso, estão inseridos os fundos de investimento, as entidades aberta e fechada de previdência, as seguradoras e as resseguradoras. Também são participantes da câmara as corretoras e distribuidoras de valores. Todos os membros liquidantes da câmara depositam garantias e estão sujeitos a limites operacionais por ela determinados. Essa central de custódia que opera como contraparte central das operações com títulos públicos no sistema eletrônico minimiza os riscos de liquidação das transações entre as partes. Essa é uma importante característica do mercado de dívida brasileiro que está em linha com os princípios internacionais de redução de risco de não fechamento de operações financeiras com títulos públicos. Nessa câmara, é possível realizar operações de venda a descoberto, com títulos que esta disponibilize, com toda a garantia característica de uma operação com contraparte central.38 A CBLC39 tinha a custódia e fazia a compensação, a liquidação e o gerenciamento dos riscos das operações realizadas nos mercados da Bovespa. Com a fusão das bolsas, a CBLC foi incorporada à diretoria responsável pela área de custódia e liquidação da BM&F e, atualmente, existe apenas uma grande central de custódia na estrutura da BM&FBovespa. Em janeiro de 2002, a CBLC e o Tesouro Nacional firmaram uma parceria para tornar possível a venda de títulos públicos às pessoas físicas pela internet (Programa Tesouro Direto). Na atual estrutura de liquidação, o sistema desenvolvido e operado pela CBLC continua funcionando de forma independente das outras câmaras da BM&FBovespa, apesar de fazer parte da estrutura da nova instituição, e é nesse ambiente que as operações do Tesouro Direto têm sua custódia registrada e são liquidadas. 5.2 Sistemas e ambiente de negociação Os títulos públicos são negociados em sistema de bolsa e em ambiente de balcão por meio de contatos telefônicos. Existem também no Brasil operações realizadas em mercado de balcão por meio de sistemas eletrô- nicos. O mercado de balcão apresenta liquidez para alguns títulos, e a referência de preços se dá por meio da cotação aos vários intermediários. Apesar dos esforços para o desenvolvimento do mercado eletrônico, o mercado de balcão por telefone ainda representa a maioria do volume financeiro negociado no mercado secundário. O mercado eletrônico apresenta várias vantagens, sobretudo no que diz respeito à transparência de preços e, por essa razão, é de interesse do Tesouro Nacional o desenvolvimento desse tipo de mer- cado. A maior transparência de preços leva a maior número de cotações e, assim, ao aumento da liquidez do mercado secundário de títulos. Mercados secundários mais líquidos implicam maior demanda por títulos no mercado primário. No Brasil, o mercado eletrônico de títulos públicos federais ainda se mostra incipiente, porém existem dois sistemas operacionais com estrutura para promover tais negociações, o Sisbex e a CetipNet. 38 Para maiores detalhes, ver http://www.bmf.com.br/portal/pages/Clearing1/Ativos/documentos/. 39 Para maiores detalhes, ver http://www.cblc.com.br/cblc/Default.asp. 352 Dívida Pública: a experiência brasileira No Sistema Eletrônico de Negociação e Registro (Sisbex) é possível negociar e liquidar as operações. Esse sistema foi desenvolvido inicialmente na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ) e posteriormente adquirido pela BM&F, em abril de 2002, não sofrendo alteração com a fusão das bolsas. No Sisbex40 só podem ser negociados os títulos públicos federais custodiados no Selic e outros ativos que sejam expressamente admitidos a negociação e registro. O Sisbex é composto por dois módulos: um de casamento (matching) da ordem, em que os participantes diretos podem inserir cotas ou aceitar cotas disponíveis em tela eletrônica; e um módulo de registro, no qual os participantes do mercado reportam negócios realizados em outro ambiente de negociação (em balcão, por exemplo), para que a Clearing de Ativos processe o trâmite de liquidação e custódia. No módulo de negócio, em que os negócios são realizados de acordo com a prioridade de preço e tempo, todos os participantes atuam anonimamente. No caso do módulo de registro, qualquer uma das contrapartes pode inserir as informações, e o registro é realizado assim que a outra contraparte confirma as informações inseridas. Se não houver confirmação da operação, ela não será registrada. Já o CetipNet é um sistema lançado em abril de 2002 pela Cetip. Inicialmente, esse sistema estava disponível apenas para negociação de ativos registrados na Cetip. Atualmente, é possível lançar ofertas de compra e venda também para títulos do Selic, com a restrição de que a operação não é liquidável pela Cetip. Apesar de esse sistema não apresentar central de custódia ou câmara liquidante para os títulos públicos do Selic, é possível realizar operações em tela e promover a liquidação no Selic. Mais recentemente, as cotações eletrônicas adquiriram importância no mercado secundário, princi- palmente em operações com os fundos de pensão. As últimas normas estabelecidas pela SPC definem que é necessário que o gestor de fundos demonstre que os preços pelos quais adquiriu os títulos que compõem sua carteira sejam preços de mercado. Dessa forma, as plataformas de preço eletrônico passaram a ter um componente incentivador para serem desenvolvidas. Em razão da importância dada pelos órgãos reguladores e de controle das entidades participantes do mercado financeiro à transparência dos preços dos ativos de renda fixa, as agências de notícias e cotações de ativos, Bloomberg e Reuters, desenvolveram telas nas quais as instituições financeiras podem disponibilizar os preços com que estão dispostas a fechar negócio, tanto na ponta de venda quanto na ponta de compra. Cada instituição é responsável pela atualização das informações disponíveis e pode oferecer cotações diferenciadas para seus clientes. Nesse caso, a maioria das instituições trabalha com os preços das telas como preços indi- cativos, e o negócio é confirmado pelo telefone, com a liquidação sendo realizada diretamente no Selic. Apesar de as telas da Bloomberg e da Reuters não oferecerem a possibilidade de fechamento de negócio, elas estão em linha com a busca pela transparência de preços e pelo desenvolvimento do mercado secundário de títulos no mercado doméstico brasileiro. 5.3 Novo sistema de pagamento brasileiro Uma das premissas fundamentais para o bom funcionamento de um mercado de dívida pública é a existência de um eficiente sistema de pagamentos, em que as transferências de recursos e ativos entre os diversos participantes de mercado ocorram de forma suave. Duas premissas importantes para o bom funcio- namento do sistema são: 1) a agilidade e segurança no processamento das informações; e 2) a capacidade de minimização de riscos financeiros. 40 O regulamento do Sisbex está disponível em: http://www.bmf.com.br/portal/pages/Clearing1/Ativos/pdf/Sisbex_Regulamento.pdf. 353 Até 2002, o sistema de pagamentos brasileiro já era bastante avançado no que se refere à primeira premissa mencionada anteriormente, dada a necessidade de adaptação ao ambiente de elevada inflação vigente no passado. Entretanto, caberia ainda aprimorar as necessidades referentes à segunda premissa. De fato, a ocorrência de problemas na liquidação de operações financeiras pode abalar a confiança das instituições financeiras no sistema, gerar perdas e, em casos extremos, pelo encadeamento dessas perdas para outras instituições, causar risco sistêmico. Visando à eliminação desse risco, em 2002 o Banco Central (a quem cabe tanto a regulamentação e o monitoramento do sistema de pagamentos quanto a prestação de serviços a ele referentes) implementou reformas no citado sistema. Nesse sentido, implantou-se o Sistema de Transferência de Reservas (STR), que é um sistema de transferên- cia interbancária de fundos com liquidação bruta em tempo real. Da mesma maneira, a conta reserva bancária passou a ser monitorada em tempo real, podendo as transferências de recursos entre as diversas contas só serem efetuadas na hipótese de existência de saldo suficiente na conta do emitente da ordem. Assim, o Selic, no qual são realizadas as operações com títulos públicos e que tem por base um modelo chamado entrega contra pagamento (delivery versus pyment – DVP), passou a liquidar operações em tempo real, reduzindo o risco sistêmico e aumentando a confiança dos participantes no processo. A implantação do novo sistema de pagamentos brasileiro (SPB), a partir de 2002, constituiu um avanço importante para o mercado financeiro no Brasil, de forma geral, e para a dívida pública, em particular. Atual- mente, o mercado de títulos brasileiros conta com um arcabouço operacional bastante avançado e compatível com as expectativas quanto ao seu desenvolvimento. Tabela 2. Principais características dos sistemas de liquidação Selic/STR Cetip Sisbex BM&FBovespa* Mercado Primário, secundário, Primário, eletrônico. Secundário, emprésti- Primário, do Tesouro Direto. empréstimo, eletrônico mo, eletrônico e balcão. (só prá peimário) e balcão. Ativo LFT, LTN e NTN (todas Títulos da dívida LFT, LTN, NTN-B, NTN-C LFT, LTN, NTN-B, NTN-C e as séries). securitizada. e NTN-F. NTN-F Tipo de transação À vista (D0), a termo À vista (D0) e a À vista (D0) e a termo A termo (D2). (D1). termo (D1). (de 1 a 23 dias). Tipo e ciclo de Bruta em tempo real. Bruta em tempo Posição líquida (multi- Posição bruta liquidação real. lateral netting) Gerenciamento de Em caso de não Em caso de não Participantes depositam Os intermediários (bancos risco. existência de fundos existência de fundos garantias, que podem e corretoras/distribuidoras) ou ativos, a operação ou ativos, a operação ser acionadas para são responsáveis por debi- é cancelada. Sistema é cancelada. Sistema liquidar transação. tar a conta do comprador entrega contra paga- (CVP). no sistema DVP. mento (CVP). Participantes Bancos detentores de Bancos deten- Bancos corretoras/dis- Pessoas físicas. diretos reserva bancária. tores de reservas tribuidoras. bancárias e mais de 5 mil instituições não liquidantes. Início de operação 1979 1984 2004 2002 Fonte: sistemas citados * Referimo-nos apenas às operações relacionadas ao Tesouro Direto. Elaboração: autores. 354 Dívida Pública: a experiência brasileira 6 Bolsas Até 2008, existiam duas bolsas de negociação de ativos financeiros no Brasil, a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). No fim do ano de 2007, as duas bolsas lançaram venda de ações ao público e, em 2008, decidiram realizar a integração, criando-se a BM&FBovespa. Porém, os ativos negociados em cada uma delas continuam pertencendo aos mesmos grupos de negociação anteriores. Ou seja, no setor que se refere aos objetos negociados originalmente na BM&F, são negociados derivativos de taxas de juros e de commodities, uma parte dos contratos de dólar à vista, dentre outros, enquanto na Bovespa funciona o mercado acionário brasileiro e alguns negócios de renda fixa. Na BM&FBovespa são negociados os futuros de taxas de juros, chamados de Depósito Interfinanceiro de 1 Dia (DI Futuro). Os DIs são ativos importantes na definição da curva de juros, sendo bastante líquidos e, inclusive, utilizados como referência para os preços dos títulos públicos prefixados. As ações da BM&FBovespa no sentido de desenvolver os mercados futuros relacionados aos ativos de juros e de índice de inflação são importantes e devem ser acompanhadas pelo Tesouro Nacional. A antiga Bovespa, associada à CBLC, lançou os ambientes de negociação, liquidação e custódia de títulos de renda fixa privada para o mercado de bolsa, o Bovespa Fix, e para o mercado de balcão organizado, o Soma Fix. Apesar da fusão das bolsas, esses mercados continuam a existir no mesmo formato. Tal iniciativa complementa o mercado de renda fixa privado, em conjunto com as ações desenvolvidas pela Cetip. Atualmente, no âmbito da BM&FBovespa, é possível negociar debêntures, notas promissórias e FIDC, dentre outros ativos privados.41 7 Entidades envolvidas no mercado de dívida externa As emissões de títulos públicos federais no exterior não apresentam a mesma constância nem o mesmo volume das emissões domésticas. Por isso, para que os títulos obtenham precificação adequada e competiti- vidade é importante que a instituição intermediadora da operação apresente uma boa base de clientes, com capacidade também de manter liquidez para os títulos no mercado secundário. No mercado internacional, os intermediários desempenham papel fundamental na distribuição dos títulos. Tais intermediários são bancos que demonstram experiência em negociar títulos de economias emergen- tes e empresas em geral. Esses bancos apresentam regularmente propostas de emissão ao Tesouro Nacional, com indicação da taxa e do cupom de juros para o tipo de título e prazo apresentados. No caso de o Tesouro aceitar realizar a operação, tais instituições cobram taxas (fees) para realizá-la e também tomar as providências documentais necessárias para a emissão do título. O formato da emissão, as taxas cobradas, o relacionamento do banco com o Tesouro Nacional e outros fatores são avaliados para que seja feita a escolha da instituição que irá intermediar a venda dos títulos.42 Assim que a venda é realizada, os títulos são registrados nas câmaras de custódia indicadas pelos comprado- res, sendo, a partir daí, negociados no mercado secundário. O mercado de negociação dos títulos soberanos funciona na maioria das vezes em balcão (over-the-counter). Existe também um importante mercado eletrônico de negociação de títulos na Europa, o MTS, no qual é possível negociar alguns Euro Bonds brasileiros. No mercado internacional, existem três grandes centrais de custódia e liquidação em que os títulos soberanos do Brasil podem ser registrados e liquidados: a Depository Trust Company (DTC), a Euroclear e a Clearstream Luxembourg. 41 Para maiores detalhes, acesse o site http://www.bmfbovespa.com.br/portugues/home.asp. 42 O Capítulo 4 da Parte 3, em seu item 3.2, trata da emissão de títulos no mercado internacional de forma mais detalhada. 355 A DTC foi criada em 1973 para gerar registros eletrônicos para os ativos financeiros que eram tran- sacionados em papel, tornando-se a central de custódia e liquidação eletrônica de ativos financeiros norte- americanos e, posteriormente, também de ativos internacionais. Ela é uma das seis subsidiárias da Depository Trust & Clearing Corporation (DTCC), que provê a custódia e o serviço de ativos para 2,8 milhões de ativos emitidos nos Estados Unidos e mais outros 107 países. Os participantes da DTCC são bancos, corretoras (brokers-dealers), fundos mútuos e outras instituições financeiras. Ela é regulada e segue as normas estabe- lecidas pela US Securities and Exchange Commission (SEC).43 A Euroclear foi fundada em 1971 pelo J. P. Morgan & Co. e é uma empresa de serviços financeiros ba- seada em Bruxelas, Bélgica. Essa central de custódia liquida transações nacionais e internacionais de títulos, ativos privados de renda fixa e fundos de investimento. Desde o ano de 2000, o sistema Euroclear é operado pelo Euroclear Bank S.A. O sistema tem aproximadamente 2 mil participantes de mais de oitenta países. Os principais participantes são bancos, corretoras (broker-dealers) e outras instituições financeiras. A Euroclear está sujeita à supervisão do Belgian Banking and Finance Comission (BFC), e o National Bank of Belgium (NBB) é responsável por fiscalizá-la. A Clearstream Banking S.A., sediada em Luxemburgo, foi criada no ano de 200044 a partir da fusão da Cedel International e da Deutsche Börse Clearing, com sua completa integração ocorrendo em julho de 2002. Essa câmara de liquidação e custódia é depositária de mais de 300 mil títulos, ações e fundos de investimento negociados no mercado doméstico e internacional, dos quais 62% dos ativos são de renda fixa e 38% são de renda variável (relacionada a ações).45 Mais de 2.500 clientes em 110 diferentes países operam com essa instituição, que realiza uma média diária de 250 mil transações. Uma característica importante é que títulos brasileiros emitidos no mercado internacional podem ser registrados e liquidados em qualquer uma das três grandes centrais de custódia aqui apresentadas, a de- pender da vontade do comprador e desde que sejam globais.46 Em razão disso, a negociação com os títulos soberanos do Brasil devem obedecer às regras estabelecidas pelos órgãos reguladores de cada país onde os títulos estão registrados. Quanto aos órgãos reguladores, a Security and Exchange Commission (SEC) é uma agência do go- verno norte-americano responsável por regular a indústria de ativos de renda fixa e o mercado de ações. Foi criada pelo Securities Exchange Act, de 1934. A Divisão de Regulação de Mercado estabelece as normas de funcionamento do mercado e o faz regulando seus maiores participantes, como corretoras (brokers-dealers), organizações autorreguladoras, agências liquidantes, agências de transferência (aquelas que têm os dados dos detentores dos ativos), processadores de informação dos ativos e agências de avaliação (rating) de crédito. A Divisão de Administração de Investimentos fiscaliza e regula a indústria de fundos e estabelece as regras sobre as instituições de investimento (inclusive fundos mútuos) e os consultores de investimento. Em termos de autorregulação, a National Association of Securities Dealers (NASD), que regula os negócios com ativos de renda fixa, títulos privados, futuros e opções; e a New York Stock Exchange (NYSE) Regulation, Inc., responsável pela regulamentação do mercado de ações se fundiram em uma única instituição, em junho de 2007, a Financial Industry Regulatory Authority. Tal órgão privado exerce a função de grande autorregulador do mercado financeiro. 43 Para mais informações, acesse o site http://www.dtcc.com. 44 Uma das empresas que a originou apresenta histórico de 35 anos de presença como custodiante e liquidante de ativos finan- ceiros no mercado internacional de renda fixa. 45 Posição em agosto de 2007. Fonte: http://www.clearstream.com/ci/dispatch/en/kir/ci_nav/home. 46 Os Euro Bonds não podem ser registrados na DTC. 356 Dívida Pública: a experiência brasileira Cabe destacar que, embora a dívida externa represente atualmente menos de 10% do total da Dívida Pública Federal brasileira em mercado, sua existência permite ao país a inserção no mercado internacional e a visibilidade do Brasil para o resto do mundo. A existência de uma dívida com taxas de juros reduzidas e liquidez é um fator bastante positivo para a imagem do país em negociações no mercado internacional e para boas classificações das agências de rating. Por isso, as ações do Tesouro Nacional com relação à dívida externa têm-se mostrado sob a perspectiva de atuações qualitativas, ao recomprar dívidas antigas que pagam juros altos e emitir dívida nova com taxas mais baixas e prazos mais longos. 8 Conclusão O Brasil apresenta estrutura de mercado bem delineada, com a presença de órgãos normativos e reguladores/fiscalizadores necessários para acompanhar todos os entes participantes do sistema financeiro nacional. O ambiente regulatório é transparente, e a busca pela melhoria da qualidade de informações de preços dos ativos passa pelo incentivo ao aumento de liquidez no mercado secundário. A interação entre os órgãos e as entidades aqui expostos fará com que a busca pelo desenvolvimento do mercado financeiro doméstico progrida e prime pela minimização de riscos de perda financeira para a sociedade. O ambiente de boa liquidez dos ativos, transparência de preços e menores riscos favorece a administração da dívida pública e seu planejamento de longo prazo. Para isso, é uma constante do Tesouro Nacional a participação nos grupos de trabalho e discussão sobre desenvolvimento do mercado secundário de títulos, de empréstimo de títulos e também de venda a descoberto. O Tesouro entende que a melhoria das citadas modalidades de negócios com títulos públicos é primordial para o aumento da liquidez dos ativos. A existência da Câmara de Ativos da BM&FBovespa, a Clearing do Sisbex, onde são negociados títulos eletronicamente, é um grande avanço do mercado doméstico de títulos públicos, reduzindo a quase zero o risco de inadimplência de uma operação. Esse tipo de negociação vem sendo incentivada pelo Tesouro Nacional, que, por meio dos direitos e das obrigações definidos para os dealers, inseriu regras de pontuação que favorecem as operações realizadas em ambiente eletrônico de negociação ou cotação, com o propósito de incentivar o crescimento de tal mercado. Referências ANDIMA. Mercado de balcão de renda fixa: uma agenda de debates. Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro. Rio de Janeiro: Andima, 2006. WORLD BANK. Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementa- tion. Washington-DC: The World Bank, 2007. 357 358 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 4 Mercado primário da Dívida Pública Federal Lena Oliveira de Carvalho* José Franco Medeiros de Morais* 1 Introdução Todos os anos, volumes significativos de recursos são captados no mercado primário de títulos públicos, interno e externo, para fazer face às necessidades de financiamento do governo.1 A busca por formas e práticas eficientes de captação representa uma das principais funções do gestor da dívida pública. Essa tarefa requer análise dos instrumentos, dos mecanismos adequados para emissão e dos procedimentos empregados para comunicação com investidores. Cada passo e conquista nesse campo contribui para a redução do custo de financiamento do governo2 e para o desenvolvimento do mercado. O presente capítulo tem como objetivo primordial apresentar um panorama geral do mercado primário de títulos emitidos pelo governo brasileiro. Além de descrever as modalidades de emissão nos mercados doméstico e internacional, serão apresentados, em linhas gerais, a estratégia adotada e os mecanismos de emissão utilizados em cada um desses mercados. A primeira seção deste capítulo é esta introdução. A segunda seção destaca o alinhamento da atuação do Tesouro Nacional aos princípios de transparência e previsibilidade, de acordo com as melhores práticas internacionais. A terceira seção descreve os instrumentos de emissão e a estratégia adotada. Na quarta seção, são destacados os mecanismos de emissão e as características dos compradores. Por fim, a quinta seção apre- senta as operações de gerenciamento de passivo que o Tesouro Nacional executa com variados objetivos. 2 Transparência e previsibilidade As melhores práticas internacionais sugerem que operações da dívida pública no mercado primário devam ser transparentes e previsíveis,3 visando à maximização da competição entre os investidores e, conse- quentemente, à obtenção dos melhores resultados para o governo. Transparência e previsibilidade são estimuladas principalmente pela existência de arcabouços legal e institucional bem definidos, pelo fornecimento tempestivo de informações sobre a atuação do Tesouro * Os autores agradecem a importante contribuição de Anderson Caputo Silva que enriqueceu o trabalho com considerações relevantes e o eximem de responsabilidade sobre qualquer impropriedade no texto. 1 No ano de 2009, por exemplo, a necessidade de financiamento do Tesouro, de acordo com seu Plano Anual de Financiamento, é de R$ 309,2 bilhões. 2 Silva, Dieguez e Carvalho (2003) demonstram, por exemplo, a importância da prática de reaberturas (reopening) de títulos prefi- xados. Segundo os autores que analisaram uma amostra de 461 leilões de títulos prefixados e indexados à taxa Selic, reaberturas de títulos prefixados permitiram uma redução de 10 bps. no custo de financiamento do governo. 3 No mercado internacional, o governo muitas vezes compete com outros países emissores por uma fatia da demanda de in- vestidores. Dado que o acesso a esse mercado é caracterizado por janelas de oportunidade, emissões soberanas tendem a ser concentradas nesses períodos. Excessiva previsibilidade pode não ser recomendável, pois possibilita atuação oportunista de outros emissores e a canibalização da demanda. 359 (antes e após suas realizações) e por procedimentos consistentes na política de financiamento, tais como o cumprimento de metas preestabelecidas. Esses aspectos vêm sendo bem observados no Brasil, com avanços importantes nos últimos anos.4 Em relação ao arcabouço legal, por exemplo, destaca-se o avanço na definição das atribuições relativas à emissão de títulos públicos federais, que passou a ser permitida de forma exclusiva ao Tesouro Nacional.5 Além disso, as características gerais e as formas de emissão dos títulos públicos federais foram consolidadas em um único instrumento legal (Decreto nº 3.540 , de 11 de julho de 2000). No lado institu- cional, foi implementada ampla reestruturação da área da Secretaria do Tesouro Nacional responsável pela administração da dívida pública, separando-a em Front, Middle e Back Office,6 que permitiu a definição das atribuições de cada área, em particular aquelas que seriam diretamente responsáveis pela execução dos leilões e das estratégias envolvidas. O fornecimento tempestivo de informações sobre as atuações do Tesouro encontra-se bem estruturado, com a divulgação periódica de documentos que se complementam e possuem níveis de detalhamento dis- tintos, quais sejam: o Plano Anual de Financiamento (PAF); o Cronograma Mensal de Leilões; e a Portaria de cada leilão. O PAF estabelece claramente as diretrizes a serem seguidas e as metas a serem alcançadas ao longo do ano, referentes à administração da dívida pública interna e externa. O documento contém os objetivos gerais, a estratégia de gestão e os instrumentos de atuação da dívida pública, permitindo aos agentes econômicos obterem maior grau de informação para que possam tomar suas decisões de investimento. Por sua vez, o Cronograma Mensal de Leilões,7 divulgado no último dia útil do mês anterior, define as características gerais dos leilões da dívida interna, tais como a data e o tipo (emissão, troca ou resgate antecipado), além de estipular o montante máximo agregado a ser emitido ao longo do mês. Por fim, a Portaria8 é divulgada previamente a cada leilão, tornando públicas as principais informações referentes à emissão, tais como: objetivo, montante a ser ofertado de cada título, quantidade, valor unitário, datas de emissão e de vencimento.9 A transparência é reforçada por um conjunto de informações divulgadas posteriormente às atuações do Tesouro, com destaque para dois documentos:10 o Relatório Anual e a Nota Unificada de Dívida Pública. O Relatório Anual apresenta uma retrospectiva do gerenciamento da dívida pública ocorrido no ano ante- rior, confrontando os resultados alcançados com as metas estipuladas ex ante pelo PAF.11 Em suma, esse documento pode ser interpretado como uma prestação de contas aos investidores e à sociedade em geral 4 O Tesouro Nacional também tem tomado medidas para fortalecer e aumentar o nível de transparência no mercado secundário, conforme descrito no Capítulo 6 da Parte 3. 5 Anteriormente, além do Tesouro Nacional, o Banco Central emitia seus próprios títulos. Essa modificação, estipulada na Lei de Responsabilidade Fiscal, representou importante passo rumo à maior segmentação das políticas monetária e fiscal e ampliou a transparência quanto à atuação das duas instituições no mercado. Ver seção 2, Capítulo 1 da Parte 2. 6 Conforme explicado no Capítulo 1 da Parte 2. 7 Vide Anexo 1. 8 Vide Anexo 2. 9 Não obstante sua execução operacional pelo Sistema do Banco Central, todo o processo de emissão é gerenciado pelo Tesouro Nacional. 10 Adicionalmente, o Tesouro Nacional divulga tempestivamente em seu site os resultados das operações da dívida externa e dos leilões da dívida interna, trazendo informações sobre a quantidade de títulos ofertada, a quantidade de títulos aceita, o financeiro aceito, a taxa média e a taxa aceita. 11 Anteriormente à criação do Relatório Anual, ocorrida em 2003, parte de seu conteúdo era divulgado juntamente com o PAF do ano seguinte. Entretanto, para aumentar o nível de detalhamento das estatísticas, decidiu-se criar um documento separado. 360 Dívida Pública: a experiência brasileira acerca do gerenciamento da dívida pública. O Relatório Anual fornece uma abordagem mais completa sobre as medidas adotadas referentes ao gerenciamento de dívida, possibilitando discutir também o processo de definição dos objetivos e das metas, incluindo aspectos relacionados ao aprimoramento dos recursos humanos e tecnológicos. A Nota Unificada, por sua vez, é divulgada mensalmente, contendo o balanço do gerenciamento da dívida pública. Neste documento, encontram-se indicadores estatísticos, informações e comentários acerca dos leilões da dívida interna e das operações da dívida externa ocorridos no mês anterior.12 Por fim, procedimentos consistentes na política de financiamento via, por exemplo, cumprimento de metas preestabelecidas no PAF ou das condições mais específicas definidas nos cronogramas de leilão incrementam a credibilidade das informações prestadas e favorecem a conquista de maior transparência e previsibilidade. Além disso, o estímulo à eficiente formação de preços no mercado primário por critérios competitivos contribui para o desenvolvimento do mercado secundário e evita distorções potencialmente causadas por excessiva intervenção do governo.13 3 Instrumentos e estratégia de financiamento 3.1 Mercado doméstico Os instrumentos de financiamento da República no mercado doméstico possuem características distintas que atendem às necessidades de uma ampla base de investidores. A cesta de instrumentos ofertados pelo Tesouro Nacional no mercado doméstico por meio de leilões competitivos é formada por títulos prefixados (LTN e NTN-F) e títulos pós-fixados, indexados à inflação (NTN-B) e à taxa Selic (LFT). A estratégia de emissão para os títulos prefixados tem como objetivo não apenas a simples obten- ção de financiamento, mas também a construção de uma curva de rendimentos eficiente, com pontos de referência (benchmarks) claros e líquidos. De modo geral, a estratégia de emissão de LTN contempla a criação e a manutenção de benchmarks de seis, 12 e 24 meses, enquanto a estratégia de emissão de NTN-F contempla a emissão de pontos de três, cinco e dez anos. Há ainda a possibilidade de alongamento da curva por meio da criação de novo benchmark com prazo acima de dez anos.14 As ofertas de instrumentos prefixados são realizadas semanalmente, todas as quintas-feiras, conforme se pode observar no cronograma apresentado no Anexo 1. Como forma de incentivar o mercado secundário, as LTNs mais curtas (seis e 12 meses) e as NTN-Fs mais longas (cinco e dez anos) são ofertadas com periodi- cidade intercalada, ou seja, em semanas alternadas. A estratégia adotada para os títulos indexados à inflação também prevê a construção de uma curva eficiente por meio da criação e da manutenção de benchmarks bem definidos. Os prazos de emissão são de 12 Até novembro de 2006, esse tipo de informação era divulgado pela Nota Conjunta Tesouro Nacional/Banco Central, que além de operações da dívida pública interna incluía também operações de mercado aberto realizadas pelo Banco Central. A partir de dezembro de 2006, o foco passou a ser a Dívida Pública Federal (interna e externa) e surgiu a Nota Unificada, divulgada unica- mente pelo Tesouro Nacional. 13 Em muitos mercados menos desenvolvidos, existe tendência de o governo atuar como formador (em vez de tomador) de preços nos leilões. Embora existam várias explicações para esse tipo de comportamento (por exemplo, receios com relação a conluio nos leilões), essa prática é geralmente danosa ao desenvolvimento do mercado, com custos maiores no médio e no longo prazos. 14 A consolidação de instrumentos prefixados de longo prazo vem sendo feita de forma gradual acompanhando a maior confiança de investidores em alongar os prazos de instrumentos não indexados em seus portfólios (ver Capítulo 1 da Parte 3). 361 três, cinco, dez, vinte, trinta e quarenta anos, e a liquidez dos papéis tem aumentado de forma consistente.15 As ofertas de NTN-B são realizadas quinzenalmente, sempre às terças-feiras, sendo as de prazos mais longos (vinte, trinta e quarenta anos) ofertadas mensalmente. Assim como no caso dos prefixados, a menor frequência nas ofertas públicas tem como objetivo incentivar as negociações no mercado secundário. O Gráfico 1 apresenta as curvas de rendimentos formadas pelos títulos prefixados (LTN e NTN-F) e pelos títulos indexados à inflação (NTN-B) referentes ao dia 21/08/2008. Gráfico 1. Curvas de rendimentos (21/08/2008) Fonte: Tesouro Nacional O terceiro instrumento de financiamento é a LFT, indexada à taxa Selic. Ao contrário do que ocorre em outros países, onde instrumentos flutuantes são normalmente indexados a uma taxa de juros trimestral ou semestral, a LFT é indexada à taxa overnight. Como o Tesouro Nacional promove o desenvolvimento dos mer- cados de LTN, NTN-F e NTN-B, em detrimento do mercado de LFT, não há uma política declarada de incentivo à construção de uma curva de LFT. Atualmente, os prazos ofertados são de quatro e seis anos, e os volumes emitidos são relativamente baixos. Um procedimento importante para a construção de curvas bem definidas refere-se à padronização das datas de vencimento dos diversos instrumentos de financiamento. Os títulos prefixados têm vencimento no primeiro dia dos meses de janeiro, abril, julho e outubro, que coincidem com as datas de vencimento dos contratos de juros futuros (DI) negociados na BMF.16 Os títulos indexados à inflação, por sua vez, vencem sempre no dia 15 dos meses de maio (quando o ano de vencimento é ímpar) ou agosto (quando o ano de vencimento é par). Já as LFTs vencem no dia 7 dos meses de março, junho, setembro ou dezembro. Dessa maneira, os fluxos de principal e de cupons são diluídos ao longo do ano. 15 O mercado de NTN-B é relativamente recente, dado que a primeira emissão ocorreu em 2003. Antes dessa data, o principal instrumento de financiamento indexado à inflação era a NTN-C, cujo indexador é o Índice Geral de Preços de Mercado (IGPM). 16 Em geral, os investidores locais têm maior apetite por duration se tiverem a possibilidade de estruturar uma proteção (hedge) contra o risco de elevação na taxa de juros. 362 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 2. Fluxo de vencimentos Fonte: Tesouro Nacional Essa organização de vencimentos permite evitar um problema comum em mercados de títulos públicos, principalmente de economias emergentes, qual seja: a elevada fragmentação da dívida em um número excessivo de instrumentos de baixo valor e com datas de vencimentos irregulares. Essa fragmentação reduz a demanda, a liquidez e a formação de preços dos títulos públicos. A consequente ausência de referências sólidas de taxas de juros a prazos distintos (curva de juros) acaba também por prejudicar outros aspectos da economia, como o financiamento de investimentos privados de longo prazo e a conduta da política monetária. Um contraponto importante é que essa política de concentração de vencimentos requer maior sofisticação no gerenciamento de risco de refinanciamento da dívida. Vencimentos maiores em datas específicas precisam ser monitorados, e uma política ativa de gestão de risco é necessária. O Tesouro vem fazendo isso por três vias principais. Em primeiro lugar, a própria alocação de meses específicos para papéis prefixados, indexados a preços e à Selic auxilia na suavização de fluxos mensais (mas não diários) de principal e juros da dívida. Segundo, níveis prudentes de recursos são mantidos em caixa, caso seja necessário cancelar leilões em razão de choques imprevistos nas condições de financiamento da dívida. Por fim, e não menos importante, o Tesouro conduz uma política ativa de operações de gerenciamento de passivo, conforme detalhado na seção 5. 3.2 Mercado externo Após a renegociação da dívida externa, finalizada em 1994, a República voltou a ter acesso ao mercado de dívida soberana.17 Na época, o foco das operações era basicamente a obtenção de financiamento externo, visando à rolagem da dívida pública. Nesse sentido, a atuação era basicamente função da demanda e das eventuais janelas de oportunidade, sem a pretensão de construir uma curva bem definida que servisse como referência. Os primeiros títulos soberanos eram de curto prazo – máximo de cinco anos – e denominados em moedas diversas (iene, marco alemão, escudos portugueses, florim holandês, schilling austríaco, lira italiana, libra esterlina e dólares americanos). Em uma segunda etapa, os mercados de atuação foram limitados a três – dólares, euros e ienes –, e ao longo do tempo foi construída uma curva de rendimentos em cada um desses mercados. A justificativa para a 17 Ver quadro com emissões soberanas no Anexo Estatístico. 363 manutenção de três curvas era a diversificação da base de investidores, que faz sentido não apenas do ponto de vista de gerenciamento de risco e diversificação de portfólio, mas também porque os três mercados possuem características distintas. Enquanto nos mercados europeu e japonês há grande participação de investidores de varejo, o mercado global é formado majoritariamente por investidores institucionais. Com o passar do tempo, as necessidades de financiamento da República foram se reduzindo, e os mercados de títulos denominados em euros e ienes perderam relevância como fonte de financiamento.18 A partir de 2005, quando o Tesouro Nacional assumiu plenamente a responsabilidade sobre a execução das operações no mercado internacional, foi possível uma maior integração entre a administração da dívida pública doméstica e da externa. Nesse contexto, o Tesouro Nacional optou por criar uma curva de rendimentos em reais no mercado externo, que seria complementar à curva prefixada existente no mercado doméstico. Em setembro de 2005, quando o título prefixado mais longo emitido no mercado doméstico era de sete anos (NTN-F 2012), o Tesouro Nacional emitiu no mercado externo o Global BRL 2016, primeiro título da curva de rendimentos em reais no mercado internacional. A atual estratégia adotada para a administração da Dívida Mobiliária externa tem uma visão mais quali- tativa, que consiste em: i) reduzir a proporção da dívida pública indexada à taxa de câmbio; ii) desenvolver a curva offshore em reais; e iii) melhorar a eficiência da curva em dólares, por meio da recompra dos títulos off the run19 e de sucessivas reaberturas dos títulos on the run,20 com ênfase nos pontos de dez e trinta anos. 4 Mecanismos de emissão e características dos compradores Estudos do Banco Mundial e do FMI21 sugerem que uma precondição para o desenvolvimento do mercado primário é a realização de emissões com base em mecanismos de mercado, tais como leilões competitivos e ofertas por meio de sindicatos. Os leilões constituem o mecanismo de distribuição predominante nos mercados domésticos de títulos públicos de economias industrializadas e emergentes, enquanto sindicatos são mais comuns no mercado internacional.22 O Brasil segue esse mesmo padrão, tanto no mercado interno quanto no externo, avaliando com frequên- cia a adequabilidade desses mecanismos, bem como monitorando e analisando a participação dos diversos compradores. Esse maior cuidado na análise de dados é uma lição importante, bem assimilada no Brasil e que serve de estímulo para que outros países sigam procedimento semelhante. Aprimoramentos nas técnicas de emissão podem proporcionar reduções importantes no custo de financiamento e auxiliar a alocação mais eficiente de títulos no mercado primário.23 18 A curva em ienes não existe mais, pois todos os títulos já venceram, e a emissão mais recente no mercado de euros ocorreu em janeiro de 2005. 19 Títulos negociados em mercado que não estão mais disponíveis para emissão primária. 20 Títulos negociados em mercado disponíveis para emissão primária. 21 Developing government bond market: a handbook (Banco Mundial e FMI) e Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementation (Banco Mundial). 22 Sindicatos vêm sendo gradualmente mais utilizados em combinação com leilões em mercados domésticos (por exemplo, Bélgica e Alemanha). Uma política comum é o lançamento inicial via sindicato para garantir melhor distribuição e diversificação de inves- tidores e, posteriormente, segue-se com leilões de reabertura do mesmo instrumento para que este se consolide como um ponto de referência (benchmark). 23 O Tesouro Nacional conta com base de dados de leilões que permite analisar a participação de cada instituição. 364 Dívida Pública: a experiência brasileira 4.1 Mercado doméstico 4.1.1 Mecanismos de emissão A principal forma de emissão no mercado doméstico é a oferta pública por meio de leilões competitivos. Os leilões são abertos a todas as instituições cadastradas no Sistema de Liquidação e Custódia (Selic),24 que é a câmara de compensação e liquidação gerenciada pelo Banco Central. Uma das funções do Selic é registrar as transações com os títulos do governo. Instituições cadastradas no sistema (bancos, corretoras ou outras instituições) podem participar das ofertas públicas.25 Cabe destacar que esse acesso amplo a diversas instituições não é o único modelo utilizado internacio- nalmente no mercado primário. De acordo com as práticas internacionais, leilões podem ser abertos (acesso amplo, como no Brasil) ou fechados (acesso exclusivo a primary dealers, normalmente em número menor que 15 instituições). O melhor modelo varia em função dos objetivos do emissor, do grau de desenvolvimento da base de investidores e até mesmo da tradição de cada país – já que a alteração de um modelo a outro sempre encontra resistências por quem tem (ou deixa de ter) acesso ao mercado primário. Leilões abertos, por um lado, estimulam a competitividade no mercado primário e reduzem o risco de conluio. Leilões fechados, por outro, tendem a favorecer o mercado secundário dada a necessidade de maior distribuição a outros investidores de títulos adquiridos exclusivamente por dealers nos leilões. O nível de competitividade nos leilões é monitorado frequentemente pelo Tesouro Nacional, seja pelo acompanhamento da relação demanda e oferta a cada leilão seja por tipo de instrumento ou, conforme mencionado, pela análise da participação individual das instituições. O monitoramento do índice demanda/ oferta, por exemplo, auxila na determinação da velocidade na qual é possível caminhar rumo às diretrizes de alongamento de prazos e redução da parcela indexada à taxa Selic. Esses índices nos leilões de LFT, LTN, NTN-F e NTN-B, realizados em 2008, tiveram média de 2,17; 2,09; 1,43 e 1,52, respectivamente. Os leilões são conduzidos por meio do sistema eletrônico administrado pelo Banco Central, e cada par- ticipante pode submeter o limite máximo de cinco propostas. Estas são ordenadas por ordem decrescente de preços (ou crescente de taxa), e o preço de corte é estabelecido no montante em que a demanda se igualar à oferta.26 Os leilões de venda, também chamados de leilões tradicionais, apresentam características distintas, conforme o instrumento ofertado.27 Os leilões de instrumentos prefixados (LTN e NTN-F) são discriminatórios ou de preços múltiplos, ou seja, cada participante paga o preço por ele proposto. Os instrumentos pós-fixados (NTN-B e LFT), por sua vez, são ofertados por meio de leilão de preço único ou preço uniforme. Nessa modalidade, um único preço, correspondente ao mínimo preço aceito, é aplicado a todas as propostas ganhadoras. Outra característica dos leilões de títulos pós-fixados é o fato de serem ofertados, concomitantemente, títulos com datas de vencimento distintas sem se especificar o volume a ser alocado a cada instrumento, mas sim uma quantidade máxima total. Esses leilões, denominados híbridos pelos participantes do mercado, proporcionam ao emissor maior flexibilidade para determinar a composição da cesta a ser vendida. Após receber as propostas dos compradores, o Tesouro Nacional decide a taxa de corte e a quantidade a ser vendida de cada título.28 24 Há 6.330 instituições cadastradas no Selic, das quais 377 estão aptas a participar dos leilões do Tesouro Nacional. Estas 377 instituições estão subdivididas em: 177 corretoras e distribuidoras, 175 bancos, 23 financeiras e 2 instituições de crédito imobiliário (posição em 31/03/2009). 25 Pessoas físicas e instituições não cadastradas devem participar por intermédio de alguma instituição devidamente cadastrada. 26 A Portaria determina a quantidade máxima a ser ofertada, porém o emissor tem o direito de estabelecer o preço (ou taxa) de corte e, eventualmente, vender uma quantidade inferior à quantidade máxima divulgada na Portaria. 27 O Anexo 2 deste capítulo apresenta uma descrição mais detalhada dos tipos clássicos de leilões. 28 Rodrigues e Bugarin (2003) analisam os méritos desse modelo confirmando a vantagem do mecanismo quando há incerteza sobre a demanda efetiva por títulos públicos. 365 O Tesouro Nacional e o Banco Central do Brasil dispõem de um sistema de dealers formal, cujo objetivo é contribuir para o desenvolvimento dos mercados primário e secundário29 de títulos públicos. Apesar de não possuírem acesso exclusivo aos leilões tradicionais, os dealers têm o direito – mas não a obrigação – de par- ticipar das chamadas operações especiais com o Tesouro Nacional. Uma das operações especiais é o leilão de 2ª volta, no qual cada dealer tem a opção de comprar determinada quantidade dos títulos ofertados ao preço médio apurado na primeira etapa. A realização do leilão de 2ª volta para cada vencimento é condicio- nal à venda integral do lote ofertado na primeira etapa. A Portaria de cada leilão especifica as condições do eventual leilão de 2ª volta e o Ato Normativo estipula os critérios para a definição da quantidade máxima que cada dealer pode comprar.30 As instituições dealers também cumpriam papel fundamental nos chamados “leilões de oferta firme”, utilizados em algumas ocasiões no passado para a colocação em mercado de títulos mais longos, geralmente prefixados, quando ainda não havia forte consenso em relação às taxas de juros desses papéis. Nesse processo, as instituições dealers enviavam ao Tesouro Nacional, em uma primeira etapa, propostas “firmes” de compra de determinados títulos. Uma vez aceitas essas propostas, em caráter preliminar, pelo Tesouro Nacional, divulgavam-se o volume e o preço de corte da primeira etapa, sendo os títulos subsequentemente ofertados, em uma segunda etapa, por meio de leilão tradicional, aberto a todas as instituições. O resultado conjunto das duas etapas definia o resultado do leilão. Esse instrumento pode ser útil durante os estágios iniciais de desenvolvimento do mercado e foi uma lição positiva passível de ser empregada em outros países. A última vez que o Tesouro Nacional utilizou esse tipo de colocação foi em dezembro de 2003. Box 1. Sistema de dealers Principais características do sistema de dealers Os dealers são instituições credenciadas pelo Tesouro Nacional e pelo Banco Central do Brasil com o objetivo de promover o desenvolvimento dos mercados primário e secundário de títulos públicos. As instituições selecionadas classificam-se em dois subgrupos. Os dealers primários são direcionados para as colocações primárias de títulos públicos federais, enquanto os dealers especialistas são direcionados para a negociação no mercado secundário desses títulos. Há 15 dealers, dos quais quatro são apenas primários, seis são apenas secundários e cinco fazem parte de ambos os grupos simultaneamente. Os pré-requisitos para o credenciamento da instituição são os seguintes: a) patrimônio de referência de, pelo menos, 50% do valor mínimo fixado para instituições financeiras com carteira comercial; b) elevado padrão ético de conduta nas operações realizadas no mercado financeiro; e c) inexistência de restrição que, a critério do Banco Central do Brasil ou do Tesouro Nacional, desaconselhe o credenciamento. O desempenho de cada instituição é avaliado a cada seis meses, e aquelas com o pior desempenho são substituídas. A seleção é feita mediante avaliação de desempenho baseada, sobretudo, em operações definitivas e compromissadas com o mercado e nas participações em ofertas públicas. 29 As regras e os critérios do sistema de dealers estão definidos nos Atos Normativos Conjuntos nº 16 e nº 18, que estabelecem os direitos e os deveres dos dealers. Os documentos encontram-se disponíveis no endereço eletrônico http://www.tesouro.fazenda. gov.br/legislacao/download/divida/.pdf. 30 Outras referências ao sistema de dealers podem ser encontradas nos Capítulos 1 e 3 da Parte 3. 366 Dívida Pública: a experiência brasileira Além dos leilões, há ainda outras formas de emissão que correspondem a uma parcela reduzida relativa- mente ao total. Uma delas é o Tesouro Direto,31 mecanismo de venda direta de títulos públicos ao mercado de varejo por meio da internet. O programa possibilita às pessoas físicas a aquisição de frações de títulos públicos (0,2), sendo assim acessível a uma ampla base de investidores. Os principais objetivos do Tesouro Direto são: i) democratizar o acesso à aplicação em títulos federais; ii) incentivar a formação de poupança de longo prazo; e iii) fornecer informações sobre a administração e a estrutura da dívida pública federal no Brasil. Outra forma de colocação são as emissões diretas para atender a finalidades específicas definidas em lei. Atualmente, são exemplos de emissões diretas: securitização de dívidas, pagamento de equalização de taxa de juros do Programa de Financiamento às Exportações (Proex); caução de recursos financeiros deposi- tados em conta judicial (Funad); financiamento a estudantes do ensino superior e garantia de recebimento de dívidas previdenciárias das Instituições de Ensino Superior (Fies); emissões para fins de reforma agrária (TDA), dentre outros. 4.1.2 Características dos compradores É importante considerar as características dos compradores de títulos públicos e como eles estão alinhados com as diretrizes de financiamento da dívida pública, dentre as quais a substituição gradual dos títulos remunerados pela taxa Selic por títulos com rentabilidade prefixada ou vinculada a índices de preços.32 Nesse sentido, esta seção busca tratar do perfil dos compradores de cada instrumento da dívida pública, levando-se em consideração seus objetivos. Indexados à Selic (LFT) – Esses títulos são principalmente carregados pelas tesourarias dos bancos (carteira própria), bem como por fundos de investimento que querem ter a garantia de financiamento com taxa de juros repactuada diariamente, ou seja, no overnight. Além disso, cabe observar que, em termos de prazo, esses investidores estão concentrados principalmente em títulos com prazos mais curtos. Os demandantes são conhecidos como investidores buy-and-sell, pois visam a rendimentos em bases diárias e querem ter a possibilidade de se desfazer do título rapidamente. A liquidez diária oferecida pelos fundos de investimento, associada à divulgação diária das cotas desses fundos, é um dos fatores fundamentais que induzem a uma presença expressiva de LFT nessas carteiras. Para custear os saques que podem ocorrer em momentos de queda nas cotas, os gestores tendem a manter em suas carteiras uma grande parte dos ativos nesses títulos, garantindo assim elevada liquidez. Indexados a Índices de Preços (NTN-B) – Os investidores desses títulos caracterizam-se por pos- suírem objetivos que vão além da necessidade de liquidez diária e procuram casar seus passivos ou objetivos de investimento com as características dos títulos. Os investidores de NTN-B tendem, em sua maioria, a car- regar o título por um tempo maior, são investidores buy-and-hold. Nesse caso, destacam-se como maiores participantes investidores de mercado de previdência com gestão própria de sua carteira33 e investidores pessoas físicas (Tesouro Direto).34 Investidores não residentes vêm se tornando participativos nesse mercado, contribuindo para sua liquidez e diversificação da base de investidores. 31 Ver Capítulo 7 da Parte 3. 32 Para maiores detalhes sobre estratégia de financiamento da dívida pública e seus objetivos, ver Capítulo 2 da Parte 2. 33 No capítulo sobre base de investidores, comenta-se que quando a gestão dos recursos das entidades de previdência é terceiriza- da para um fundo de investimento, o perfil do investimento é diferenciado, apresentando bastante participação de títulos atrelados à Selic. 34 Como mencionado no capítulo sobre base de investidores, nem mesmo o recente ciclo de aumento da taxa Selic fez com que esses investidores aumentassem seu apetite por LFTs. 367 Prefixados (NTN-F e LTN) – Investidores em títulos prefixados buscam acompanhar a conjuntura econômica mais atentamente, dado a maior sensibilidade de preços a variações nas taxas de juros. Quanto mais longos os títulos (LTN mais longas e NTN-F), maior essa sensibilidade. Os títulos mais longos costumam ser demandados, principalmente, para compor carteiras próprias de instituições financeiras e por investidores não residentes. Pessoas físicas também alocam parcela considerável de seus investimentos em títulos públicos nesses títulos (via Tesouro Direto). As LTNs mais curtas recebem maior demanda em momentos de aumento nas taxas de juros, e, dados seu curto prazo e baixo risco, também são utilizadas para gestão de liquidez de instituições financeiras. 4.2 Mercado externo 4.2.1 Mecanismos de emissão As operações no mercado externo estão reguladas do ponto de vista interno pela Resolução nº 20 do Senado Federal, de 17 de novembro de 2004, que autoriza a União a executar o programa de emissão de títulos e de administração de passivos de responsabilidade do Tesouro Nacional.35 Além disso, todas as operações devem contar com o suporte legal da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), instituição do Ministério da Fazenda responsável pela assessoria jurídica. Do ponto de vista externo, as operações no mercado global devem ser realizadas de acordo com as normas estipuladas pela Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado de ativos mobiliários nos Estados Unidos. Uma das exigên- cias da SEC é a contratação de um escritório de advocacia nos Estados Unidos, cuja função é representar o emissor não somente junto à própria SEC, mas também junto aos demais participantes do mercado. Todas as operações no mercado internacional devem contar com o aval dos advogados externos. Outro ponto que merece destaque na execução das operações externas é a escolha dos dealer managers (DMs),36 que assessoram o emissor e atuam como subscritores (underwriters), responsáveis pela distribuição do título a ser emitido e por fazer a intermediação entre o emissor e os investidores. Como contrapartida aos serviços prestados, os underwriters recebem do emissor uma comissão (fee), previamente acordada entre as partes e proporcional ao volume nocional da operação em questão. Dada a natureza dinâmica do mercado financeiro e a necessidade de haver compatibilidade entre as habilidades do DM e as características de cada operação, a escolha dos underwriters deve ser pautada não apenas por critérios relacionados aos custos da operação, mas também por critérios relacionados à qualidade (expertise) da instituição financeira. Dentre os aspectos a serem considerados, incluem-se a capacidade de distribuição, o comprometimento em assegurar liquidez ao título após a emissão, a participação no mercado (market share) e o histórico de desempenho em operações anteriores. Nos últimos anos, o Tesouro Nacional tem acessado o mercado internacional com certa frequência,37 tendo assim estabelecido relacionamento de negócios com cerca de 15 bancos de investimento que mantêm contatos semanais com a Mesa de Operações Externas do Tesouro Nacional e são potenciais candidatos para atuar como DM. O contato frequente elimina a necessidade de o Tesouro Nacional solicitar formalmente aos bancos que lhe enviem propostas para operações (RFP – Request for Proposal). Apesar de as RFPs funcionarem 35 No passado, o amparo legal era dado pela Resolução nº 96, de 1989, que foi posteriormente substituída pela Resolução nº 17, de 1992. 36 Em geral, a República concede mandato a duas instituições para atuar como DMs em cada operação. 37 Foram feitas quarenta emissões entre 2003 e 2008, conforme pode ser observado no Anexo Estatístico. 368 Dívida Pública: a experiência brasileira bem para emissores menos frequentes, o Tesouro Nacional prefere não adotar esse procedimento, que tende a gerar rumores sobre operações a serem realizadas e consequente deterioração nas condições financeiras para a República. As emissões externas seguem os padrões de mercado e são realizadas por meio de um processo de book building, e não por meio de um leilão, como ocorre no mercado doméstico. O processo de emissão externa pode ser dividido em três etapas. Na primeira, o emissor e os DMs definem a estratégia de execução, que consiste basicamente em identificar as prioridades, em termos de custo e volume de captação, e definir a estratégia para que esse objetivo seja atingido. Em geral, nas emissões da República o Tesouro Nacional anuncia ao mercado, por meio dos DMs, o intervalo de taxa (ou spread ou preço) e o volume a ser emitido.38 É importante ressaltar o caráter indicativo do anúncio, cujo objetivo é guiar as expectativas dos investidores em relação aos objetivos do emissor. Uma vez anunciada a operação, os investidores começam a apresentar suas propostas, contendo o volume e o nível de taxa (ou preço) pelos quais estariam dispostos a comprar o título. O processo de consolidação das propostas é denominado book building (livro), e, como resultado, explicita a curva de demanda. Esse processo é relativamente flexível, especialmente se comparado ao mecanismo de leilão tradicional. Após conhecer o tamanho e a qualidade do livro, obtém-se uma ideia mais clara da curva de demanda e inicia-se a segunda etapa do processo, na qual o emissor decide a taxa de emissão do título, que pode ser diferente daquela previamente anunciada. Os DMs então comunicam aos investidores as intenções do emis- sor em relação à taxa e estes ainda têm total liberdade para alterar ou até mesmo cancelar suas ordens de compra inicialmente colocadas. Definida a taxa, os investidores confirmam a demanda final, e o emissor decide o volume a ser emitido.39 Uma vez conhecidos a taxa e o volume, ocorre o lançamento do título (launching), quando as condições finais da operação são divulgadas ao mercado. Apesar do caráter indicativo do anúncio inicial e da flexibilidade do mecanismo de book building, é desejável que o resultado final não seja muito divergente das condições iniciais, para que o emissor mantenha sua credibilidade junto à base de investidores. Como a tomada de decisões dos investidores se baseia na sinalização inicial dada pelo emissor, divergências substanciais entre as condições finais e iniciais podem ser prejudiciais aos investidores e, em última instância, ao próprio emissor. A taxa indicativa inicial deve refletir a leitura de mercado, tanto do emissor quanto dos DMs, e uma disparidade grande entre a taxa indicativa e a taxa final sinaliza uma má leitura de mercado. A terceira etapa do processo é a alocação das ordens. Ao contrário do leilão, em que a alocação é dada implicitamente após a definição da taxa de corte, em um processo de book building o emissor e os DMs têm flexibilidade para alocar as ordens buscando uma combinação ótima entre investidores de longo prazo e provedores de liquidez. 4.2.2 Características dos compradores A base de investidores que participam das emissões é formada por diferentes tipos de agentes. Os fun- dos dedicados em geral adotam algum índice de mercados emergentes como benchmark,40 cuja composição deve, de alguma forma, ser replicada em sua carteira. Como esse tipo de investidor possui a característica de 38 A indicação de taxa pode ser feita por meio dos pontos extremos do intervalo ou simplesmente anunciando um ponto específico, que não necessariamente será a taxa final da operação. 39 Taxa e volume são variáveis interdependentes. Se o objetivo do emissor for captar determinado volume, a taxa passa a ser a variável dependente. Se a prioridade for obter financiamento a determinado custo, o volume passa a ser a variável dependente. 40 Há vários índices de mercados emergentes, dos quais o mais popular é o EMBI+, criado pelo banco JPMorgan. 369 carregar os ativos por um longo período, ele é popularmente conhecido como buy and hold ou real money. Já os hedge funds não têm o compromisso de seguir algum índice em particular e tentam identificar oportuni- dades de arbitragem no mercado. Esse tipo de investidor tem o comportamento menos estável que os fundos dedicados, mas representa um importante provedor de liquidez. Há ainda outros tipos de investidores de longo prazo, tais como fundos de pensão e companhias de seguros. Outro tipo de investidor com participação crescente nesse mercado é formado pelos private bankings, que são fundos de varejo especializados na administração de grandes riquezas. Os bancos comerciais e os bancos de investimentos também são participantes ativos nesse mercado, não apenas para gerar fluxos a seus clientes, mas também como investidores finais, por meio de suas mesas proprietárias. Assim como os hedge funds, as mesas proprietárias são consideradas, em geral, investidores de curto prazo. Por fim, vale destacar a participação crescente de bancos centrais, embora esta ainda seja proporcionalmente pequena. Há ainda outros tipos de investidores, tais como empresas corporativas, investidores de varejo e outros. A participação de investidores de longo prazo contribui para que o título tenha menor volatilidade no mercado secundário, favorecendo sua performance, enquanto a participação de investidores com perfil de curto prazo contribui para sua liquidez. Entretanto, como boa parcela dos investidores de curto prazo tendem a vender o papel logo após sua emissão para realizar o lucro decorrente do new issue premium, sua participação deve ser proporcionalmente menor.41 A Tabela 1 apresenta algumas características do livro da reabertura do Global 2037, ocorrida em janeiro de 2007. Outras estatísticas interessantes são a razão demanda/oferta e a alocação média, que indica o grau de pulverização da emissão. Tabela 1. Características da reabertura do Global 2037 41 O investidor que vende o título imediatamente após sua colocação é conhecido como flipper. 370 Dívida Pública: a experiência brasileira O desenvolvimento no mercado de capitais ocorrido nos últimos anos provocou mudanças na base de investidores. Como consequência, é cada vez mais difícil distinguir o perfil de cada investidor. Um fundo dedicado, por exemplo, pode ter parcela de seu portfólio alocada em fundo mais alavancado, assim como o contrário também pode ocorrer. Por isso, é desejável que o emissor se mantenha atualizado em relação aos constantes desenvolvimentos ocorridos na base de investidores. Ao longo dos últimos anos, a base de investidores disposta a adicionar exposição ao crédito da República Federativa do Brasil tem sido ampliada, em decorrência principalmente de dois fatores. Em primeiro lugar, à medida que os fundamentos da economia se tornavam mais sólidos e a classificação de risco se aproximava do grau de investimento, novos investidores tornaram-se aptos a adicionar exposição ao risco Brasil. O Brasil obteve o grau de investimento em abril de 2008. Em segundo lugar, ao longo dos últimos anos o Tesouro Nacional tem feito esforços no sentido de melhorar a comunicação com o mercado, tendo como objetivo final ampliar a base de investidores.42 Outro ponto que merece destaque é a mudança no mecanismo de execução das emissões, ocorrida a partir de 2006, cujo objetivo é ampliar a base de investidores na Ásia. Dada a diferença no fuso horário entre os mercados americano, europeu e asiático, a República tem anunciado as emissões na abertura do mercado de Nova Iorque, reservando-se o direito de reabrir o papel posteriormente, na abertura do mercado asiático, para um volume equivalente a no máximo 10% da emissão original. Essa estratégia tem tido sucesso, e a participação asiática no mercado primário tem crescido consistentemente. 5 Operações de gerenciamento de passivos (liability management – LM) As operações de gerenciamento de passivos representam ferramenta importante para os administradores da dívida na implementação de estratégias de financiamento. Comum e frequentes em países industrializados, essas operações vêm sendo crescentemente utilizadas por gestores de países emergentes à medida que seus mercados se desenvolvem e o grau de sofisticação e especialização dos gestores da dívida evolui. Por intermédio dessas operações, podem ser reduzidos riscos associados com vencimentos da dívida, acelerar o processo de melhoria da composição da dívida, corrigir distorções no mercado secundário e estimular a liquidez dos títulos públicos. O Brasil é um dos países emergentes a utilizar essas operações com regularidade, tanto no mercado doméstico quanto no internacional, para atender a finalidades descritas em maior destaque a seguir. 5.1 Mercado doméstico As operações de LM no mercado doméstico são realizadas com variados objetivos, tais como reduzir o risco de refinanciamento no curto prazo, promover o alongamento de prazo da dívida e contribuir para o desenvolvimento do mercado secundário. As operações são executadas por meio de leilões de troca e de resgate antecipado, cuja divulgação é feita previamente no cronograma mensal, juntamente com a divulgação dos leilões tradicionais de venda. Há três diferentes leilões de troca, de LTN, LFT e NTN-B. No leilão de troca de LTN, o Tesouro Nacional aceita o título de vencimento mais próximo, com prazo entre duas semanas e três meses, e na ponta de venda emite a LTN de seis e doze meses. Analogamente, no leilão de troca de LFT o Tesouro Nacional aceita o título com prazo mais curto, entre duas semanas e seis meses, e emite os papéis de quatro e seis anos.43 As operações 42 Ver Capítulo 1 da Parte 2 para maiores detalhes sobre os avanços na área de relacionamento com investidores. 43 Assim como ocorre nos leilões de venda, no caso da LFT o leilão de troca é do tipo “híbrido” e de preço uniforme. Veja explicação sobre esse tipo de leilão na seção 4.1.1. 371 ocorrem no Selic, com liquidação em d+2. As trocas de LTN ocorrem duas vezes ao mês, enquanto as de LFT são mensais. Em ambos os leilões, realizados uma vez por mês, o Tesouro Nacional fixa o preço do título que está recomprando, enquanto os preços dos títulos emitidos são determinados de maneira competitiva. O objetivo dessas operações é claramente a redução do risco de refinanciamento no curto prazo. Outra operação de gerenciamento de passivo é a troca de NTN-B, cujos objetivos são o alongamento da dívida pública e o fomento da liquidez dos títulos considerados on the run. O Tesouro Nacional aceita, na ponta de compra, uma série de ativos, tais como LFT, NTN-C, CFT, TDA, NTN-A e créditos securitizados, além da própria NTN-B.44 A grande restrição imposta pelo Tesouro Nacional é que o ativo aceito tenha duration 45 inferior à NTN-B que está sendo emitida na ponta de venda. Ao contrário do que ocorre nas trocas de LTN e LFT, no caso da NTN-B o Tesouro Nacional fixa os preços dos ativos que estão sendo emitidos e os detentores colocam na proposta o preço do ativo que está sendo entregue. Os leilões ocorrem duas vezes por mês, sempre um dia após o leilão tradicional de venda, e têm como referência de preços parâmetros de mercado. A liquidação é realizada em d+1, por meio da Câmara de Custódia e Liquidação (CETIP).46 Por fim, ocorrem dois tipos de leilões de recompra ou resgate antecipado, de LTN de curto prazo (duas semanas a três meses) e de NTN-B de longo prazo (vinte, trinta e quarenta anos). O objetivo do primeiro é a redução do risco de refinanciamento no curto prazo, enquanto o segundo tem como objetivo fomentar a liquidez na parte longa da curva. Ambos ocorrem uma vez por mês (e, ao contrário dos leilões de troca), sendo os leilões de recompra de NTN-B restritos aos dealers. A Tabela 2 ilustra a representatividade dessas operações na gestão da dívida pública brasileira. Nota-se que por intermédio dessas operações foi possível acelerar o processo de trocas de títulos indexados à Selic (LFT), especialmente por NTN-B, ampliar o prazo médio da dívida nas operações de troca de títulos mais curtos por outros mais longos e reduzir o risco de refinanciamento nos leilões de resgate antecipado. Tabela 2. Operações de gerenciamento de passivo no mercado doméstico 1 Corresponde somente ao total de operações de troca que afetam prazo médio e composição da DPMFi. 2 Realizadas com o objetivo de redução do risco de refinanciamento e melhoria da liquidez do título no mercado secundário. Fonte: Tesouro Nacional 44 Como os cupons da NTN-B são destacáveis, também fazem parte do rol de ativos elegíveis os cupons e o principal da própria NTN-B. 45 Para o conceito de duration, ver Capítulo 3 da Parte 2. 46 Para maiores detalhes sobre a Cetip e outras centrais de custódia e liquidação, ver Capítulo 3 da Parte 3. 372 Dívida Pública: a experiência brasileira 5.2 Mercado externo À semelhança das operações de LM no mercado doméstico, essas operações no mercado externo podem ter objetivos diversos, tais como a redução no risco de refinanciamento em determinado ponto da curva, a obtenção de ganhos líquidos a valor presente (NPV savings) ou simplesmente o aumento de eficiência na curva de rendimentos. Há vários tipos de operações possíveis, tais como trocas, recompras puras e recompras em conjunto com novas emissões. As operações podem ainda ser públicas ou privadas, com frequência mais irregular do que no mercado doméstico, dadas as características peculiares de acesso e a competitividade com outros emissores de grau de risco semelhante no mercado externo.47 Oportunidades de se obter ganhos de NPV ocorrem quando os títulos retirados do mercado possuem taxa de rendimento acima da curva considerada justa. O Gráfico 3 ilustra uma situação em que há oportunidades claras de se obter ganhos de NPV. O emissor pode estruturar uma operação em que os títulos A e B são recomprados e os títulos C e D são emitidos, seja por meio de trocas diretas seja de operações independentes. Como resultado, o emissor obterá financiamento a um custo menor, monetizando assim ganhos líquidos a valor presente.48 As operações de LM realizadas pela República ao longo das últimas duas décadas podem ser divididas em três grupos. A primeira operação foi justamente a reestruturação da dívida externa, finalizada em 1994 no âmbito do Plano Brady. Para efeitos práticos, o processo de renegociação pode ser denominado de operações de LM de primeira geração, na qual toda a dívida externa previamente existente foi reestruturada em nove títulos, conforme apresentado na Tabela 3. Gráfico 3. Oportunidades de obtenção de NPV Fonte: Tesouro Nacional Os títulos emitidos após 1994 fazem parte da chamada dívida soberana, em contraste com a dívida reestruturada. Como os títulos tipo Brady49 possuíam o estigma de ser fruto de um processo de renegociação, sua taxa em geral encontrava-se acima da curva justa, da qual faziam parte apenas os títulos soberanos. Havia, 47 Ver nota de rodapé nº 3. 48 Cabe ressaltar que, em geral, há uma diferença de duration entre os títulos envolvidos em cada perna da operação e, portanto, poderá haver mudanças na estrutura de risco do emissor. 49 Dos nove títulos oriundos do processo de reestruturação, dois foram emitidos antes de 1994, quando ocorreu o Plano Brady. Entretanto, para efeitos de simplificação, referimo-nos a todos os nove títulos como tipo Brady. 373 portanto, uma situação como a descrita no Gráfico 3, em que os títulos A e B seriam tipo Brady, enquanto os demais seriam títulos soberanos. As operações de LM de segunda geração foram realizadas com o intuito de trocar títulos oriundos do processo de renegociação por títulos soberanos. O objetivo primário desse tipo de operação era a obtenção de NPV, e o objetivo secundário era justamente aumentar a composição de dívida soberana, que não possuía o estigma relacionado ao default ocorrido na década de 1980. Por meio de operações de LM de segunda geração, foram emitidos os títulos globais com vencimento em 2011, 2018, 2024, 2027, 2030 e 2040. Por fim, foi realizado o exercício da opção de compra de todos os títulos tipo Brady remanescentes em 2005.50 Uma vez eliminadas as distorções na curva causadas pelos títulos oriundos do processo de reestrutu- ração, o foco passou a ser a redução do risco de refinanciamento – considerado elevado em alguns anos – e o aumento da eficiência da própria curva. Nesse contexto foram realizadas as operações de LM de terceira geração, da qual fazem parte uma oferta pública de troca de títulos na parte longa da curva pelo Global 2037 e, finalmente, o Programa de Recompras, no qual o Tesouro Nacional executa transações típicas de mercado secundário. A redução na liquidez de pontos considerados distorcidos, em conjunto com o aumento da liquidez dos benchmarks, produz como resultado final uma curva de rentimentos mais eficiente. Tabela 3. Operações de LM no mercado externo Geração Títulos emitidos/operações realizadas Objetivos Primeira geração BIB, IDU e os Brady Bonds Brasileiros: Discount Bond, Par Reestruração da dívida externa Bond, Front-Loaded Interest Bond (FLIRB), Front-Loaded Interest Reduction with Capitalization Bond (Cbond), Debt Conversion Bond, New Money Bond, Eligible Bond (EI) Segunda geração Globais 2011, 2018, 2024, 2027, 2030 e 2040 Obtenção de NPV e aumento da Exercício da call dos títulos tipo Brady composição de dívida soberana Aumento da eficiência da curva Terceira geração Tender Offer Exchange Offer Programa de Recompras O programa de recompras vem proporcionando impacto significativo na estrutura de vencimentos da dívida externa brasileira. Desde 2006, as recompras alcançaram US$ 15,5 bilhões em valor financeiro (US$ 12,5 bilhões em valor de face), o que significou a retirada do mercado de cerca de 24,0% do es- toque total dos títulos globais, 6,96% dos Bradies, 13,46% dos euros, 12,78% dos samurais e 6,53% do eurolibra, sendo esses percentuais de retirada calculados sobre o estoque do final de dezembro de 2005. Conforme ilustrado no Gráfico 4, a redução do fluxo de juros a serem pagos até 2040, efeito do Programa de Resgate Antecipado, atingiu US$ 13,8 bilhões em valores correntes. Com o resgate antecipado dos títulos, reduz-se a volatilidade no serviço da DPF, diminuindo os riscos de refinanciamento. 50 Os títulos tipo Brady possuíam uma opção de compra ao par, a ser exercida pelo emissor em qualquer data de pagamento de cupom. 374 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 4. Redução do fluxo de pagamentos da DPFe decorrente do Programa de Resgate Antecipado Fonte: Tesouro Nacional A Tabela 4 complementa a análise sobre os efeitos das operações de LM de terceira geração ao incluir os volumes de tender offers e do exercício da call do C-Bond e posteriormente de outros Brady Bonds. Ao todo, essas operações alcançaram montante de US$ 21,5 billhões em valor de face.51 Vale mencionar que antes do exercício da call do C-Bond, houve a troca desse título pelo A-Bond, que é um título Global, sem opção de compra, com estrutura de vencimentos semelhante, mas deslocada no tempo em relação à do C-Bond, e contando também com Cláusulas de Ação Coletiva (CACs). A troca, anunciada em julho de 2005 e realizada em agosto do mesmo ano, retirou de mercado US$ 4,5 bilhões, equivalente a cerca de 80% do estoque do C-Bond. O restante, US$ 1,1 bilhão, foi resgatado em sua totalidade em outubro, com o exercício da opção de recompra (call) prevista neles. As principais vantagens alcançadas pela troca foram: a redução dos pagamentos de principal no curto prazo, com o consequente alongamento do prazo da dívida mobiliária externa; a redução do estoque de Brady Bonds, cujos preços são tipicamente piores do que o de títulos globais de prazo médio equivalente, o que distorcia a curva de rendimentos soberana; e o baixo custo da operação, visto que a troca não exigiu desembolso pelo Tesouro. Tabela 4. Operações de LM no mercado externo – terceira geração Operações Valor de face1 Dívida mobiliária externa 21,4 Call do C-Bond (out.-05) 1,1 Call dos Brady Bonds (abr.-06) 6,5 Tender offer (jun.-06) 1,3 Programa de Resgate Antecipado2 12,5 2006 6,0 2007 5,4 2008 1,2 1 Captura o impacto das operações no estoque da dívida. 2 O programa começou em jan.06. Fonte: Tesouro Nacional 51 Além dessas operações de passivo, o governo pagou antecipadamente dívidas contratuais com o FMI e com o Clube de Paris no valor de US$ 22.1 bilhões, reduzindo ainda mais significativamente a exposição da dívida pública a variações cambiais. 375 Referências BANCO CENTRAL. Nota para Imprensa Mercado Aberto. KRISHNA, V. Auction theory. USA, Academic Press, 2002. MINISTÉRIO DA FAZENDA. SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Plano Anual de Financiamento (vários anos). ______. Relatório Anual da Dívida Pública (vários anos). RODRIGUES, L. A.; BUGARIAN, M. S. Uma análise dos leilões híbridos do Tesouro Nacional. Finanças públi- cas. VIII Prêmio Tesouro Nacional. Brasília: Esaf, 2003. Monografia Premiada em 3º lugar no tema Ajuste Fiscal e Dívida Pública. SILVA, A. C; DIEGUEZ, A.; CARVALHO, L. Analysis of Brazilian Treasury Auctions: comparison of fixed and floating rate instruments. Lacea, 2003. WORLD BANK; IMF. Developing government bond market: a handbook. Washington, DC: World Bank: IMF, 2001. WORLD BANK. Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementa- tion. Washington, DC: World Bank, 2007. 376 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo 1. Cronograma de leilões de títulos – março/2008 O Tesouro Nacional informa a programação da administração da dívida pública mobiliária federal interna referente ao mês de março de 2008. Leilão Liquidação Tipo Título* Vencimento 03 - 2ª feira 05 - 4ª feira Leilão de troca LTN 1/10/2008; 1/4/20091 LFT 7/3/2012; 7/3/20142 LTN 1/4/2009; 1/7/2010 06 - 5ª feira 07 - 6ª feira Leilão tradicional NTN-F 1/1/2012; 1/1/2014 15/5/2011; 15/5/2013; 11 - 3ª feira 12 - 4ª feira Leilão tradicional NTN-B 15/5/2017; 15/8/2024; 15/5/2035; 15/5/2045 15/5/2011; 15/5/2013; Leilão de troca NTN-B 15/5/2017; 15/8/2024; 15/5/2035; 13 - 5ª feira 15/5/2045 12 - 4ª feira Resgate 15/8/2024; antecipado NTN-B 15/5/2035; 15/5/2045 Resgate 14 - 6ª feira LTN 1/4/2008 antecipado LTN 1/10/2008; 1/7/2010 13 - 5ª feira 14 - 6ª feira Leilão tradicional NTN-F 1/1/2012; 1/1/2017 18 - 3ª feira 20 - 5ª feira Leilão de troca LTN 1/10/2008; 1/4/20091 LTN 1/4/2009; 1/7/2010 19 - 4ª feira 20 - 5ª feira Leilão tradicional LFT 7/3/2012; 7/3/2014 NTN-F 1/1/2012; 1/1/2014 15/05/2011; 15/5/2013; 25 - 3ª feira 26 - 4ª feira Leilão tradicional NTN-B 15/5/2017 26 - 4ª feira 27 - 5ª feira Leilão de troca NTN-B 15/05/2011; 15/5/2013; 15/5/2017 27 - 5ª feira 28 - 6ª feira LTN 1/10/2008; 1/7/2010; Leilão tradicional NTN-F 1/1/2012; 1/1/2017 *Letras Financeiras do Tesouro (LFT); Letras do Tesouro Nacional (LTN); Notas do Tesouro Nacional – Série B (NTN-B); Notas do Tesouro Nacional – Série F (NTN-F). ¹ Com a venda pelas instituições financeiras da LTN com vencimento em 01/04/2008. ² Com a venda pelas instituições financeiras das LFTs com vencimentos até 30/06/2008. 377 No mês em referência, estão previstos vencimentos de títulos de responsabilidade do Tesouro Nacional no montante de R$ 31,9 bilhões, sendo R$ 31,4 bilhões de títulos com rentabilidade definida pela taxa Selic, dentre outros. A oferta total dos títulos públicos para os leilões tradicionais, com liquidação ao longo do referido mês, estará limitada a R$ 38,0 bilhões. Cabe observar que os valores referentes aos resgates antecipados poderão ser acrescidos ao volume da oferta total de títulos públicos mencionados anteriormente. O Tesouro Nacional informa também que poderá realizar resgate antecipado de Cupom de Juros de NTN-B caso haja manifestação de interesse por parte das instituições financeiras. Este cronograma está sujeito a modificações de acordo com as condições de mercado. Brasília, 29 de fevereiro de 2008. 378 Dívida Pública: a experiência brasileira Anexo 2. Portaria MINISTÉRIO DA FAZENDA SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL PORTARIA N° 162, DE 27 DE MARÇO DE 2008 O SECRETÁRIO-ADJUNTO DO TESOURO NACIONAL, no uso das atribuições que lhe conferem a Portaria MF nº 183, de 31 de julho de 2003, e a Portaria STN nº 143, de 12 de março de 2004, e tendo em vista as condições gerais de oferta de títulos públicos previstas na Portaria STN n° 410, de 04 de agosto de 2003, resolve: Art. 1º Tornar públicas as condições específicas a serem observadas na oferta pública de Letras do Tesouro Nacional - LTN, cujas características estão definidas no Decreto n° 3.859, de 04 de julho de 2001: I - data do acolhimento das propostas e do leilão: 27.03.2008; II - horário para acolhimento das propostas: de 12h às 13h; III - divulgação do resultado do leilão: na data do leilão, a partir das 14h30, por intermédio do Banco Central do Brasil; IV - data da emissão: 28.03.2008; V - data da liquidação financeira: 28.03.2008; VI - critério de seleção das propostas: melhor preço para o Tesouro Nacional; VII - sistema eletrônico a ser utilizado: exclusivamente o sistema Oferta Pública Formal Eletrônica (OFPUB), nos termos do Regulamento do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC); VIII - quantidade máxima de propostas por instituição: 5 (cinco) para cada um dos títulos ofertados; e IX - características da emissão: Prazo Quantidade Valor Nominal Data do Título Adquirente (dias) (em mil) (em R$) Vencimento LTN 187 1.000 1.000,000000 01.10.2008 Público LTN 825 2.000 1.000,000000 01.07.2010 Público Art. 2º Na formulação das propostas deverá ser utilizado preço unitário com seis casas decimais, devendo o montante de cada proposta contemplar quantidades múltiplas de cinqüenta títulos. Art. 3º As instituições credenciadas a operar com o DEMAB/BCB e com a CODIP/STN, nos termos da Decisão Conjunta nº 14, de 20 de março de 2003, poderão realizar operação especial, definida pelo art. 1º, inciso I, do Ato Normativo Conjunto nº 15, de 14 de janeiro de 2008, que consistirá na aquisição de LTN com as características apresentadas abaixo, pelo preço médio apurado na oferta pública de que trata o art. 1º desta Portaria: I - data da operação especial: 27.03.2008; II - horário para acolhimento das propostas: de 15h às 15h30; III - divulgação da quantidade total vendida: na data do leilão, a partir das 16h, por intermédio do Banco Central do Brasil; IV - data da liquidação financeira: 28.03.2008; e V - características da emissão: Quantidade Valor Nominal Data do Título Prazo (dias) (em mil) (em R$) Vencimento LTN 187 150 1.000,000000 01.10.2008 LTN 825 300 1.000,000000 01.07.2010 Parágrafo único. Somente será realizada a operação especial prevista neste artigo, se a totalidade do volume ofertado ao público, nos termos do art. 1º desta Portaria, for vendida. Art. 4º A quantidade de títulos a ser ofertada na operação especial a que se refere o art. 3º será alocada em conformidade com o disposto no art. 4º do mencionado Ato Normativo: I - 50% (cinqüenta por cento) às instituições denominadas "dealers" primários; e II - 50% (cinqüenta por cento) às instituições denominadas "dealers" especialistas. Parágrafo único. Dos títulos destinados a cada grupo, a quantidade máxima que poderá ser adquirida por cada instituição observará os critérios estabelecidos no art. 4º, § 1º, do mencionado Ato Normativo, e será informada à instituição por meio do Sistema OFPUB. Art. 5º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. PAULO FONTOURA VALLE 379 Anexo 3. Modalidades de leilões de títulos públicos Existem duas modalidades principais de leilões de títulos públicos:52 leilões discriminatórios ou de preços múltiplos; e leilões de preço uniforme ou de preço único.53 No leilão discriminatório, os lances são classificados em ordem descendente de preços, sendo diversas unidades vendidas aos preços mais elevados até que a quantidade ofertada seja exaurida, enquanto no leilão uniforme os lances mais altos serão aceitos a um preço uniforme, correspondente ao preço apresentado pela mais alta proposta rejeitada ou última proposta aceita. Além dos modelos de venda mencionados, existem os leilões de compra que podem ser de preço dis- criminatório ou uniforme. No mercado externo, os leilões de compra de preço discriminatório são usualmente conhecidos como holandês reverso, e os de preço uniforme, como holandês reverso modificado. Leilões holandeses reversos são tipos específicos que visam a lidar com os casos em que há um com- prador, que tem um número de itens que deseja comprar, e mais de um vendedor. O comprador pode estipular o preço máximo e o número exato de ativos que deseja comprar àquele preço. Os vendedores, por sua vez, oferecem um preço igual ou inferior ao preço máximo estipulado para o número de ativos que desejam vender. Ao final do leilão, a menor proposta do vendedor é a vencedora, e o comprador obtém os ativos desejados pelo melhor preço. Nos leilões reversos modificados, os demandantes fazem suas propostas aos emissores, e estas variam tanto em volume quanto em preço. Todos os demandantes beneficiados na operação irão levar o ativo leiloado a um preço único para todos, que corresponde ao menor preço ou, da mesma forma, a maior yield. A literatura de leilões fornece ainda um tipo adicional de classificação segundo as avaliações feitas pelos licitantes dos objetos à venda, distinguindo-se entre leilões de “valor privado” e “valor comum”. Nos leilões de valor privado, a avaliação dada por cada licitante aos itens é subjetiva e independente das avaliações dos outros licitantes. Nos leilões de valor comum, cada licitante mensura o valor dos bens leiloados utilizando o mesmo valor objetivo. Se os licitantes adquirem um bem com o objetivo de revenda e não para consumo pessoal, a suposição do valor comum torna-se bem razoável. Esse tipo de classificação é importante para a determinação do modelo ótimo de leilão. Os leilões de títulos públicos são geralmente usados como exemplos de leilões de valor comum, visto que o valor para cada licitante é comum, e o preço de revenda será o valor cotado no mercado secundário de títulos públicos, que não é conhecido no momento do leilão. No entanto, há alguns estudos que consideram a existência de 52 Essas modalidades são tipicamente tratadas como semelhantes aos modelos de 1º preço e 2º preço nos leilões de objeto úni- co, respectivamente. Essa analogia acaba por influenciar o debate sobre o mecanismo ótimo de emissões de títulos públicos. No caso do leilão discriminatório, a semelhança ao leilão de 1º preço é observada, pois os compradores pagam seu próprio preço. Em relação ao leilão uniforme, este é visto como análogo ao leilão de 2º preço, uma vez que os compradores acabam pagando o preço equivalente à primeira proposta perdedora. Essa proposta, por sua vez, pode ter sido uma das apresentadas pelos pró- prios ganhadores, já que cada participante em leilões de bens múltiplos geralmente apresenta mais de uma proposta. Cabe ressaltar, contudo, que a analogia entre os leilões de 2º preço e uniforme não é correta, uma vez que os participantes nos leilões uniformes ensejam comportamentos estrategicamente diferenciados daqueles apresentados pelos participantes dos lei- lões de 2º preço. Conceitualmente, são os leilões de Vickrey que, de fato, são análogos aos de 2º preço, pois nesse tipo de leilão um participante que ganha certa quantidade do bem paga a mais alta proposta perdedora de outro participante, excluindo sua própria proposta. Na prática, por ser um leilão bastante complexo, o leilão de Vickrey não é utilizado. Para maiores detalhes, ver Krishna (2002). 53 Também conhecido, pelos operadores de mercado, como leilão holandês, e no mercado externo, como leilão holan- dês modificado. 380 Dívida Pública: a experiência brasileira componentes privados na avaliação dos licitantes (por exemplo, demandas compulsórias dos investidores ou exigências de participação mínima de dealers primários), o que leva a estratégias diferenciadas quando se consideram diversos tipos de investidores. Nesse sentido, há controvérsias quanto ao fato de os títulos públicos serem puramente de valor comum para todos os licitantes. No leilão de valor comum, há o risco da maldição (praga) do vencedor ou winner’s curse. Os licitantes possuem o mesmo valor para o objeto em questão, porém só irão tomar conhecimento do verdadeiro valor após o término do leilão. Dessa forma, cada participante tem uma estimativa do valor do objeto e o vencedor geralmente é aquele que estimou um valor maior para o objeto em relação aos demais licitantes. Se um com- prador ganha o leilão colocando a maior proposta, pode estar dando um valor maior que o preço de revenda do título, o que pode gerar perdas no mercado pós-leilão. 381 382 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 5 A base de investidores da Dívida Pública Federal no Brasil1 Jeferson Luis Bittencourt 1 Introdução O tema dos detentores da dívida pública é internacionalmente analisado porque a base de investidores, em termos de sua amplitude e diversificação, é um fator decisivo na gestão dessa dívida, em função da sua capacidade de distribuir os riscos inerentes ao financiamento via emissão de títulos. Como destaca o Banco Mundial (2001; 2007), promover uma base de investidores diversificada, em termos de horizontes de investi- mento, preferências ao risco e motivações para comercialização dos ativos, é vital para estimular os negócios e a alta liquidez dos títulos públicos. Além disso, é fundamental também para viabilizar o financiamento dos governos em diferentes cenários econômicos. Mesmo um mercado líquido pode perder liquidez se, em um curto espaço de tempo, houver uma entrada ou saída de um grupo de investidores com preferências semelhantes. Por isso, é fundamental uma base de investidores diversificada para fornecer equilíbrio ao mercado. A amplitude e a composição da base de investi- dores, no entanto, estão associadas a características estruturais da economia do país, como o desenvolvimento e a sofisticação do mercado financeiro, o que torna mais complexo o alcance dessa heterogeneidade. Com um sistema financeiro ainda fundamentado na atividade bancária, a gestão da dívida pública no Brasil tem buscado, ao longo dos últimos anos, ampliar e diversificar sua base de investidores, bem como aprimorar cada vez mais sua relação com cada um dos grupos detentores de seus títulos. Recentemente, o amadurecimento do mercado de capitais no Brasil – tendo como pano de fundo o momento então vivido de liquidez internacional e o fortalecimento dos fundamentos da economia brasileira – contribuiu para uma expansão da presença de outros agentes na dívida pública. Esses fatores, juntamente com algumas medidas de caráter microeconômico, fizeram com que, paralelamente à expansão da base, se passasse a verificar in- vestidores (principalmente institucionais) mais ativos na gestão dos seus recursos. A diversificação na tomada de decisão sobre as aplicações em títulos públicos, no entanto, não se tem dado na mesma velocidade da diversificação dos seus detentores finais. Este capítulo tem por objetivo dar uma visão geral dos aspectos referentes à base de investidores em títulos públicos no Brasil, da gestão da Dívida Pública Federal nesse campo e de suas principais tendências. Primeiramente, serão identificadas a composição da base de investidores e o perfil dos agentes em termos de suas preferências por títulos. Na terceira seção, buscar-se-á apresentar como esse tema entrou definitivamente no planejamento estratégico da dívida e como, no seu gerenciamento, o trabalho na base de investidores tem sido conduzido. Também serão mostradas as principais medidas implantadas e as práticas adotadas. Antes 1 O autor agradece as considerações do organizador, Anderson Silva, e do revisor do capítulo, André Proite, e as contribuições na organização dos dados e os comentários da equipe da Gerência de Relacionamento Institucional da Dívida Pública e da Gerência de Estratégia e Novos Produtos da Dívida Pública, os quais, obviamente, o autor exime de responsabilidade sobre qualquer impro- priedade remanescente. 383 das conclusões, na quarta seção, serão apresentados as tendências e os desafios nessa atuação, com foco nos principais detentores da dívida. 2 Composição da Dívida Pública Federal2 por detentores Um traço bastante recorrente entre os países da América Latina é a forte presença dos bancos na inter- mediação financeira. No Brasil, esse fenômeno não influencia somente a discussão sobre a organização do mercado de capitais, mas também está no cerne do debate sobre a dívida pública, principalmente no que tange à sua parcela doméstica. Sabe-se que, no caso brasileiro, o nível de desenvolvimento econômico,3 o histórico de alta inflação e a indexação foram determinantes para a “bancarização” do sistema financeiro. No entanto, não é o objetivo aqui explorar suas causas. No contexto deste capítulo, a relevância da questão bancária está na sua importância para a concentração das decisões de aplicação em títulos da dívida pública. Em dezembro de 2008, a carteira própria dos bancos (tesourarias) ainda detinha quase 30% do total de títulos da DPMFi em poder do público, apesar de esse percentual encontrar-se perto de seu menor nível histórico. Essa participação das tesourarias não chega a ser discrepante em relação a outros países. Segundo Novaes (2005), em 2003, os bancos domésticos detinham 33% do total da dívida mobiliária na Polônia, e na Tailândia essa parcela era de 31,2% (incluindo bancos comerciais e o Banco de Poupança do Governo). Já no México, esse percentual era de 36,9% no mesmo ano (LÓPEZ, 2006). Há de se considerar, porém, que essas participações são calculadas sobre a dívida que inclui o percentual detido pelo Banco Central dos países, diferentemente do referido anteriormente para o Brasil, e que consta no gráfico a seguir. Se forem considerados os títulos na carteira do Banco Central no total dívida, em dezembro de 2003 a participação da carteira própria dos bancos no Brasil era 24,1%, e em dezembro de 2008 esse percentual cai para 20,3%. Dimensionar a importância do sistema bancário somente por esse percentual não demonstra, todavia, a complexidade da questão. Entendidos como conglomerados financeiros, os bancos, além das tesourarias, incluem corretoras, gestoras de ativos, seguradoras e administradoras de planos de previdência, dentre outras instituições, e, desse ponto de vista, pode-se dizer que estão por trás das decisões de investimento de uma parcela muito maior da dívida. Se a participação dos bancos, como detentores finais, não supera a verificada em outros países, somando-se a esse percentual a participação dos fundos de investimento (FI), também historicamente elevada, em que os gestores de ativos de bancos respondem pela principal parcela, fica claro que, ainda hoje, os conglomerados financeiros detêm uma posição estratégica nas decisões sobre demanda por títulos públicos, como podemos observar no Gráfico 1. 2 Embora a nomenclatura Dívida Pública Federal (DPF) seja empregada ao longo deste capítulo, em verdade as estatísticas apresen- tadas e as análises restringir-se-ão à Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), sua parcela mais representativa (90% do seu estoque em poder do público). Nesse sentido, não serão analisadas neste capítulo as características dos detentores da Dívida Pública Federal externa, que representa aproximadamente 10% da DPF. Essa dívida é composta por títulos emitidos no mercado externo (aproximadamente 76%) e dívida contratual externa (basicamente dívida com o Banco Mundial e com o BID). 3 Apesar de países desenvolvidos, como Japão e Alemanha, terem seus sistemas financeiros baseados na atividade bancária, não raro essa característica aparece associada a países menos desenvolvidos. Como os bancos têm a capacidade de captar os recursos do público, identificar bons projetos, administrar riscos e monitorar a gestão das empresas, seu papel cresce em importância em sistemas jurídicos e contábeis não suficientemente elaborados, típicos de economias não desenvolvidas (NOVAES, 2005). 384 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 1. Detentores da DPMFi em mercado – jun./2001 a dez./20084 39,5% 10,6% 17,7% 28,4% Fonte: Banco Central do Brasil Obs.: *Inclui as categorias patrimônio, câmaras e clientes: pessoa física, pessoa jurídica financeira, outros fundos. O gráfico anterior, oriundo do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal5 (RMD), apresenta uma visão da base de investidores mais voltada para o registro (custódia) do que para o detentor final, ou seja, aquele que se beneficia dos ganhos da aplicação. Exemplo disso são os títulos vinculados,6 uma categoria que representava 17,7% da DPMFi em dezembro de 2008, que são ativos cuja detenção final está associada, normalmente, à carteira própria ou a outra pessoa jurídica, mas que estão sendo usados como garantia. Cada uma dessas categorias será definida detalhadamente adiante. Outro segmento importante, cuja participação na dívida veio a crescer apenas mais recentemente, são as pessoas jurídicas não financeiras (PJNF). Na sua grande maioria, nesta categoria estão títulos públicos em carteiras administradas por fundos de pensão, seguradoras e empresas comerciais ou industriais. Vale destacar que uma parte importante do seu crescimento, de 5,3% em fevereiro de 2006 para 10,6% em dezembro de 2008, decorreu do advento da Conta Investimento, que permitiu a essas instituições, constituindo uma carteira em seu próprio nome, serem isentas de CPMF,7 o que antes elas só obtinham em fundos exclusivos. Na realidade, a criação dos fundos exclusivos já havia sido uma maneira de eliminar a incidência da CPMF sobre alguns grandes cotistas, já que o fundo de investimento em si já era isento do referido tributo na mo- vimentação dos ativos em sua carteira. Assim, fatores tributários foram cruciais para o sucesso da indústria de fundos no Brasil. Por um lado, era uma aplicação em que o investidor estava isento da CPMF em caso de mudança na composição dos ativos, 4 A diferença entre a soma das participações no gráfico e o total dos títulos da DPMFi em poder do público é dada pelos títulos re- cebidos pelo Banco Central como garantias, no âmbito do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) (basicamente NTN-A3). 5 Para maiores detalhes, ver Anexo 5.1 do referido relatório. Ver também Anexo 1 deste capítulo. 6 Títulos vinculados a depósito compulsório sobre poupança e sobre depósitos a prazo, reserva técnica, aumento de capital, recur- sos externos, empréstimos de liquidez, caução, depósitos judiciais e câmaras. 7 Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Sobre a Conta Investimento, ver subseção 4.2 do Capítulo 6 da Parte 3. 385 por outro, a concorrência entre os fundos de investimentos era inibida, já que a migração de um fundo para outro implicava o pagamento do tributo. Esses fatores contribuíram para que a participação desse segmento na dívida pública não fosse afetada consistentemente, nem mesmo na crise da marcação a mercado em 2002.8 O gráfico anterior mostra que, no auge da crise, os fundos de investimentos detinham mais de 30% dos títulos domésticos do governo, tendo alcançado sua maior participação em abril de 2006 – 50,5% da DPMFi. Franco (2006) oferece uma explicação adicional para a origem dessa elevada participação dos fundos de investimentos na dívida pública. Segundo o autor, [...] a instabilidade macroeconômica, os planos econômicos e a experiência de tratamento “descasado” de ativos e passivos no contexto do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) criaram muitas tensões nos bancos intermediários e distribuidores de LFT e outros títulos com garantia de financiamento no overnight. Tendo em vista a conveniên- cia sistêmica de retirar esses riscos dos balanços dos bancos, floresceu uma pujante indústria de fundos mútuos apartados dessas instituições, mas ao mesmo tempo preponderantemente patrocinados por elas, com o objetivo de carregar dívida pública, fragmentar a tarefa em fundos individuais, tal qual depósitos à vista remunerados, pois têm liquidez diária na cota, e retirar o risco de crédito ou de preço do intermediário (banco ou gestor), entregando-o integralmente aos cotistas de tais fundos. Por fim, no gráfico sob análise, b aseado na classificação dos investidores muito mais pelo registro dos títulos do que pelos detentores finais, ainda é apresentada a participação da categoria “outros”, que inclui patrimônio, câmaras e clientes (pessoa física, pessoa jurídica financeira e outros fundos). Nessa categoria, vale ressaltar a categoria “cliente/pessoa física”, que representa cerca de 0,42% da dívida em poder do público, referente aos títulos adquiridos no mercado secundário e por intermédio do Programa Tesouro Direto (o qual representa pouco mais de 0,1% do total da dívida). Já a categoria “cliente/pessoa jurídica financeira”, que abrange instituições financeiras sem conta individualizada no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), chegou a representar 1,14% da dívida em agosto de 2002, e, após reduzir-se paulatinamente, voltou a subir graças à presença de instituições financeiras estrangeiras, representando, em dezembro de 2008, 2,63% do estoque da DPMFi em poder do público. 2.1 Principais grupos de investidores da dívida pública Em função da sua relevância na Dívida Pública Federal, cabe um detalhamento maior de alguns dos principais segmentos da base de investidores. Há de se ressalvar que os dados a seguir já se aproximam do que seriam os detentores finais, não só por desagregar as categorias, mas por considerar os “títulos vinculados” propriedade das diferentes instituições. No que tange à carteira própria, a distribuição apresentada no Gráfico 2 evidencia a força do varejo e dos bancos nacionais. As instituições de varejo representam 95% do segmento, e as nacionais representam mais de 80%. Considerando a parcela de títulos vinculados, as instituições nacionais alcançam 84% do seg- mento e 37,2% da DPMFi em poder do público. 8 Em 31 de maio de 2002, o Banco Central (BC), em decisão conjunta com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), instruiu os fundos de investimento no país a apreçarem os ativos financeiros em carteira ao valor de mercado a partir do dia 1º de junho daquele ano. Embora essa tenha sido uma medida legítima do ponto de vista financeiro, principalmente com vistas a proteger o aplicador de perdas potencialmente maiores, o evento que ficou conhecido como “episódio da marcação a mercado” teve várias implicações sobre a dinâmica da dívida pública e sobre a indústria de fundos de investimento nos meses subsequentes. 386 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 2. Composição dos grandes grupos de detentores da DPMFi carteira própria – dez./08 Fonte: Banco Central do Brasil Reforçando essa constatação, segundo dados do Banco Central, em dezembro de 2008, dos cinquenta maiores bancos atuando no Brasil, apenas vinte possuíam controle estrangeiro. Entre as dez maiores instituições do sistema financeiro nacional em termos de ativos totais, apresentadas na Tabela 1, apenas três tinham controle estrangeiro. Tabela 1. Maiores instituições do sistema financeiro nacional (SFN), em ativos totais (R$ bilhões) – dez./20089 Instituição Ativos totais % do SFN Itaú 631,33 19,1% BB 507,35 15,4% Bradesco 397,34 12,0% Santander 344,68 10,4% CEF 295,92 9,0% HSBC 112,10 3,4% Votorantim 75,08 2,3% Safra 66,53 2,0% Nossa Caixa 54,28 1,6% Citibank 40,48 1,2% Subtotal 2.525,09 75,2% BNDES 272,09 8,2% Total 2.797,19 83,4% Fonte: Banco Central do Brasil 9 Apesar de ter-se mostrado mais resistente que em outros países, como é comum nos episódios de crise internacional, o sistema bancário brasileiro tem passado por um processo de concentração. No segundo semestre de 2008, entre os maiores bancos do Brasil, o Santander (7º no ranking de ativos em junho) adquiriu o ABN Anro Bank (5º), o Itaú (2º) fundiu-se com o Unibanco (6º), o Banco do Brasil (1º) anunciou a aquisição da Nossa Caixa (11º) e de parte do Banco Votorantim (9º). 387 Os fundos de investimento, em dezembro de 2008, tinham um patrimônio líquido de quase R$ 1,1 trilhão, dos quais mais de dois terços estavam aplicados em títulos públicos. Em termos de custos, a taxa de administração média dos fundos de renda fixa de varejo ficou ao redor de 1% em 2008.10 Não raro, também são cobradas taxas de desempenho sobre o quanto a gestão conseguir superar a rentabilidade de referência (geralmente CDI), cabendo as perdas exclusivamente aos cotistas. A composição dos detentores dos títulos públicos em fundos de investimentos apresenta uma con- centração menor, comparativamente à carteira própria, entre os diferentes tipos de instituições. Entidades de previdência complementar, pessoas físicas e pessoas jurídicas não financeiras são os detentores mais impor- tantes, respondendo por 26,2%, 15,3% e 22,6%, respectivamente, do total dos títulos públicos em fundos de investimentos. A participação de cada segmento no total da dívida em poder do público e o volume de recursos em títulos públicos por eles detidos são apresentados no Gráfico 3. Gráfico 3. Composição dos grupos de detentores da DPMFi – fundos de investimentos – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil Obs.: Quanto às nomenclaturas utilizadas no gráfico: pessoa física varejo (PF Var.) e pessoa física private (PF Priv.), pessoa física total (PF Tot.), pessoa jurídica não financeira varejo (PJNF Var.) e pessoa jurídica não financeira private (PJNF Priv.), pessoa jurídica não financeira total (PJNF Tot.), Banco Comercial Nacional (BCO Com. Nac.), Corretora- Distribuidora Nacional (Corr. Dist. Nac.), outras pessoas jurídicas financeiras nacionais (Out. PJF Nac.), investidor não residente (Inv. N. Res.), previdência complementar (Prev. Comp.), seguradora, sociedade capitalização (Soc. Capital), fundos clubes, cotista distribuidor (Cot. Dist.), outros em FI (Outros). A estreita relação entre os fundos de investimentos e os bancos fica mais clara quando se analisa o ranking de patrimônio líquido dos maiores gestores. Dos dez maiores gestores de fundos de investimentos, oito estão entre os dez maiores bancos. Isso indica que a vantagem da desconcentração dos detentores dos fundos tende a ser contraposta pela concentração da gestão, principalmente pela proximidade desta com as tesourarias, o que se reflete em uma concentração da demanda por determinados instrumentos, contrapondo o efeito da diversificação de detentores. 10 Apesar da taxa média apresentada, há uma clara segmentação das taxas por volume aplicado. Em 2006, para as carteiras com aplicação inicial até R$ 5 mil, as taxas variam de 1,5% a 5,5%; entre R$ 5 mil e R$ 100 mil, de 0,85% a 3,5%; e acima de R$ 100 mil, de 0,30% a 1,5%. 388 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 2. Maiores gestores em patrimônio líquido (R$ bilhões) – dez./2008 Instituição Patrimônio líquido % do total BBDTVM S.A. 233,19 21,4% Bradesco 151,66 13,9% Itaú 138,20 12,7% Santander 80,49 7,4% CEF 76,52 7,0% HSBC 46,66 4,3% Unibanco 45,53 4,2% UBS Pactual 40,89 3,8% Banco Safra 24,97 2,3% Nossa Caixa 24,70 2,3% Subtotal 862,81 79,3% Total 1.088,50 Fonte: Anbid 2.1.1 Quem são os detentores finais da dívida? Antes de uma análise da composição da carteira de títulos públicos de cada segmento, vale a tentativa de conhecer quem são de fato os detentores finais dos títulos públicos. Dada a base da classificação apresentada anteriormente, muito mais voltada para o registro do título, buscou-se informações11 no Banco Central e na CVM para reorganizar os detentores da dívida pública em classes que servissem de proxy para a demanda por títulos públicos, considerando seu detentor final.12 O resultado desse exercício é apresentado no Gráfico 4. Gráfico 4. Composição dos detentores finais da DPMFi – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil 11 O autor agradece a Beatriz da Costa Lourenço Florido, do Banco Central do Brasil, e a Luiz Américo Ramos, da Comissão de Valores Mobiliários, pelas informações e preciosos esclarecimentos oferecidos. 12 Esta é apenas uma proxy, pois suposições foram necessárias para classificar alguns segmentos. Além disso, há uma diferença da ordem de R$ 4 bilhões (0,3% do total da DPMFi) entre os componentes e o total da DPMFi, referentes a títulos vinculados, cuja propriedade não foi determinada entre as categorias estabelecidas. 389 Para chegar-se a essa composição, foram agregados em “pessoa jurídica financeira”: i) os recursos das tesourarias; ii) os valores detidos por pessoa jurídica financeira que não tem conta individualizada no Selic; e iii) instituições financeiras detentoras de fundos de investimento, quais sejam: Banco Comercial Nacional (Bco. Com. Nac.), Corretora Distribuidora Nacional (Corr. Dist. Nac.), outras pessoas jurídicas financeiras nacionais (Out. PJF Nac.) e cotista distribuidor (Cot. Dist.). Para compor o segmento “pessoa física”, foram somadas às aplicações em fundos de investimentos de pessoas físicas varejo e private (PF Var. e PF Priv., respectivamente) os recursos detidos diretamente por essas pessoas (Conta Cliente Pessoa Física, Anexo 5.1, RMD). Já o segmento “pessoa jurídica não financeira” foi composto pelas aplicações em fundos de investimentos de pessoas jurídicas não financeiras varejo e private (PJ Var. e PJ Priv., respectivamente) e recursos detidos diretamente por elas (Conta Cliente PJNF, Anexo 5.1, RMD), excluído o que é detido por investidores institucionais e estrangeiros. Os “investidores institucionais” são compostos por fundos de investimentos dos segmentos previdência complementar (Prev. Comp.),13 seguradora, sociedade capitalização (Soc. Capital), fundos clubes, outros em FI (Outros), outros fundos (Conta Cliente Outros FI, Anexo 5.1, RMD). Além disso, somaram-se também todos os recursos diretamente administrados por entidades de previdência complementar, seguradoras (inclusive de saúde) e sociedade de capitalização (recursos em Conta Cliente PJNF, Anexo 5.1, RMD). Por fim, a categoria “investidor não residente” foi formada pela participação destes em fundos de investimentos (Inv. N. Res.) e em todas as outras contas. Por essa reclassificação, percebe-se que a concentração não é tão marcada em termos dos detentores finais dos títulos. A participação de investidores institucionais e não residentes supera 36% da dívida, ou seja, uma parcela significativa com perfil voltado para investimentos de prazo mais longo, mesmo observando o efeito da crise sobre a carteira desses agentes. Considerando que ainda há uma parcela de poupança de longo prazo que poderia ser detida por pessoas físicas e pessoas jurídicas não financeiras, pode-se dizer que, em termos de detentores finais, ainda há um potencial para alongamento dos prazos da dívida.14 2.2 Características das carteiras dos principais detentores15 O diagnóstico sobre a estrutura dos detentores da dívida pública mostra que a concentração daqueles que efetivamente se beneficiam do rendimento dos títulos não é tão grande. Então, cabe uma análise sobre o perfil da demanda desses investidores para uma avaliação sobre o potencial de alongamento da dívida e de melhora na sua composição. A composição das carteiras de títulos públicos, em termos de prazos e indexadores, fornece uma im- portante informação sobre a atuação de cada segmento no mercado. Analisando a demanda das tesourarias dos bancos (carteira própria) em termos de indexadores, como era de esperar, há uma preponderância dos títulos prefixados e indexados à taxa Selic, como evidenciado no Gráfico 5. No entanto, o crescimento do percentual dos papéis prefixados na carteira própria é um fenômeno recente que veio com a estabilização da economia brasileira e a consolidação dos seus fundamentos. Outra característica é a afinidade com os 13 Inclui previdência complementar aberta, previdência complementar fechada e regimes próprios de previdência de estados e municípios. 14 Os dados disponíveis, tanto para o Brasil quanto para outros países, não permitem uma comparação mais acurada em termos de detentores finais. A desagregação que permitiu essa análise só existe com dados a partir de janeiro de 2007. Para 2003, Novaes (2005) indica que a Polônia tinha 50% da sua dívida (incluindo aquela em poder do Banco Central) nas mãos de instituições não financeiras, e a Tailândia, 59%. Para o Brasil, se incluirmos a dívida no Banco Central, esse número seria 42,4%. 15 Como no caso dos detentores finais da dívida, aqueles dados que subsidiam esta seção apresentam uma série muito curta, a partir de janeiro de 2007, de modo que, apenas a título de comparação, se apresenta aqui a posição, em termos de prazos e inde- xadores, dos segmentos de cada grupo de detentor. 390 Dívida Pública: a experiência brasileira títulos prefixados dos bancos com controle estrangeiro – nenhuma das instituições desse grupo tem menos que 50% de títulos prefixados na carteira –, ao passo que percentuais elevados de títulos indexados à Selic se encontram em instituições nacionais, que, por serem as mais representativas, acabam fazendo com que esses títulos representem quase um terço do total do segmento.16 Gráfico 5. Composição da carteira de títulos públicos por indexador – carteira própria – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil Em termos de prazo, as tesourarias estão concentradas principalmente em títulos com prazos mais curtos (até três anos). Destacam-se os bancos comerciais (estrangeiros e nacionais) e os bancos de investimento nacionais, os mais representativos no total da DPMFi, que possuíam em dezembro de 2008 mais de 50% de sua carteira atrelada a títulos com no máximo três anos de prazo. Vale destacar o reflexo da evolução recente do alongamento da dívida pública, uma vez que esses grupos, em julho de 2007, mantinham mais de 75% de suas carteiras em títulos com prazo de até três anos. A experiência internacional tem mostrado que os investidores institucionais são cruciais para o funcio- namento do mercado de dívida pública de um país. No Brasil, eles se constituem em um grupo com objetivos de investimento relativamente homogêneos, mas que deveria seguir estratégias próprias em função, por exemplo, da maturidade do negócio. Como resultado, a demanda destes por títulos públicos abarcaria desde títulos prefixados de curto prazo até instrumentos de longo prazo indexados à inflação. No entanto, há uma dificuldade inicial, no caso brasileiro, para se fazer comparação com o caso de outros países, pela existência, e tão difundida utilização, de um instrumento com taxa de juros repactuada diariamente, baseada nas operações compromissadas do Banco Central. Apesar do amadurecimento recente do mercado de capitais no Brasil, esse traço ainda é bastante co- mum entre as carteiras de títulos públicos dos vários detentores de fundos de investimentos. Chama atenção 16 Os bancos de investimento estrangeiros foram omitidos dos gráficos desta seção porque em dezembro de 2008 apresentavam uma posição líquida vendida na carteira de títulos públicos da ordem de R$ 1 bilhão (0,2% do segmento carteira própria), o que distorce a comparação. Essa posição negativa estava totalmente concentrada em títulos prefixados com até cinco anos. 391 que investidores – não só institucionais – com passivos de características distintas, como fundos e clubes de investimentos, planos de previdência e seguradoras, mantenham ainda uma parcela não desprezível de seus ativos em títulos indexados à taxa Selic (conhecidos por LFT). Contribuiu para isso a característica do período em tela, marcado pelo movimento de alta dos juros básicos pelo Banco Central. Gráfico 6. Composição da carteira de títulos públicos por prazo – carteira própria – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil Gráfico 7. Composição da carteira de títulos públicos por indexador – fundo de investimento – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil 392 Dívida Pública: a experiência brasileira O gráfico anterior indica que, quanto mais difuso é o objetivo de investimento do grupo, maior é o percentual de LFT no fundo. Assim, os grupos “pessoa física” e “pessoa jurídica não financeira” (varejo ou private) carregam uma parcela maior desses títulos, bem como aqueles grupos mais ligados ao setor financeiro, à exceção dos bancos comerciais nacionais. Vale ressaltar que esses segmentos aumentaram de maneira ho- mogênea suas carteiras de LFT, fazendo com que em um ano a parcela desses títulos no total da carteira dos fundos de investimentos aumentasse 10 p.p., alcançando mais da metade de suas carteiras de títulos públicos. Nota-se, ainda, a evidente preferência dos investidores não residentes por títulos prefixados e remunerados por índices de preços, que representam quase 95% de sua aplicação em fundos de investimentos. Nem mesmo o recente ciclo de aumento da taxa Selic fez com que esses investidores aumentassem seu apetite por LFT, cujo percentual da carteira aumentou somente dois pontos de dezembro de 2007 para dezembro de 2008. Em termos de prazo, além de refletir a distribuição por indexadores, é evidente a presença de mais títulos de curtíssimo prazo na carteira de clientes de varejo e um maior percentual de títulos com prazo superior a três anos entre os fundos de clientes privates. Apesar de essa diferença não ser expressiva, sinaliza um esforço maior de gestão do administrador da carteira, que, neste último caso, deixa simplesmente de comprar títulos com baixo risco de mercado, buscando agregar valor ao fundo. Apesar de esse grupo ser mais difuso em suas preferências, os investidores estrangeiros têm uma carteira mais longa que a dos investidores institucionais nacionais, mesmo que se compare especificamente com a previdência complementar. Gráfico 8. Composição da carteira de títulos públicos por prazo – fundo de investimento – dez./2008 Fonte: Banco Central do Brasil 393 2.3 Administração própria versus gestão terceirizada: uma análise das carteiras Se, por um lado, uma indústria de fundos desenvolvida representa uma vantagem para o mercado financeiro brasileiro, em função da sua capacidade de captar poupança, por outro, a predileção por instru- mentos como a LFT acaba, de certa maneira, dificultando o alcance dos objetivos de gestão da dívida pública. Além disso, aspectos regulatórios também dificultam qualquer busca por restringir a liquidez diária, o que inegavelmente induz a uma maior demanda por títulos com essas características. Nesse contexto, apesar de a base de detentores finais da dívida não ser tão concentrada, a gestão das carteiras de títulos públicos é bastante centralizada em agentes cujo estímulo para a negociação responde primordialmente a considerações de ordem tática (MOURA, 2005). Isso faz com que suas posições ainda permaneçam centradas em LFT, por oferecerem menor exposição a risco no espectro mais curto da curva de juros dos títulos públicos, diminuindo os estímulos ao alongamento dos prazos da dívida. Consequentemente, reduz-se a transparência para a formação de preços no mercado à vista dos papéis menos negociados. Franco (2006) argumenta ainda que a liquidez diária oferecida pelos fundos de investimento, associada à divulgação diária das cotas desses fundos, é um dos fatores fundamentais que induzem a uma presença expressiva de LFT nessas carteiras. Essa combinação levaria a um movimento de saques ao menor sinal de perdas desses fundos. É justamente para custear os saques que os gestores manteriam em suas carteiras uma grande parte dos ativos nesses títulos com duração de um dia e elevada liquidez. Outra forma de manifestação desse problema no perfil da carteira dos fundos de investimentos é a chamada “cultura do CDI”. Segundo Garcia e Salomão (2006), um administrador típico de fundo de investi- mentos não quererá, ou até mesmo não poderá, comprar títulos com taxa fixa no lugar de LFT, se for obrigado a prover diariamente rentabilidade igual ou maior que a do CDI. Em última instância, a liquidez dos fundos de investimentos, associada a uma referência diária, termina por condicionar a demanda desse segmento e, consequentemente, o perfil da própria dívida. Nesse quadro, a visão tática acaba tendo uma preponderância sobre a orientação estratégica da apli- cação dos recursos, relegando-se a um segundo plano as questões referentes a prazo e perfil dos investidores em relação a aspectos como a liquidez diária dos ativos. Para essa preponderância contribui também a falta de uma cultura financeira maior, não só de uma parcela significativa das pessoas físicas e jurídicas, mas até mesmo de alguns investidores institucionais, que delegam enorme liberdade sobre a gestão dos seus recursos aos bancos e às gestoras de ativos. Com isso, grande parte dos recursos, principalmente nos fundos de investimentos/fundos mútuos, é gerida pouco se levando em consideração os objetivos do investidor em termos de prazos da aplicação ou o perfil do poupador em termos de aversão ao risco, por serem comercializados quase sem nenhuma segmentação. Assim, os recursos acabam sendo aplicados em títulos que geram menor risco para o gestor – em termos de desvios em relação a um índice de referência genérico – e que possibilitem liquidez diária, uma exigência comum dos clientes. Uma boa maneira de cotejar o efeito da gestão sobre o perfil dos investimentos é com- parando a carteira de títulos públicos das pessoas físicas em fundos de investimento com suas aplicações no Tesouro Direto.17 17 Programa de venda de títulos públicos federais para pessoas físicas via internet. Para maiores detalhes, ver Capítulo 7 da Parte 3. 394 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 9. Composição da carteira de títulos públicos das pessoas físicas – dez./2008 Indexador – Tesouro Direto Indexador – fundos de investimento Prazo – Tesouro Direto Prazo – fundos de investimento Fonte: Banco Central do Brasil e Secretaria do Tesouro Nacional/MF Apesar de alguma diferença que possa haver entre as pessoas físicas que investem em títulos públicos via Tesouro Direto e via fundos de investimento, não se pode negar que o público de ambos é muito semelhante. Os gráficos de dezembro de 2008 deixam claro que o gestor concentra os recursos sob sua responsabilidade em títulos curtos (80,8% em até três anos) e indexados à taxa Selic (78,5% em LFT), ao passo que tomando as próprias decisões de investimento a pessoa física aplica principalmente em títulos prefixados e indexados à inflação (80,5%), buscando maior diversificação em termos de prazo (32,8% com prazo superior a três anos). Vale destacar que – não somente em termos estáticos, mas também em termos dinâmicos – a condução dos investimentos diretamente pelas pessoas físicas e pelos gestores que administram as carteiras dessas mesmas pessoas é bastante distinta. Entre junho de 2007 e dezembro de 2008, período que abarca todo o recente ciclo de elevação da taxa de juros pelo Banco Central, a carteira de LFT dos fundos de investimentos de pessoas físicas cresceu cerca de 20 p.p. até chegar aos atuais 78,5%, ao passo que, no âmbito do Tesouro Direto, houve uma redução de cerca de 2 p.p. nessa participação. Isso indica, além da resposta mais lenta, que a demanda de títulos públicos das pessoas físicas considera outros fatores que não somente a liquidez diária e que a proteção contra as variações da taxa de juros pode não ser o mais importante para o aplicador, embora esses sejam fatores fundamentais para os gestores. Outro caso representativo é o dos fundos de pensão (entidades fechadas de previdência complementar). A diferença entre a participação de títulos prefixados, indexados a índices de preços e de prazos mais curtos, 395 principalmente, também evidencia essa discrepância entre a gestão própria e a terceirizada. Em dezembro de 2006 – último dado disponibilizado pela Secretaria de Previdência Complementar –, enquanto a parcela de títulos prefixados nos fundos de investimento chegou a 32,6%, na gestão própria dos fundos de pensão não passava de 2%. Já a parcela de títulos remunerados por índices de preços na carteira própria era de 82,7%, enquanto nos fundos de investimentos era de 48,5%. Por fim, o percentual de títulos com prazo de até três anos na carteira administrada pelos próprios fundos era de 25%, ao passo que nos fundos de investimentos era de 60%. Duas particularidades, porém, diferenciam esse tema do ponto de vista da pessoa física e dos fundos de pensão. No caso destes últimos, a discrepância entre a gestão própria e a terceirizada vinha se reduzindo gradativamente em função da queda nas taxas de juros. Por sua vez, um processo de segregação da gestão da carteira pelos fundos de pensão impõe limites à convergência entre a gestão própria e a terceirizada. Em relação ao primeiro ponto, com os juros menores no curto prazo até 2007, era natural que as entidades procurassem um alongamento da carteira com títulos que oferecessem proteção contra a inflação para fazer frente a seus passivos atuariais. Assim, a parcela de LFT nos fundos de investimentos que gerenciam recursos de fundos de pensão caiu de 41,7% em março de 2005 para 18,7% em dezembro de 2006. Tal migração, em montantes tão expressivos, não se verifica no caso dos fundos de investimentos que gerenciam recursos de pessoas físicas – seja durante o processo de redução da taxa de juros, seja durante o ciclo de alta –, até por estas terem objetivos de poupança mais heterogêneos, comparativamente aos fundos de pensão. No entanto, há casos nos quais os fundos de investimentos, principalmente aqueles exclusivos, apresentam aderência com as exigências da entidade de previdência. Ocorre que essa exigência leva em consideração a segregação, na gestão dos ativos, entre benefícios a conceder e benefícios concedidos. Essa estratégia tem levado algumas entidades de previdência a centralizarem, na sua própria carteira, a gestão dos recursos para benefícios a conceder e terceirizar, via fundos, a gestão dos recursos destinados à parcela de benefícios concedidos. Nesse caso, é razoável se imaginar que a carteira terceirizada necessariamente seja mais curta e carregue menos risco de volatilidade de taxas de juros que a carteira gerida internamente. Não obstante o exposto no parágrafo anterior, o desvio da visão estratégica das entidades de previdência ante uma preocupação tática dos fundos de investimentos talvez não seja tão reduzido. Primeiramente, é preciso que se considere que há um número não desprezível de fundos de pensão suficientemente pequenos, para os quais os custos de uma gestão própria são muito elevados. Estudo de uma empresa de consultoria realizado em 2006 para fundos de pensão indicou que, de uma amostra de 42 entidades, 67% delas ainda apresentavam somente gestão externa, ao passo que 2% apresentavam somente gestão interna.18 Além disso, a segregação da gestão ainda não é uma prática totalmente difundida no mercado. O mesmo estudo indica que, ainda que 12% das empresas da amostra desejassem segregar a gestão em benefícios concedidos e a conceder, 66% não o fazia e ainda não pensavam em fazê-lo ao final de 2006. Por fim, há de se considerar também que o grau de maturidade atuarial do mercado brasileiro de fundos fechados de previdência ainda não é tão elevado a ponto de justificar uma carteira tão curta para aqueles recursos que seriam para benefícios concedidos. Mesmo que do final de 2007 ao final de 2008 tenha havido um crescimen- to na parcela de títulos indexados a índices de preços na carteira terceirizada das entidades de previdência complementar (de 46,5% para 58,1%), acredita-se que ainda deve haver uma discrepância entre os objetivos previdenciários das entidades e a gestão terceirizada de seus títulos públicos, devendo essa discrepância ser ainda maior entre as entidades menores.19 18 Para maiores detalhes sobre o estudo, acesse o seguinte site na internet: http://www.towersperrin.com/tp/getwebcachedoc?webc=HRS/ USA/2007/200704/Brazil_1.pdf. 19 Não se pode desconsiderar que ao delegarem a gestão, elegendo o CDI ou a taxa Selic como benchmark para sua carteira de renda fixa, os fundos de pensão acabam por pressionar os gestores a encurtarem suas carteiras e concentrá-las em LFTs ou 396 Dívida Pública: a experiência brasileira Visando a reduzir tal discrepância, o Tesouro Nacional tem atuado buscando alinhar os incentivos dos gestores aos objetivos dos investidores finais, principalmente no que diz respeito à microestrutura da indús- tria. Essa atuação, em termos das principais medidas para a ampliação e a diversificação, não só da base de investidores finais, como da gestão dos ativos, será vista na seção a seguir. 3 Avanços e medidas na diversificação da base de investidores A idéia de que uma base de investidores ampla e diversificada é importante para assegurar uma demanda forte e estável por títulos sempre foi consenso na gestão de dívida do Tesouro Nacional. No Brasil, como em outros países, a demanda por títulos da dívida doméstica reflete características do sistema financeiro. Assim, no caso brasileiro o perfil dessa demanda fez com que a necessidade de estímulo à participação dos bancos e dos fundos de investimentos fosse menor, dado o considerável desenvolvimento do setor. Apesar da demanda expressiva desse grupo, para o Tesouro Nacional era necessária a promoção de uma maior heterogeneidade na sua base de investidores, pois somente a presença players com perfis diferentes em ter- mos de prazo, risco e motivação para a negociação poderia estimular as transações e a liquidez do mercado. Visando a essa heterogeneidade, que lhe garantiria a possibilidade de se financiar e manter sua es- tratégia em qualquer condição de mercado, o Tesouro Nacional adotou medidas e estabeleceu uma rede de comunicações com os mais diversos agentes. Atualmente, todos os grupos de investidores são considerados na estratégia de gestão da dívida, com programas e contatos específicos para investidores individuais, inves- tidores institucionais, investidores estrangeiros, fundos de investimentos e outros. No entanto, como será visto a seguir, a atuação não está restrita à busca de novos e diferentes investi- dores. A inflação alta e a indexação do país contribuíram para a criação da “cultura do CDI”, havendo também uma variante didática na relação do Tesouro Nacional com sua base de investidores. Assim – além do Tesouro Direto, didático por definição, como visto no Capítulo 7 da Parte 3 –, com investidores de maior porte também se trabalha no sentido de despertar nos agentes a importância de melhor alinhar seus investimentos com seus objetivos do que com a gestão média do mercado.20 3.1 Criação da Gerência de Relacionamento Institucional21 Seguindo as melhores práticas internacionais, considerando uma reorganização institucional mais ampla da dívida pública, o Tesouro Nacional criou em 1999 uma área destinada ao relacionamento com investidores (RI).22 No entanto, em função das preocupações com a base de investidores, a essa gerência coube atribuições e uma localização não convencional na estrutura de gestão da dívida em relação ao que é verificado em outras áreas de RI. operações compromissadas do Banco Central. Em 2006, segundo o levantamento citado anteriormente, 72% dos referidos fundos adotavam essa prática. 20 Franco (2006) retrata que a gestão média de renda fixa, a qual termina sendo prejudicial para todo o mercado de capitais, ainda é extremamente voltada para o overnight, em função da influência das LFTs no mercado. 21 Para detalhes sobre as atribuições da Gerência de Relacionamento Institucional, ver Capítulo 1 da Parte 2. 22 Há de se destacar que, apesar de estar entre as melhores práticas internacionais, a criação de uma área de relações com investidores no Brasil foi uma iniciativa bastante pioneira quando se trata dessa ação relacionada ao gerenciamento da dívida. Prova disso é que na avaliação das atividades de relacionamento com investidores, realizada em 2006 pelo Instituto Internacional de Finanças (IIF), com 32 países emergentes, apenas 11 deles possuíam as atividades de relacionamento com investidores institucionalizadas. 397 Além da tradicional comunicação com o mercado, visando a reduzir a assimetria de informações e a favorecer uma melhor precificação dos ativos, cabe à Gerência de Relacionamento Institucional (Gerin),23 da Secretaria do Tesouro Nacional, também as atribuições referentes à ampliação e à diversificação da base de investidores. Em consequência dessa tarefa mais associada à estratégia de médio e longo prazos para a dívida, a gerência foi alocada institucionalmente no middle office, e não no front office ou como uma área independente, como se vê em outros departamentos de dívida. Como resultado dessa alocação, chegou-se a uma área de RI muito mais voltada para questões estruturais do que para uma comunicação diária, como seria esperado, oferecendo, assim, uma visão menos de curto prazo e mais relacionada com os objetivos de diretrizes da gestão da Dívida Pública Federal. Adicionalmente, foi durante o período de estruturação da área que se procurou estabelecer os canais de comunicação com os diferentes grupos de investidores, o que garantiu, primeiramente, que os produtos da área já fossem de- senhados de acordo com a demanda dos segmentos do mercado. Em um segundo momento, essa estratégia permitiu também uma adaptação mais fácil às tarefas surgidas na assunção da gestão da dívida externa pelo Tesouro Nacional, principalmente quando se passou a atender às agências de rating, fornecendo informações e estudos direcionados a cada uma delas. 3.2 Ganho de experiência com os investidores institucionais Desde sua estruturação, a área de RI buscou manter estreito contato com os investidores institucionais, mesmo com aqueles que tradicionalmente delegam a gestão de suas carteiras. Um bom exemplo desse trabalho foi o retorno das emissões de NTN-B. Ao longo de 2003, promoveu-se uma série de reuniões com investidores em instrumentos de longo prazo, em especial fundos de pensão, e delas surgiu um conjunto de possíveis medidas para estimular a demanda por esses títulos. Uma dessas medidas foi introduzir emissões regulares de NTN-B, títulos longos e indexados ao IPCA, em linha com os objetivos de administração de ativos e passivos dos fundos de pensão e com os objetivos de gerenciamento da dívida. O ponto estratégico da atuação do Tesouro Nacional na ocasião foi mostrar que o IPCA, que remunerava o título, apresentava alta correlação com o INPC, índice de preços comumente utilizado como benchmark pelas entidades de previdência.24 O sucesso da primeira iniciativa levou a organizar-se, ao longo de 2004, uma série de road-shows com as principais instituições representativas de investidores nacionais. Para isso, ao longo daquele ano foram realizadas mais de 15 reuniões com representantes dos mais diferentes segmentos dos mercados, como bancos comerciais, bancos de investimentos, entidades abertas e fechadas de previdência complementar, seguradoras, entre outras. Essa série de contatos criou um canal de comunicação permanente entre a administração da dívida pública e os principais investidores. Isso permitiu que a prática, já existente, de discutir com o mercado as medidas de administração da dívida pudesse ser aprofundada, ganhando abrangência e agilidade no processo, e o que se iniciou com a retomada das emissões de NTN-B teve continuidade em uma série de outras iniciativas.25 23 O próprio nome já deixa claro que a área criada para realizar as atividades de relacionamento com investidores tem outras atribuições além dessas. Nesse sentido, a gerência também é responsável pelos contatos sobre dívida pública com outros poderes, com a imprensa e também com formadores de opinião, como agências de rating. 24 Destaca-se que o Tesouro Nacional já ofertava um instrumento equivalente, a NTN-C, que pagava IGP-M mais uma taxa de juros. No entanto, visando a oferecer um instrumento atrelado ao índice de preços utilizado como referência para o sistema de metas de inflação e mais em linha com o superávit primário do governo e a concentrar suas emissões em um único título com essas características, passou-se a incentivar a demanda por NTN-Bs. 25 Para mais detalhes de algumas medidas, ver Capítulo 1 da Parte 3. 398 Dívida Pública: a experiência brasileira Consciente da importância do investidor institucional para a modificação do perfil da dívida pública, em agosto de 2004 algumas modificações foram introduzidas no sistema de tributação das aplicações financeiras de caráter previdenciário. Tais modificações promoveram um incentivo adicional para os investimentos de longo prazo e para o aumento da presença na dívida de fundos (abertos e fechados) com essas características. Em particular, os fundos abertos de previdência complementar ganharam impulso adicional com o incentivo tributário, passando inclusive a competir com os tradicionais fundos de investimento/mútuos, pela preferência daqueles investidores de mais longo prazo. Além disso, as entidades fechadas de previdência complementar viram atendido, na mesma regulamentação, um antigo pleito relativo à tributação: o fim do Regime Especial de Tributação.26 Ainda no âmbito dos investidores institucionais, buscando reduzir a chamada “cultura do CDI”, o Tesouro Nacional, juntamente com outras instituições do mercado, participou de uma série de road-shows para divulgar para fundos de pensão a família de índices benchmark para investimentos em títulos públicos criada pela Andima (IMA). Em 2005, foram realizados seminários em cinco regionais da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), nos quais se destacava a importância desses novos índices e sua adequação, principalmente ante o CDI, como referência para entidades que necessitavam de ativos de longa maturação.27 Na oportunidade, o Tesouro Nacional trabalhou também no sentido de salientar a importância da migração das aplicações em títulos remunerados pela taxa Selic para títulos indexados a índices de preços. Iniciava-se, naquele momento, um processo de redução da taxa de juros básica da economia (setembro de 2005), e ante a sustentabilidade prevista desse processo de queda, procurava-se alertar para o fato de que a segurança de curto prazo fornecida pelas LFTs não mais seria compatível com as rentabilidades exigidas pelas metas atuariais dos fundos de pensão. A parcela de títulos indexados à Selic na carteira dos fundos de pensão caiu de 35,9% em março de 2005 para 17,7% em dezembro de 2006. Paulatinamente, as NTN-Bs passaram a substituir as NTN-Cs como instrumento mais procurado pelos investidores institucionais. Além disso, o ciclo que se iniciava de redução da taxa básica de juros e a estratégia do Tesouro Nacional de não mais fazer emissões regulares de NTN-C a partir de 2006 potencializaram o crescimento da participação das NTN-Bs tanto no estoque da dívida em poder do público como na carteira das entidades de previdência. Enquanto em março de 2005 os títulos indexados ao IPCA representavam menos de 20% da carteira de títulos públicos dos fundos de pensão e os indexados ao IGP-M representavam mais de 30% dela, em dezembro de 2006 essas participações já eram de 35% e 23%, respectivamente. A própria redução da taxa básica de juros da economia poderia ter levado a essa considerável mudança na composição de ativos do segmento, mas o trabalho de esclarecimento, juntamente com outras medidas, como a criação da Conta Investimento,28 deu suporte para o movimento macroestrutural que vinha ocorrendo, acelerando a transição. 26 Regime Especial de Tributação implicava a retenção na fonte ou o pagamento em separado do Imposto de Renda sobre os rendi- mentos e os ganhos auferidos nas aplicações de recursos das provisões, das reservas técnicas e dos fundos de planos de benefícios de entidade de previdência complementar, sociedade seguradora e Fapi, bem como de seguro de vida com cláusula de cobertura por sobrevivência. Com isso, toda a fase de acumulação de recursos dos planos de previdência ficou isenta do Imposto de Renda. 27 Uma atualização do estudo citado anteriormente da Towers Perrin, com 53 fundações, indica que em abril de 2007 o número de entidades que seguiam usando o CDI como benchmark para a carteira de renda fixa havia caído para 57% ante os 72% da pesquisa anterior. 28 Estudo da Towers Perrin, com uma amostra de 42 fundos de pensão, indicou ao final de 2006 – depois que todos os recursos depositados em fundos de investimento já poderiam migrar para outros fundos sem pagar CPMF – que 20% deles pretendiam alterar sua estrutura de investimentos em função da Conta Investimento. 399 3.3 O investidor não residente no Brasil Outro foco de atenção, no que se refere ao trabalho com a base de investidores, esteve centrado nos investidores não residentes, que têm um apetite muito maior por títulos mais longos e prefixados, como visto na seção anterior. O Tesouro Nacional participou de reuniões visando a consolidar a ideia da importância do incentivo à participação dos investimentos de não residentes em títulos públicos, não só para a gestão da dívida, mas também para o próprio desenvolvimento do mercado doméstico, pois se diversificariam o perfil e o apetite a diferentes tipos de riscos com a entrada desses novos agentes. Essa medida, sem dúvida, representou a mais relevante mudança recente na base de investidores da dívida pública brasileira. Todavia, esse trabalho não se limitou à ampliação da “abertura” do mercado doméstico de dívida e tampouco está concluído. Além dos esforços em aumentar o conhecimento sobre os títulos públicos domésticos para esse segmento no website do Tesouro Nacional (como o manual para a atuação no mercado doméstico de dívida pública e as regras de precificação dos títulos),29 realizou-se pesquisa com os investidores estrangeiros sobre as particularidades do mercado brasileiro que ainda dificultam sua participação. Reforçando a importância do acesso que já se tinha aos diferentes investidores, estabeleceu-se adicio- nalmente um fórum de discussões sobre o desenvolvimento do mercado secundário de títulos, que ainda era considerado um empecilho para a diversificação da base. É inegável o fato de que um mercado secundário desenvolvido contribui para a ampliação da base de investidores, da mesma forma que sua eficiência depen- de de uma base de investidores diversificada.30 Nesse quadro de interdependência, o sucesso da iniciativa depende de congregar os agentes em prol desse objetivo, e o trânsito do Tesouro Nacional entre eles tem sido fundamental. Gráfico 10. Participação dos investidores não residentes na DPMFi - jan.2006 a dez.2008 Fonte: CVM e Banco Central do Brasil. Elaboração: Secretaria do Tesouro Nacional 29 Para detalhes: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/english/public_debt/downloads/pricing_methodology.pdf. 30 Ver Capítulo 6 da Parte 3. 400 Dívida Pública: a experiência brasileira Box 1. Incentivo à participação de investidores não residentes na dívida doméstica Como dito anteriormente, a modificação na tributação do investidor não residente foi a medida recente mais significativa no que se refere à base de investidores. No entanto, o processo de tornar mais acessível o mercado brasileiro para esse grupo começou bem antes da isenção do Imposto de Renda (IR) sobre as aplicações em títulos públicos ocorrida em fevereiro de 2006. Desde o início de 2005, consciente da importância de promover a ampliação da base de investidores, o Tesouro Nacional, no âmbito do Brazil: Excellence in Securities Transactions (BEST),* já estava empenhado em aprimorar a infraestrutura do mercado financeiro doméstico e sua boa regulação, com medidas que o tornasse mais acessível aos investidores estrangeiros. Assim, ao longo daquele ano, promoveu-se o aperfeiçoamento do processo de registro de investidores não residentes na CVM e inovações que simplificaram e deram mais agilidade ao registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), permitindo que o investidor não residente iniciasse suas operações com rapidez e simplicidade. Concomitantemente, o Tesouro Nacional já participava de debates no âmbito da Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima), que havia contratado uma consultoria para analisar o tema da isen- ção do Imposto de Renda para investimentos de não residentes no mercado doméstico de renda fixa. Atentando também à necessidade de atrair a atenção desse segmento para ativos em reais, em setembro de 2005 o Tesouro Nacional realizou com considerável sucesso a primeira emissão de títulos em reais no exterior (Global BRL 2016).** Numa visão mais ampla, essa emissão significava apresentar ativos de emissão soberana em real para investidores internacionais, e o interesse pelo título deixou claro uma expressiva demanda preexistente. Somente depois disso, optou-se pela edição da medida provisória que deflagrou a entrada significativa desses investidores na dívida doméstica. Como consequência desse conjunto de medidas, a participação dos inves- tidores estrangeiros na dívida interna, que era de apenas 0,69% em janeiro de 2006, saltou para mais de 6% em dezembro de 2008. Desse movimento destacam-se: i) a contribuição substancial para as diretrizes do Plano Anual de Financiamento de aumentar a parcela de títulos prefixados e indexados a índices de preços no total da dívida, como visto pela carteira dos investidores estrangeiros apresentada anteriormente; e ii) o crescimento expressivo dessa participação ao longo da primeira fase da crise financeira internacional (até meados de 2008), que evidencia o reconhecimento do Brasil, pelo mercado internacional, como um destino seguro para seus investimentos.*** * Parceria entre setor público (Tesouro Nacional, Banco Central, CVM) e setor privado (BM&F, Bovespa, CBLC e Anbid). Para maiores detalhes, acesse o site: http://www.bestbrazil.org/index.asp . ** Destaca-se que o Brasil foi escolhido o melhor emissor soberano do ano em 2005 pela revista Latin Finance, principalmente em função das emissões do Global BRL 2016 (melhor emissão em moeda local) e do A-Bond (melhor emissão soberana em moeda estrangeira), este na operação de troca do C-Bond. *** A partir de agosto de 2008, com o aprofundamento da crise financeira internacional, o movimento de “busca pela qualidade” ou mesmo de simples realização promoveu a saída de investidores estrangeiros do mercado de títulos públicos brasileiros, reduzindo sua participação na dívida pública para menos de 6%. No entanto, a partir de outubro já se percebeu uma retomada dos investimentos desse segmento, e, em dezembro de 2008, sua participação já havia retornado aos patamares de julho. 401 3.4 Interação entre investidores institucionais e não residentes: maturidade do mercado O movimento dos investidores estrangeiros após a isenção do Imposto de Renda sobre ganhos nas aplicações em títulos públicos, ocorrida em fevereiro de 2006, é um exemplo de como a diversificação da base de investidores, em um cenário de maior solidez do sistema financeiro, apresentou resultados importantes no mercado doméstico. Em maio de 2006, ante a perspectiva de elevação da taxa de juros nos EUA, alguns investidores não residentes que haviam acessado o mercado doméstico de dívida soberana iniciaram um movimento de “busca pela qualidade”. Naquele momento, o mercado brasileiro já estava passando por um processo de amadurecimento. No entanto, um segmento importante, os fundos de pensão, ainda estava sob os efeitos das investigações de 2005 na Comissão Parlamentar de Inquérito que analisou uma possível relação deles com operações para financiar compra de votos de deputados. Apesar de nenhuma evidência ter sido encon- trada contra essas entidades, como as operações analisadas haviam ocorrido no mercado secundário, menos transparente, os fundos de pensão afastaram-se desse mercado. Quando ocorreu a saída dos investidores não residentes, que pode ser vista na inflexão do gráfico (ver Box anterior), estes não encontraram facilmente contraparte no mercado secundário, justamente porque os demandantes naturais desses papéis estavam fora do mercado. Isso suscitou a entrada do Tesouro Nacional no mercado, efetuando leilões de compra e venda, com o intuito de oferecer parâmetros de preços para todos os investidores e, ao mesmo tempo, uma porta de saída para os não residentes e uma de compra, via leilão primário, para os fundos de pensão. A partir de maio de 2006, o amadurecimento do mercado teve sequência de maneira acelerada, e novos eventos indicam que o mercado vem alcançando capacidade de se autoajustar sem a necessidade de intervenção do governo. Com a crise do mercado financeiro americano, em agosto de 2007, percebeu-se novamente algum movimento de saída de não residentes de suas posições em títulos públicos no Brasil. Nessa ocasião, no entanto, o Tesouro Nacional não precisou entrar no mercado da mesma forma que em 2006. Em virtude da oportunidade que se abriu, os investidores institucionais, em particular os fundos de pensão, aproveitaram os preços atrativos, não somente dos títulos públicos, mas também das ações, e entraram no mercado comprando. Com isso, os efeitos de curto prazo dos primeiros movimentos da crise sobre o mercado brasileiro como um todo acabaram sendo bastante atenuados. 3.5 O Brasil vai até o investidor não residente31 Em 2004, ainda sob a égide do convênio estabelecido entre o Banco Central e o Tesouro Nacional, começou-se um trabalho de aproximação com o investidor em títulos da dívida externa. Inicialmente, procu- rou-se produzir informes que reportavam os resultados das emissões realizadas no mercado internacional. Posteriormente, o trabalho de aproximação com as agências de rating passou a ser focado não só na par- ticipação nas visitas regulares ao país, mas também elaborando estudos e apresentações que analisavam e contrapunham os pontos críticos por elas levantados. Em 2005, com a gestão da dívida federal externa já sob integral responsabilidade do Tesouro Nacional, o trabalho com os investidores não residentes se aprofundou. Atividades regulares do processo de emissão, 31 Para mais informações sobre as emissões primárias de títulos da dívida externa, ver Parte 3, Capítulo 4. 402 Dívida Pública: a experiência brasileira como as due dilligences, foram assimiladas pela Gerência de Pesquisas e Cenários (Gepec), bem como o anún- cio dos resultados das operações passou a ser feito pela Gerência de Relacionamento Institucional (Gerin). Estabeleceu-se também um contato mais estreito com os bancos de investimentos estrangeiros, visando a acessar a base de investidores bastante abrangente que eles possuíam. Com essa parceria, já em 2005 foram realizados road-shows na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos, sempre com foco no investidor final, por meio de palestras e reuniões individuais. Esses eventos serviram para: i) ampliar consideravelmente a base de contatos da dívida pública; ii) consolidar o Brasil como emissor soberano no exterior; iii) qualificar a comunicação com esse mercado; e, em última análise, iv) contribuir para o sucesso das operações externas. Posteriormente, visando a racionalizar o tempo e a manter a comunicação que já havia sido estabelecida, passou-se a concentrar os road-shows principalmente no âmbito do BEST e a utilizar teleconferências para acessar os investidores estrangeiros. Tendo se iniciado sem regularidade definida em 2006, a partir de 2007 divulgou-se um cronograma dessas teleconferências a fim de garantir maior previsibilidade para o mercado, sempre ressalvando o direito de realizar eventos extraordinários em caso de eventos relevantes.32 Vale destacar que essas teleconferências contam com a contribuição de bancos de investimentos, em sistema de rodízio, e envolvem em média cem pessoas on-line. Como mais um exemplo do trabalho de levar o Brasil até o investidor não residente, vale destacar a experiência com o mercado asiático. Posteriormente às várias visitas realizadas àquele continente ao longo de 2005, buscando-se divulgar o Brasil como emissor soberano, decidiu-se por uma medida inovadora: passou-se a abrir as emissões de títulos globais em um horário compatível com o início das operações no mercado asiático (Hong Kong), concluindo-as no fechamento do mercado americano (Nova Iorque).33 Esse primeiro passo foi bastante importante para habituar aqueles investidores às emissões primárias de títulos da dívida soberana. Além de ter sido muito bem recebida pelo mercado, a prática também se tornou referência, passando a ser adotada por outros emissores emergentes do continente americano. A partir de abril de 2007, visando a aprimorar o acesso àquele mercado e a proteger tanto a República quanto o investidor de possíveis volatilidades durante a operação, optou-se por uma estratégia conhecida por green shoe. Nessa nova configuração, o Tesouro Nacional realiza a emissão em horário compatível com o mercado norte-americano, reservando-se o direito de reabri-la automaticamente no mercado asiático, com volume prede- terminado e pelas mesmas condições com que os títulos foram vendidos nos mercados americano e europeu. 4 Tendências e novos desafios O mercado de capitais brasileiro tem-se desenvolvido consideravelmente nos últimos anos, apesar da crise financeira internacional. O mercado de ações e o de renda fixa privada, por exemplo, até meados de 2008 tiveram um desempenho espantoso, gerando externalidades positivas para outros mercados.34 Para a gestão da dívida pública, muito antes de serem encarados como ampliação da concorrência entre os ativos, esses avanços soam muito positivos, pois tais externalidades manifestam-se por meio da difusão do mercado de capitais, da busca de maior cultura financeira pelos investidores de varejo e do incentivo a uma gestão mais ativa pelos investidores institucionais. 32 Para maiores informações sobre o cronograma de conference calls acesse: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/divida_publica/ downloads/Cronograma_port.pdf. 33 Anteriormente, as emissões externas abriam e fechavam com base nos horários dos mercados europeu e norte-americano. 403 Dado o contexto de grande liquidez vigente até o final de 2007, os países, em especial os emergentes, buscaram na gestão da dívida pública o fortalecimento de sua base de investidores, melhorando a regulação e a consistência dos segmentos institucional, não residente e outros. No Brasil, essa estratégia tem sido a tônica da atuação do Tesouro Nacional nos últimos anos e deverá pautar as atividades para os próximos. Por isso, um mercado de capitais mais desenvolvido só tende a favorecer esse processo, seja pela redução da “bancarização” do sistema financeiro, seja pela redução da concentração da gestão dos ativos. Apesar das dificuldades de análise geradas pelo novo ambiente de instabilidade que se criou no mer- cado financeiro, principalmente depois do caso Lehman Brothers, é possível captar algumas tendências do desenvolvimento do mercado doméstico de títulos públicos após seu recente período de amadurecimento, com foco nos principais agentes demandantes de títulos públicos, visando a formular alguma idéia do papel destes na gestão da dívida. Para tanto, escolheram-se três segmentos com elevada participação na DPMFi que terão papel estratégico na implementação das diretrizes de longo prazo do Tesouro Nacional para a gestão da dívida. 4.1 A tesouraria dos bancos no novo mercado financeiro brasileiro Entender qual será o papel desempenhado pela carteira própria dos bancos (tesourarias) é crucial para saber quais são as perspectivas para a administração da Dívida Pública Federal no Brasil nos próximos anos. Considerando-se os títulos de posse dessas instituições, somente a tesouraria dos bancos comerciais nacionais detém quase um terço da DPMFi, de forma que não se pode avaliar a possibilidade de sucesso da gestão da dívida nos próximos anos sem avaliar a evolução desse segmento. Ao final de 2007, ainda antes dos principais reflexos da crise, para embasar esta análise foi feito um levantamento com os “tesoureiros” de várias instituições de porte no mercado brasileiro – incluindo cinco das dez maiores – sobre três aspectos da carteira própria dos bancos: tamanho, prazo e composição.35 Em termos de tamanho da carteira de títulos públicos em tesouraria de instituições financeiras, acredita- se, em geral, em uma redução lenta e gradual desta, como já se vem verificando, mesmo depois do período mais agudo da crise. A despeito de todas as finalidades que a tesouraria dos bancos exercem – i) alocação da reserva bancária; ii) instrumento de controle de liquidez; iii) depósitos de margens/garantias/vinculações em processos judiciais; iv) instrumento de assunção de risco de mercado – a perspectiva de redução se sustenta. Desses, os três primeiros geralmente resultam em entraves para que essa diminuição seja mais rápida. Toda- via, as novas opções de assunção de risco (no mercado de derivativos), o nível mais baixo da taxa de juros, o crescimento econômico que se experimentou até 2008 e o espaço para oferecer crédito ao setor real têm tirado o atrativo da segurança oferecida pelos títulos públicos. Fatores estruturais também tendem naturalmente a reduzir a participação das tesourarias na dívida, em particular as fusões, que fazem com que o todo seja menor que a soma das partes, a entrada no mercado de outros agentes (investidores estrangeiros) ou seu crescimento acelerado (fundos de investimentos). Além disso, mais recentemente, as medidas de política monetária adotadas pós-setembro de 2008 para reativar o mercado de crédito, como a série de reduções nos depósitos compulsórios, fizeram com que a participação da carteira própria dos bancos no total da dívida se mantivesse nos seus menores patamares, mesmo no auge da crise. 34 Em 2005, houve 31 ofertas públicas de ações na Bolsa de Valores de São Paulo. Em 2007, esse número foi de 122. Avanços também se verificaram no mercado de renda fixa privada e de crédito imobiliário, dentre outros. 35 Conforme acordado com os consultados, os nomes das instituições não serão citados em função das informações estratégicas ofere- cidas. O autor agradece imensamente a colaboração destes, isentando-os, naturalmente, de qualquer impropriedade remanescente. 404 Dívida Pública: a experiência brasileira No que se refere à composição, percebe-se que a visão do mercado é que, passada a fase mais aguda da crise e com o início de um ciclo de redução da taxa Selic, há possibilidade de uma maior prefixação. Atual- mente, mais de 3/4 da carteira própria dos bancos está concentrada em títulos prefixados e indexados à taxa Selic. Entende-se que as LFTs, como instrumento de investimento, já não se justificam, seja pela perspectiva de longo prazo de redução da taxa de juros, seja pela alternativa cada vez mais difundida de replicá-las por meio de instrumentos sintéticos. Além disso, a própria estratégia do Tesouro Nacional de, nos momentos propícios, refinanciar proporções cada vez menores desses títulos pode induzir a aquisição de outros instrumentos, não só prefixados, mas também indexados a índices de preços. No entanto, em termos de liquidez, a demanda por LFT ainda se sustenta, em função do elevado passivo dos bancos em CDI e com prazos curtos. Em termos de prazo, há um consenso de que a estabilidade desempenha papel crucial nesse processo, principalmente porque afeta a percepção de risco dos agentes que atuam na ponta longa da curva. Apesar de o movimento em direção a prazos mais longos não ser tão nítido quanto a mudança na composição, com o ganho de liquidez dos instrumentos atrelados a índices de preços, inclusive em função de novos agentes presentes no mercado, esses títulos podem ganhar atratividade, o que implicaria naturalmente um alongamento dessa carteira. Nesse sentido, é importante notar que entre 2007 e 2008 houve um ganho em termos de alongamento dos prazos dessa carteira, que não se perdeu mesmo com o aprofundamento da crise financeira.36 4.2 Para onde vão os investidores institucionais? O principal segmento entre os investidores institucionais é o de previdência complementar, ou privada, por seus objetivos de investimento mais homogêneos, por sua representatividade na dívida e também por suas perspectivas de crescimento. Em 2008, o nível de reservas do mercado previdência complementar (aberta e fechada) alcançou a marca de R$ 560 bilhões. Há cinco anos, essas reservas estavam na casa de R$ 200 bilhões, o que significa uma expansão de quase 200% no período. Mesmo no atípico ano de 2008, as captações no mercado superaram as perdas, principalmente da carteira de renda variável, fazendo com que os ativos de investimento do segmento ainda apresentassem crescimento de cerca de 2% em relação a 2007. Talvez seja demais imaginar que a indústria mantenha essa trajetória, uma vez que importantes mu- danças estruturais que contribuíram para esse crescimento já estão próximas de esgotar seus efeitos e que atualmente a arrecadação líquida ocorre somente no segmento de previdência aberta. No entanto, justamente esse potencial da previdência aberta ainda é difícil de mensurar, tanto no ramo de planos empresariais como de planos individuais, tendo nos últimos anos contrariado as previsões do próprio setor, que esperava um crescimento em torno de 10% ao ano a partir de 2003.37 A carteira de investimento de previdência aberta quase triplicou de 2003 até dezembro de 2008, sain- do de R$ 48,5 bilhões para R$ 141,9 bilhões, tendo expandido seu patrimônio em 11,5% no difícil ano de 2008. Com esse crescimento no período – superior a R$ 20 bilhões em média por ano, segundo a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi) –, a previdência privada pode vir a liderar o segmento de investidores institucionais no Brasil em um horizonte não muito distante no tempo.38 36 Ao final de 2007, mais de 75% da carteira de títulos públicos das tesourarias estava concentrada em títulos até três anos; um ano depois esse percentual havia caído cerca de 65%. 37 Ver http://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias/especial/refprev/pronunciamentos/anapp.pdf). 38 Reforçando a idéia de concentração do mercado financeiro brasileiro, vale destacar que, segundo a Fenaprevi, em dezembro de 2008 as maiores administradoras de previdência aberta em termos de carteiras de investimento do país eram: Bradesco Vida e Previdência (37,58%), Itaú Vida e Previdência (17,20%), Brasilprev (13,83%), Unibanco Vida e Previdência (6,52%), Caixa Vida 405 Estruturalmente, o fato de o sistema oficial de previdência não garantir poder de compra para as faixas salariais mais elevadas, o elevado número de empregados autônomos no mercado de trabalho, além de outros simplesmente não servidos por sistemas fechados de previdência e o próprio amadurecimento financeiro da população39 são razões naturais para o desenvolvimento do mercado de previdência aberta. Deve-se somar a isso a alternativa que algumas empresas encontraram de oferecer previdência comple- mentar para seus funcionários por meio de fundos abertos, isentando-se, assim, dos custos de organização, controle e gestão de um fundo de previdência fechado. Outro importante atrativo é o diferencial tributário. Se a pessoa física tem objetivos de longo prazo para seu investimento, a tabela regressiva do Imposto de Renda no fundo de previdência torna-o mais favorável que o fundo de investimento. Paralelamente a isso, o contribuinte pode se creditar do valor que contribuiu para a previdência quando da declaração de ajuste anual do Imposto de Renda. Como a rentabilidade dos dois produtos (fundos de previdência e de investimentos) não é expressivamente diferente, acaba sendo vantajosa a aplicação em fundos de previdência, ainda que o objetivo do investimento possa não ser, ao final, previdenciário. Em termos de aplicações desse segmento, segundo pesquisa da consultoria NetQuant,40 os fundos sem aplicações em renda variável em 2007 representavam 76,62% do mercado – fundos multimercado sem renda variável e fundos de renda fixa –, ao passo que 23,4% dos recursos estavam em fundos compostos (com renda variável). Já em termos de patrimônio, em 2008 a Fenaprevi afirmava que 90% das aplicações estavam em renda fixa.41 Em 2007, ano de desempenho altamente positivo das aplicações em renda variável, os fundos capta- ram R$ 13,77 bilhões, sendo 88,7% por fundos compostos e 11,3% por aqueles que aplicam somente em renda fixa. Em 2006, a captação tinha sido 14,5% e 85,5%, respectivamente, entre esses segmentos. Essa significativa alteração, no entanto, ainda irá demorar a se refletir na demanda por títulos públicos, que ainda são o principal ativo do segmento. Um forte indício disso é o fato de a legislação abrir a possibilidade para a comercialização de fundos compostos de três categorias até 15%, até 30% e até 50% em ações. No entanto, em 2007, aqueles que podiam aplicar até 50% em ações alocaram de fato 25,6% (em média) nesses ativos; os que podiam até 30% alocaram apenas 18,5%; e os que podiam investir até 15% alocaram cerca de 9,0% em ações. Em um cenário no qual os ganhos da renda variável não sejam tão expressivos como o foram em 2007, o crescimento dessa parcela de ativos na carteira da previdência aberta deve se dar de maneira mais lenta, abrindo espaço para os títulos públicos. Um grande desafio para a previdência complementar aberta é o estabelecimento de arcabouço regu- latório que promova maior aderência dos objetivos de poupança do investidor com sua gestão, mesmo para as reservas já constituídas. Na previdência aberta, principalmente nos planos que não aplicam em ações, um fator é determinante da gestão dos ativos: a concorrência. Uma posição totalmente casada de ativos e e Previdência (5,12%), Real Tokio Marine (4,24%), Santander Segs (3,66%), HSBC Vida e Previdência (3,09%), Sul América Seg. Prev. (2,03%), Icatu Hartford Seguros (1,81%). Assim, das dez maiores instituições do ramo, oito estão ligadas aos dez maiores conglomerados do sistema financeiro. 39 Nesse sentido, destaca-se pesquisa realizada com jovens brasileiros pela Quorum Brasil – Informação e Estratégia (http:// www.quorumbrasil.com/sondagens/2007_08_Os_Jovens_e_os_Investimentos.pdf, que mostra já estar se formando no país uma preocupação com investimentos de longo prazo, inclusive em termos previdenciários. Outra pesquisa da mesma instituição in- dica a preocupação das classes B e C com previdência privada (http://www.quorumbrasil.com/sondagens/2007_02_As_Clas- ses_Sociais_e_os_Investimentos.pdf). 40 Ver https://www.netquant.com.br/content/view/120/66/. 41 Ver http://www.luterprev.com.br/noticia-detalhe.php?NoticiaID=62. 406 Dívida Pública: a experiência brasileira passivos pode fazer com que se perca rentabilidade no curto prazo, principalmente tomando o CDI como benchmark. O plano que assim o fizesse, provavelmente perderia competitividade em relação aos demais no curto prazo. Se o investidor não tem em mente os objetivos de longo prazo da gestão, pode portar seus recursos para outro fundo caso o seu esteja abaixo do benchmark, o que não ocorre com as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC). No entanto, ainda que tenha havido uma retração desse movimento em função da crise financeira internacional, no longo prazo a tendência é que cada vez mais as pessoas optem por planos compostos, não só nos planos novos, mas também por meio da portabilidade. Nessa nova configuração, o benchmark do CDI perde sentido, e da mesma maneira que há uma alocação maior das reservas em ações, pode haver um alongamento da carteira de títulos públicos, buscando prazos mais aderentes aos objetivos previdenciários e maiores rentabilidades. O que se pode esperar disso é o desenvolvimento adicional do mercado financeiro brasileiro e o alinhamento maior da demanda de títulos públicos pela previdência aberta com as diretrizes do Tesouro Nacional de alongamento e melhora da composição da dívida. 4.2.1 O que esperar dos fundos de pensão brasileiros em relação à dívida pública? As Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC), também conhecidas como fundos de pensão, formam um segmento muito importante para a administração da dívida pública. Apesar de os ativos de investimento do segmento terem duplicado entre dezembro de 2002 e dezembro de 2006, atingindo em 2008 a cifra de R$ 417,5 bilhões, o segmento não tem feito captações líquidas desde 2004, e no último ano, em função das aplicações em renda variável, viu seus ativos se reduzirem em 3,3%. Os participantes dos fundos de pensão são aqueles indivíduos que, de fato, aportam recursos para o fundo. Como se percebe no Gráfico 11, a tendência de estagnação/queda no número de participantes foi rompida em 2006, em grande medida pela criação dos fundos de pensão instituídos.42 Todavia, o crescimento verificado, sendo muito mais um resíduo do movimento de 2005 para 2006, não dá segurança de que esse instrumento será capaz de mudar a trajetória do sistema de previdência complementar fechado, determinada pelo amadurecimento dos planos existentes e pela alternativa que as empresas têm buscado para oferecer previdência complementar a seus funcionários (planos de previdência abertos). Um dos fatores que pode amenizar essa tendência de estagnação e queda é a institucionalização de um regime de previdência complementar para os servidores públicos da União e o aprofundamento da criação de regimes próprios de previdência em estados e municípios. Em particular, no caso do governo federal, há a necessidade de regulamentar emenda constitucional que trata do tema, e, para tanto, é necessário que o projeto de criação do fundo de pensão dos servidores federais seja votado no Congresso Nacional. Como a migração do regime atual de previdência para o regime de previdência complementar não deverá ser incen- tivada, em função dos problemas de caixa que geraria para a União, o crescimento desse fundo deve se dar de maneira gradual, conforme entrem novos funcionários no serviço público. Não havendo no curto prazo perspectiva de crescimento significativo das contribuições líquidas, o papel desse segmento na dívida pública deverá ser exercido pela carteira já existente, bastante carregada de títulos públicos. Com o movimento ocorrido no mercado de ações na segunda metade de 2008, estima-se que, entre carteira própria (participação direta) e aplicações em fundos de investimentos (participação indireta), o per- 42 Fundo criado a partir do vínculo associativo, ou seja, do vínculo com sindicatos, conselhos de profissionais ou en- tidades associativas. 407 Gráfico 11. Participantes nos fundos de pensão Fonte: CVM e Banco Central do Brasil. Elaboração: Secretaria do Tesouro Nacional centual dos títulos públicos no total dos ativos das EFPCs, que já era elevado (43% em 2006), chegou a 50%. Essa concentração é muito maior se for retirado o efeito da carteira da maior entidade do setor, em termos de ativos de investimentos, a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), que tem uma participação em renda variável superior à média das outras entidades. Os investimentos em renda fixa, que representavam cerca de 65% da carteira do segmento em novembro de 2008, sem a Previ representariam 76,8%, enquanto a participação em renda variável cairia de 27% para 15,7%.43 Além disso, os fundos de pensão já conviveram, em meados de 2007, com a realidade de adquirirem títulos públicos que não mais garantiam a meta atuarial – geralmente em torno de 6% mais um índice de inflação. Essa experiência gerou a necessidade de pensar em uma maior exposição a riscos (NUNES; SIMÃO, 2007). Em função disso, é esperado que o espaço para contribuição dos fundos de pensão na estratégia de mudança na composição da dívida seja reduzido, pois o movimento de realocação de ativos das EFPCs que se observou até o aprofundamento da crise em setembro de 2008 foi muito mais no sentido de buscar novas oportunidades em outras classes de ativos.44 Com a estratégia recente de afrouxamento da política monetária para reativar a economia, novamente os fundos de pensão estarão se deparando com a realidade de que a aplicação em títulos públicos pode não ser a garantia de alcance da meta atuarial. Adicionalmente, um alon- gamento da carteira está limitado pela maturação dos planos de benefícios. Assim, acredita-se que o papel a ser desempenhado por essas entidades no mercado de dívida será muito mais qualitativo que quantitativo, desenvolvendo o mercado secundário, difundindo novos benchmarks para a gestão de renda fixa (IMA) e disseminando uma cultura de poupança de longo prazo no país. 43 Destaca-se que o expressivo tamanho da carteira de renda variável da Previ, superior a 50% de sua carteira total, é decorrência da forte participação dessa empresa no processo de privatização ocorrido no país no final da década de 1990. A entidade já está seguindo um plano de enquadramento para, até 2012, estar em consonância com a regulamentação do setor, que estabelece limite máximo de 50% em aplicações em renda variável. 44 A já citada atualização do estudo da Towers Perrin indica, por exemplo, uma redução de três pontos percentuais (p.p.) na partici- pação da carteira de renda fixa no total dos investimentos dos fundos de pensão entre 2005 e 2006 e uma elevação nas aplicações em instrumentos de crédito (CDB, FIDC, CRI e outros), de oito p.p. entre 2006 e 2007. 408 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 3. Maiores EFPC em ativos totais (R$ bilhões) – dez./2008 EFPC Principal patrocinador Ativos totais % do total Previ Banco do Brasil 116,72 26,4% Petros Petrobras 45,20 10,2% Funcef Caixa Econômica Federal (CEF) 32,52 7,3% Fundação Cespe Eletropaulo/Cespe/CPFL/Cteep 20,09 4,5% Valia CVRD 9,89 2,2% Sistel Telebrás e outras empresas de telefonia 9,35 2,1% Itaubanco Banco Itaú 9,27 2,1% Banesprev Banespa 9,18 2,1% Forluz Cemig 8,20 1,9% Centrus Banco Central do Brasil 7,40 1,7% Subtotal 267,81 60,5% Total 442,87 Fonte: Secretaria de Previdência Complementar/Ministério da Previdência Social (MPS) 4.3 O futuro com investidores não residentes A presença dos investidores não residentes no mercado financeiro brasileiro não é recente. Com a aceleração do processo de abertura da economia brasileira, em meados dos anos 1990, houve um aumento do volume de recursos vindo do exterior para o mercado de capitais do país. Esse volume, quase na sua inte- gralidade direcionado para o mercado de ações, teve um crescimento ainda mais acelerado graças ao processo de privatização. Todavia, a crise cambial, que chegou a seu ápice em janeiro de 1999, acabou abortando o processo de entrada desses investidores no país, e a carteira de renda variável, que havia alcançado quase US$ 50 bilhões em julho de 1997, caiu para menos de US$ 10 bilhões em fevereiro de 2003, graças também à própria desvalorização do real. A segunda onda de entrada de investidores estrangeiros para aplicações em carteira começou justamente após a crise de confiança das eleições de 2002, trazendo uma peculiaridade em relação ao movimento anterior: algumas aplicações em renda fixa, já que esse mercado estava um pouco mais desenvolvido. Tal desenvolvimento não se limitava à renda fixa privada, mas também decorria de importantes mudanças promovidas pelo governo no mercado de títulos públicos. A adoção da isenção do Imposto de Renda para investimentos estrangeiros em títulos públicos em 2006, já referida anteriormente, foi mais um impulso para esses agentes. Paralelamente a essas medidas, os avanços institucionais e a manutenção de uma política econômica bem estruturada, num cenário internacional altamente benigno, garantiram ao Brasil uma considerável evolução na sua classificação de risco. De 2003 até junho de 2007, o Brasil subiu de três a quatro posições nas escalas das três principais agências (Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch). Esse processo culminou com o alcance do grau de investimento, em abril de 2008, pela Standard & Poor’s, e em maio, pela Fitch. Destaca- se que essa classificação de risco deve ser encarada como um importante indicativo da solidez da economia brasileira, principalmente levando-se em consideração que a crise financeira americana já era evidente desde meados de 2007.45 45 Vale destacar que, para a agência Standard & Poor’s, desde maio de 2007 a dívida soberana de longo prazo em moeda local já era considerada investment grade. Para as outras duas agências (Moody’s e Fitch), o rating em moeda local era igual ao rating em moeda estrangeira. Para mais informações, ver box da seção 3, do Capítulo 4 da Parte 1. 409 Assim, a carteira de títulos públicos dos não residentes só começou a se expandir mais expressivamente após 2006, depois de receber o mesmo tratamento tributário dado aos investimentos em ações. No entanto, percebe-se ainda um potencial de crescimento da participação do investidor não residente, principalmente se considerando que os ganhos que o país teria no mercado de títulos públicos decorrentes do grau de investimento não puderam ser totalmente auferidos em função da crise internacional. Some-se a isso a desvalorização e a saída das aplicações em ações decorrentes da crise e entende-se a mudança expressiva na composição da carteira de não residentes nos últimos 18 meses.46 Gráfico 12. Composição da carteira de ativos dos investidores não residentes – dez./2008 Fonte: Comissão de Valores Mobiliários e Banco Central Independentemente do quadro que emergirá da crise financeira recente, o investimento de não residentes em títulos da dívida doméstica brasileira no longo prazo será também influenciado pela trajetória recente da dívida externa soberana. De janeiro de 2005 para dezembro de 2008, a Dívida Pública Federal externa (DPFe) reduziu-se nominalmente de R$ 157,4 bilhões para R$ 132,5 bilhões, mesmo com a desvalorização do real pós-crise financeira internacional. Com base nos resultados positivos oriundos da reduzida vulnerabilidade do país, com seus impactos nas classificações de risco, a redução da DPFe trará um benefício adicional, alinhado com os objetivos estratégicos do Tesouro Nacional: o aumento do interesse do investidor estrangeiro pelos títulos da dívida doméstica. A posição do Brasil no cenário internacional, com o setor público ostentando a posição de credor externo líquido no auge da volatilidade do mercado internacional, fez com que a questão do financiamento externo pudesse ser considerada equacionada naquele momento. Isso também abre perspectivas bastante positivas para a presença do investidor estrangeiro no mercado financeiro doméstico de títulos públicos, tão logo a situação financeira global apresente os primeiros sinais de normalidade. A recuperação da participação desses investidores na dívida pública dois meses após o auge da crise já é um bom exemplo disso. 46 Em junho de 2007, o percentual da carteira dos não residentes aplicada em ações era superior a 76% e em títulos públicos não chegava a 20%, enquanto ao final de 2008 esses percentuais passaram para 58% e 28,8%, respectivamente. 410 Dívida Pública: a experiência brasileira Antes de setembro de 2008, as estimativas davam conta que menos de 15% dos investidores não residentes na DPMFi eram fundos de pensão, e a grande maioria, 70%, administradores de ativos e fundos mútuos. O restante estaria dividido entre hedge funds, bancos e outras instituições. Se é possível projetar algo sobre o novo mercado financeiro pós-crise, com o fortalecimento da posição econômica e financeira do Brasil externamente e com a remoção de alguns entraves,47 deverá haver incremento substancial na participação dos investidores não residentes na dívida doméstica, superando em muito os 7,4% de participação na DPMFi que se alcançou às vésperas do evento do Lehman Brothers. Associando-se a isso a perspectiva de o Brasil alcançar os níveis historicamente mais baixos de taxas de juros, é razoável supor uma modificação na composição dos próprios investidores estrangeiros, crescendo a participação de fundos de pensão e reduzindo-se a participação de hedge funds. Com isso, o crescimento da participação do segmento como um todo deverá se dar nos títulos nos quais ele já expressa maior interesse – prefixados e indexados a índices de preços, ambos com prazos mais elevados –, o que estaria totalmente alinhado com a estratégia de longo prazo de gestão da DPF no Brasil. Nada leva a crer que haja uma mudança nesse interesse, mesmo com a crise internacional. Com a remoção de alguns entraves ainda existentes, o mercado deve ganhar liquidez a partir da entrada de novos investidores, gerando, em um horizonte mais longo de tempo, um ciclo virtuoso que tenderá a atrair novos recursos de estrangeiros, o que, por sua vez, contribui para o alcance das diretrizes de gestão da dívida pública adotadas pelo Tesouro Nacional. 5 Conclusões Olhando-se além da crise financeira internacional, o Brasil vem vivenciando um contínuo desenvolvi- mento e sofisticação do seu sistema financeiro, o que, por si só, tende a favorecer uma base de investidores mais heterogênea. Assim, todos os ganhos propalados no início deste capítulo tendem a se materializar à medida que os avanços se concretizem: dispersão de riscos e segurança de financiamento para o governo em diferentes cenários, redução da discrepância entre objetivos do investimento e da gestão, qualificação e maior competição entre os gestores de ativos, entre outros. Parte desses ganhos para a gestão da dívida já vem sendo obtida, como visto aqui. Considerando-se a solidez com a qual o mercado financeiro brasileiro tem passado pela crise, as perspectivas de continuidade da política econômica e de reformas que garantam a solidez dos fundamentos econômicos e o crescimento sustentado, juntamente com melhora na percepção de risco do país, forma-se internamente um cenário que gera ganhos também para o setor privado. Nessa configuração, as condições de financiamento do setor público em geral e de refinanciamento da dívida pública em particular melhoram consideravelmente. As tendências apontadas na seção 4 deste capítulo inegavelmente nos conduzem para um cenário otimista. A melhora na composição deve advir da redução da participação das tesourarias – com aumento da participação de prefixados nessas carteiras –, do aumento da participação de fundos de investimento, do Tesouro Direto, das entidades de previdência complementar aberta e dos investidores estrangeiros, que são movimentos já verificados nesse curto espaço de tempo pós-auge das incertezas no mercado mundial. Supe- rado esse cenário, o alongamento deve vir de todos os lados, já que previdência e investidores estrangeiros 47 Como, por exemplo, a ampliação da base de investidores que ocorreu com a nova classificação de risco brasileira. Outros entraves poderão ser retirados ou minimizados ao longo dos próximos anos, tais como padronização da contagem de dias, clearing interna- cional, contratação de câmbio e telas de negociações 411 naturalmente demandam títulos mais longos, e mesmo as tesourarias dos bancos poderão seguir por esse caminho, ainda que em menor escala. Assim, o alongamento e o aprimoramento da composição, que já vêm sendo obtidos, devem ter continuidade, e a busca por uma estrutura de dívida de longo prazo deverá ocorrer em condições mais favoráveis. Nesse contexto, a dívida pública deixa de estar no foco das discussões sobre desenvolvimento do mer- cado de capitais brasileiro e os ganhos passam a retroalimentar o ciclo virtuoso. Reduzindo-se o crowding-out gerado pelo financiamento do governo, abre-se espaço para a captação da poupança para projetos privados, o que dá uma sustentabilidade ainda maior ao crescimento econômico. Referências FENAPREVI. 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Na forma como estão atualmente no relatório, as informações foram usadas somente no primeiro gráfico do capítulo. As informações referentes ao Programa Tesouro Direto, utilizadas na seção 4, são oriundas da Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC), parceira do Tesouro Nacional no programa, que custodia seus títulos, que representam 0,1% da dívida doméstica. A CBLC tem uma conta particular no Selic, de modo que o estoque do Tesouro Direto é capturado pelas estatísticas fornecidas pelo Banco Central. Já as demais informações apresentadas neste capítulo são desagregações das informações que constam na Tabela 5.1 do RMD, por isso também têm como fonte o Selic. Em especial no que se refere à abertura da conta Clientes – Fundos de Investimento, o resultado é um esforço da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central. A primeira instituição passa a composição dos cotistas de cada fundo de investimento para o Banco Central, que distribui a carteira de cada fundo pela proporção de cotistas, de acordo com os registros do Selic. Essas informações estão passando por um processo final de depuração e, em breve, deverão estar disponíveis nos Relatórios sobre a Dívida Pública Federal publicados pela Secretaria do Tesouro Nacional. 413 414 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 6 Mercado secundário da Dívida Pública Federal Fabiano Maia Pereira Guilherme Binato Villela Pedras José Antonio Gragnani 1 Introdução Uma das principais precondições para o financiamento público ser eficiente é a existência de um mer- cado secundário desenvolvido de títulos públicos. É nas negociações em mercado secundário que se formam as referências de preços dos diversos ativos, as quais, por sua vez, vão determinar o custo de financiamento do governo. Da mesma forma, a facilidade com que investidores entram e saem desse mercado, ou seja, a liquidez, representa variável relevante na determinação do interesse das diversas classes de investidores. Assim, dentre as tarefas de gerenciamento de dívida, inclui-se a busca por um contínuo aperfeiçoamento do mercado secundário. Este capítulo pretende mostrar o estágio atual de desenvolvimento do mercado secundário de títulos públicos no Brasil, suas características e os esforços envidados ao longo dos anos no sentido de dar maior liquidez e transparência a ele. A seção 2 apresenta as principais estatísticas desse mercado, as quais refletem seu estágio atual e estrutura, enquanto a seção 3 mostra suas características no Brasil. Por fim, a seção 4 discorre sobre o aperfeiçoamento observado no mercado secundário de títulos públicos ao longo dos últimos anos. Cabe destacar que o foco deste capítulo será maior no mercado secundário doméstico, por ser, como veremos, o mais relevante para a gestão da Dívida Pública Federal brasileira. 2 Mercado secundário atual Para a maioria dos países emergentes, atualmente o mercado doméstico apresenta um volume negociado superior ao negociado no mercado externo. Do total negociado em 2008 em títulos públicos de mercados emergentes (US$ 4,1 trilhões), cerca de 70% (US$ 2,8 trilhões) representam negociações de instrumentos locais,1 o que mostra a importância dessa fonte de financiamento para os governos de mercados emergentes. Nesse segmento (mercados locais), o mercado secundário brasileiro de títulos públicos é bastante pujante, em especial se comparado com os demais países emergentes. De fato, em 2008 foram negociados no mercado brasileiro o equivalente a 20,8% (US$ 591 bilhões) do total negociado em mercados emergentes locais. 2.1 Precondições internacionais O Banco Mundial, em recente pesquisa piloto com 12 países2 que apresentam as mais diversas experiên- cias econômicas e localizações geográficas, detectou que, para uma boa performance do mercado secundário, 1 Fonte: EMTA. 2 Para maiores detalhes, ver World Bank (2007). 415 são necessárias algumas premissas e precondições. De acordo com aquela instituição, o bom funcionamento do mercado secundário promove a avaliação dos ativos financeiros de forma mais eficiente e transparente, possibilita melhor administração do risco, eleva a liquidez e potencializa o mercado primário. O ambiente que congrega negociação de títulos públicos com vencimentos mais longos e parâmetros considerados mais justos permite ao governo emitir instrumentos financeiros com menor custo e baixo risco de refinanciamento. As precondições apresentadas pela pesquisa como essenciais para um bom funcionamento do mercado secundário e condutoras de melhorias na gestão da dívida pública podem ser resumidas por: a) um sistema de dealers normatizado, com direitos e obrigações associados ao cumprimento de metas de negociação, além de dar maior credibilidade ao mercado, estimula o crescimento da liquidez; b) a existência de alternativas que amplifiquem o número de participantes, mesmo em momentos de maior volatilidade, possibilitando a saída de posições desfavoráveis em condições competitivas. Tal caracterís- tica é fundamental para compatibilizar o interesse do emissor de alongar a dívida e a demanda dos investidores por mercados líquidos;3 c) uma base ampla e diversificada de investidores e agentes financeiros, composta por instituições fi- nanceiras, investidores institucionais, corretoras, empresas e pessoas físicas e pelas diversas classes de fundos; d) a presença de investidores não residentes, os quais, em geral, apresentam a capacidade de negociar títulos mais longos. No entanto, a presença dessa classe de investidores necessita de maior liberalização da conta financeira do país e de bons fundamentos econômicos; e) a padronização dos títulos da dívida pública – como unidade de negociação, padrão de contagem de tempo e de entrega do ativo –, a concentração de vencimentos e o sistema de reofertas, os quais au- mentam a liquidez e facilitam emissões de ativos longos com rentabilidade prefixada. Esse alongamento da dívida, somado à colocação de títulos prefixados, por sua vez, diminui a exposição ao risco de juros e de refinanciamento do governo; f) a existência de um mercado de balcão representativo, pois este permite a personalização de produtos financeiros, implicando um aumento de participantes; g) o uso de sistemas eletrônicos, os quais aumentam a eficiência do mercado na medida em que permitem aos participantes visualizar as ofertas (maior transparência), minimizando limitações e informações as- simétricas dos parâmetros necessários para a precificação dos títulos. Esses fatores aumentam o número de investidores e, consequentemente, a liquidez do mercado; h) a existência de regras claras de conduta, as quais previnem a fraude e a manipulação de mercado. Essas regras podem ser estabelecidas pela autoridade reguladora ou via autorregulação pelas associações dos participantes do mercado. Portanto, dada a importância dos fatores anteriormente listados para o aumento de liquidez, da consolidação do mercado secundário e, em última instância, da melhoria das condições de financiamento do poder público, o restante do capítulo será voltado para descrever as características e as estatísticas mais 3 Estruturas sofisticadas, existentes no mercado financeiro, podem ser úteis. O short selling, por exemplo, é um mecanismo impor- tante para reduzir riscos, pois os investidores que detêm posições vendidas atuam no sentido de amortecer impactos em momentos de volatilidade. Não menos importante é o mercado de juros futuro, que permite a proteção de posições compradas. 416 Dívida Pública: a experiência brasileira importantes do mercado secundário da Dívida Pública Federal doméstica brasileira e desenvolver as ideias que permearam a busca pela melhoria desse mercado. Como se verá, as precondições apresentadas antes são geralmente existentes no Brasil e mesmo aquelas incipientes ou inexistentes são objeto de discussão pelos participantes do sistema financeiro, pelas entidades de classe, pelos investidores e pelos órgãos governamentais diretamente relacionados. 2.2 Conjuntura econômica e dados recentes do mercado secundário doméstico Alguns períodos na história recente do Brasil merecem ser analisados com mais cuidado, pois impac- taram diretamente o mercado secundário de títulos da dívida pública doméstica. Vale ressaltar as medidas anunciadas em 1999, quando o Tesouro Nacional e o Banco Central constituíram grupo de estudo para aperfeiçoar o mercado secundário (assunto desenvolvido na seção 4.1). Outro momento da história que deve ser mencionado é o período pré-eleitoral em 2002, quando as incertezas geradas trouxeram volatilidade e aumento do risco Brasil.4 Em 2003, o novo governo,5 para fazer frente às expectativas dos analistas quanto à condução das políticas monetária e fiscal, tomou uma série de medidas, dentre as quais: i) revisão e anúncio de metas de inflação condizentes com a realidade do período, de 8,5% e 5,5%, respectivamente, para os anos de 2003 e 2004; ii) aumento da taxa Selic para 26,5% ao ano; iii) elevação da meta de superávit primário de 3,75% do PIB para 4,25% no ano de 2003; e iv) envio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) ao Congresso para reforma da previdência social e do sistema tributário. Após a adoção das medidas e a confirmação de que as diretrizes das políticas monetária e fiscal permaneceriam, a confiança no governo foi restabelecida, e a cotação real/dólar, o risco país, a inflação corrente e as expectativas de inflação voltaram a cair.6 O mercado secundário brasileiro também foi afetado por medidas anunciadas para fazer frente às incertezas de 2003, quando o Tesouro Nacional explicitou, por meio de seu Plano Anual de Financiamento (PAF) referente àquele ano, as seguintes diretrizes : 1) reduzir o percentual vencendo no curto prazo para níveis considerados confortáveis, minimizando o risco de refinanciamento; 2) reduzir a participação das dívidas indexadas à variação cambial e à taxa de juros; 3) aumentar a participação das dívidas prefixadas e remunera- das por índices de inflação; 4) manter a divulgação, ao final de cada mês, de cronograma de leilões a serem realizados no mês subsequente; e 5) manter aproximação com os participantes de mercado, colocando de forma transparente a estratégia definida para a condução do PAF. Essas diretrizes, como argumentadas adiante, foram bem-sucedidas e culminaram em mudança significativa no comportamento do mercado, aumentando a liquidez e reduzindo os diferenciais entre preços de compra e venda dos ativos negociados no mercado secundário. 4 No período observou-se deterioração de diversos indicadores: i) a cotação R$/US$, inicialmente em R$ 2,30 no início de 2002, chegou próximo a R$ 4,00 com a aproximação da eleição, impactando a inflação corrente, que chegou a atingir 3,0% a.m. no final de 2002; ii) as expectativas de inflação, medidas pelo IPCA, saltaram de 5,5% a.a. para 11,0% a.a. em menos de dois meses; e iii) a Dívida Pública Federal fechou o ano de 2002 em 55,5% do PIB, com predominância da indexada ao câmbio e à taxa Selic. 5 Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição direta para presidente da República, recebendo a faixa de presidente de Fernando Henrique Cardoso, em 1º de janeiro de 2003. O Partido dos Trabalhadores, vencedor das eleições, possuía bandeira histórica em defesa de mudanças na forma de condução das políticas monetária e fiscal, fazendo com que sua vitória fosse motivo de apreeensão entre os agentes econômicos, principalmente os de mercado financeiro. 6 Mesmo com as políticas adotadas no início do governo, a relação Dívida Pública Federal/PIB ainda se elevou para 57,2% no final do ano de 2003. No entanto, como consequência das políticas monetária e fiscal implementadas, o ano de 2004 experimentou uma reversão nesse indicador, ao mesmo tempo em que as novas diretrizes de gestão da dívida pública se fizeram sentir em seu perfil, que se apresentou muito mais robusto. 417 Na Tabela 1, pode-se observar que, no final de 2002, a Dívida Pública Federal (DPF) era composta de apenas 1,5% e 8,8% de títulos prefixados e remunerados por índices de preços, respectivamente, enquanto em dezembro de 2008 tais instrumentos já respondiam por 29,9% e 26,6% de seu estoque em mercado. Por sua vez, a dívida indexada à variação cambial (nela incluída a dívida externa) caiu de 45,8% da DPF para 9,7%, e a corrigida pela taxa de juros Selic diminuiu de 42,4% para 32,4% ao final de 2008. Esses movimentos na estrutura da dívida pública trouxeram, entre outros fatores que possibilitaram sua melhor gestão, a diminuição do risco sistêmico e a maior previsibilidade dos pagamentos. Tabela 1. Composição da Dívida Pública Federal (DPF) Fonte: STN Após a mudança no perfil da dívida, o mercado secundário brasileiro de títulos públicos apresentou uma sensível modificação nos ativos negociados, conforme descrito na Tabela 2. Enquanto em dezembro de 2002 os títulos indexados a juros e variação cambial (LFT/LFT-A/LFT-B e NTN-D/NBCE, respectivamente) respondiam por 88,2% das negociações diárias, ao final de 2008 estes mesmos títulos representavam cerca de 30,0% do mercado secundário total de títulos públicos. Por sua vez, os títulos prefixados (LTN e NTN-F), que em dezembro de 2002 detinham apenas 2,6% do mercado secundário total, atingiram 62,2% em 2008. Os títulos indexados à inflação (NTN-B e NTN-C) mantiveram sua participação em torno de 9%. En- tretanto, no caso desses instrumentos, cabe fazer uma ressalva. Nos anos de 2003 e 2004 ocorre uma queda significativa de sua importância em termos relativos (para 4,9% e 2,3%, respectivamente) explicada, entre outros fatores, pela percepção de que as políticas monetária e fiscal garantiriam a estabilidade macroeconômica, reduzindo a demanda por títulos que protegiam o investidor contra o risco de inflação. Já o aumento das negociações a partir do ano de 2005 está relacionado principalmente à estratégia do Tesouro Nacional de priorizar a emissão de NTN-Bs em detrimento das LFTs. Atualmente, os agentes participantes de mercado negociam essencialmente três tipos de títulos: Letra do Tesouro Nacional (LTN) e Nota do Tesouro Nacional – série F (NTN-F), títulos prefixados; Nota do Tesouro Nacional – série B (NTN-B), indexada ao IPCA;7 e Letra Financeira do Tesouro (LFT), instrumento indexado à taxa Selic.8 Além da mudança no perfil dos títulos negociados no mercado secundário, também ocorreu aumento consistente durante os últimos anos no volume médio diário de negócios,9 com esse indicador saindo de 7 Índice de Preços ao Consumidor Amplo, calculado pelo IBGE. 8 Taxa básica de juros overnight, calculada pelo Banco Central, referente às operações compromissadas por um dia. 9 Sabe-se que, dado um aumento no estoque do ativo, é perfeitamente natural que ocorra uma elevação em seu volume negociado em mercado. Em outras palavras, para um turnover (razão entre valores negociados e estoque) constante para determinado título público, o simples aumento do seu estoque gera um aumento no volume financeiro negociado. No entanto, o que se propõe aqui é mostrar que a profundidade desse mercado aumentou a partir do entendimento de que é possível entrar e sair do ativo com valores financeiros cada vez mais altos. 418 Dívida Pública: a experiência brasileira R$ 6,8 bilhões em dezembro de 2002 para R$ 13,3 bilhões em dezembro de 2008, demonstrando que as medidas discutidas nas seções seguintes surtiram alguns dos efeitos desejados pelo governo. As alterações ocorridas trouxeram amadurecimento e segurança aos participantes do mercado secundário, na medida em que o planejamento e a transparência implementados pelo governo criaram um novo ambiente e proporcio- naram a alteração do perfil da dívida. Tabela 2. Volume de operações definitivas no mercado secundário Fonte: STN 1 As NBCEs eram títulos indexados pela variação cambial emitidos pelo Banco Central até 2002. Obs.: Os percentuais em cada coluna representam a participação de cada grupo no volume total negociado da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Portanto, sua soma perfaz 100%. Cabe ressaltar que os instrumentos prefixados são emitidos de acordo com uma regra fundamentada em benchmarks, em linha com as melhores práticas internacionais, como pudemos ver na seção 2.1. A partir de janeiro de 2007, as NTN-Fs passaram a ter prazos de emissão de 3, 5 e 10 anos e as LTNs entre 6 e 24 meses. Além de ser um título com prazos mais elevados, a NTN-F difere da LTN por ter pagamento de juros semestrais, enquanto a LTN é um ativo zero coupon. Outra alteração relevante no perfil de negociação pode ser observada quando se tomam as informações analíticas por tipo de título. Nesse sentido, as NTN-Fs vêm ganhando espaço no mercado secundário (con- sequência, por exemplo, de mudanças, tais como o imposto de renda regressivo e a isenção de imposto de renda para não residentes nos investimentos em títulos públicos domésticos10), aumentando sua participação de praticamente nula no mercado secundário em dezembro de 2002 para 9,5% em dezembro de 2008. No caso dos títulos corrigidos pela inflação, há uma clara preferência pela negociação dos indexados ao IPCA, as NTN-Bs, cuja participação no mercado secundário era insignificante em dezembro de 2002 e atingiu 8,1% ao final de 2008, enquanto os indexados pelo IGP-M,11 as NTN-Cs, recuaram de 9,2% para 0,5% entre os anos de 2002 e 2008 (ver Tabela 3). 10 Este tema será discutido mais adiante neste capítulo. 11 Índice Geral de Preços – Mercado, calculado pela FGV. 419 Tabela 3. Volume de operações definitivas no mercado secundário Fonte: BCB Elaboração: STN. Obs.: Os percentuais representam a participação de cada título no volume total negociado da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Portanto, sua soma perfaz 100%. 2.3 Dinâmica da negociação Os títulos são negociados no mercado doméstico brasileiro com base em taxas, diferentemente do observado no mercado internacional, no qual as negociações são efetivadas em preço limpo.12 As taxas são padronizadas com base em dias úteis (du/252), incluindo o dia da liquidação e excluindo o dia do vencimen- to.13 No intuito de padronizar a contagem de dias, o Banco Central14 determina que o critério adotado para a expressão da taxa de rentabilidade associada ao preço de títulos públicos federais registrados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) será du/252.15 Como mencionado anteriormente, a maioria das negociações realizadas atualmente no mercado se- cundário é de instrumentos prefixados. Entretanto, uma peculiaridade do mercado brasileiro é a existência de contratos derivativos de taxas de juros bastante líquidos (DI Futuro, negociado na Bolsa de Mercadorias e Futuros –BM&F), em consequência da própria liquidez dos ativos, da credibilidade da clearing, em que tais ativos são negociados, e da baixa necessidade de aportes financeiros para a execução da operação.16 Dessa forma, a referência da taxa de juros prefixados para diversos prazos é constituída em grande parte nesse mercado, e os títulos públicos prefixados costumam ser negociados em pontos base (basis points) em relação aos derivativos de juros futuros negociados na BM&F. Cabe aqui uma discussão maior sobre esse derivativo conhecido como DI Futuro. Ele é um swap de taxa prefixada e DI de um dia.17 Se o investidor compra o derivativo (em taxa), ele fica com posição ativa em CDI e passiva em prefixado, e vice-versa no caso de venda. A forma mais comum, atualmente, de negociação do título prefixado é aquela na qual se compra ou vende o título “casado” com o derivativo de juros futuro 12 Para maior entendimento desse assunto, ver Capítulo 2 da Parte 3. 13 Conforme determinado pelo Ministério da Fazenda na Portaria nº 116 de 28 de maio de 1999. 14 Conforme Comunicado BC nº 7.818 de 31 de agosto de 2000. 15 A exceção é a NTN-D (Nota do Tesouro Nacional – Série D), que utiliza 30/360 como padrão de contagem de dias para manter equivalência com o padrão internacional, dado que é indexada pela cotação cambial. 16 Para negociar nesse mercado, deve-se depositar apenas margens de garantia, que são, inicialmente, em montantes sensivel- mente mais baixos que o seu valor nocional (de referência). Além disso, há a necessidade de recursos disponíveis para honrar pagamentos no caso de ajustes negativos. 17 Taxa média de depósito interfinanceiro de um dia, calculada pela Central de Custódia de Liquidação Financeira de Títulos (Cetip). Esse assunto será discutido mais à frente neste capítulo. 420 Dívida Pública: a experiência brasileira (geralmente de mesmo vencimento). Ao comprar o título ao mesmo tempo em que se compra o derivativo, obtém-se um produto que paga CDI +/- spread. Dado que o benchmark de boa parte da indústria de fundos e de grande parte dos bancos comerciais é o CDI, esse instrumento é muito demandado em substituição às LFTs. As NTN-Fs, apesar de não apresentarem durations18 iguais a seus vencimentos, são negociadas com spreads em relação aos derivativos de mesmo vencimento. Nesse caso, o hedge é feito, geralmente, comprando-se a mesma quantidade de DV0119 (Dollar Value of One Basis Point) de título e de derivativo. Essa peculiaridade, aliada a uma forte característica da base de investidores domésticos, o foco no curto prazo, traz uma sinergia importante para o mercado de dívida pública. Ou seja, o Tesouro Nacional vende instrumentos prefixados e o comprador destes pode fazer o hedge no mercado derivativo, repassando o risco prefixado para outro agente. Essa sinergia é verificada ao se perceber que os títulos prefixados mais líquidos tendem a ser aqueles cujas datas de vencimento coincidem com os vencimentos mais líquidos dos contratos de DI Futuro e vice-versa.20 Essa inter-relação é produtiva, pois reduz a exposição dos investidores ao risco de taxas de juros, permitindo o aumento do número de negócios. No entanto, existe o outro lado desse processo de sinergia que pode ser prejudicial ao mercado de títulos públicos. Isto é, quando o mercado de derivativos apresenta uma liquidez muito alta, pode existir uma competição entre os dois instrumentos, resultando em diminuição da liquidez do mercado de títulos públicos. Além disso, no caso específico do Brasil, a ampla utilização, pelo mercado, de títulos prefixados associados a um derivativo (que tem como objeto de negociação uma taxa overnight) perpetua a cultura, no mercado nacional, de negociar instrumentos com prazos mais curtos. No caso das LFTs, a negociação é baseada em uma taxa que reflete o ágio ou o deságio em relação à sua remuneração original. Dado que esse título paga a taxa Selic diária, quando existe um deságio significa que o comprador do título receberá a taxa Selic acrescida de um prêmio. Contudo, quando se compra a LFT com ágio, significa que o comprador receberá a taxa Selic menos um desconto. Esses títulos geralmente apresentam uma volatilidade diária muito baixa, sendo os preferidos dos investidores mais conservadores, que, por terem como referência de remuneração (benchmark) o DI, exigem baixa volatilidade de suas rentabilidades diárias. Esses investidores atualmente dão peso menor para a liquidez do ativo. Já as NTN-Bs são títulos negociados tendo por base as taxas reais de juros, pois pagam a inflação corrente mais uma parcela prefixada. Para facilitar a padronização desses instrumentos e elevar sua liqui- dez com a concentração em determinados prazos, desde 2003 os títulos emitidos passaram a obedecer a seguinte regra: se vencimentos em anos pares, estes deverão ser sempre nos dias 15 dos meses de agosto; se em anos ímpares, os vencimentos ocorrerão nos dias 15 dos meses de maio.21 Os investidores compram esses títulos por motivos diversos, e não excludentes, tais como: i) porque têm seus benchmarks em índices de inflação (como as entidades de previdência complementar, por exemplo); ii) para se protegerem do risco inflacionário; iii) caso acreditem que podem ganhar dinheiro, porque haverá fechamento das taxas reais de juros no mercado; ou iv) quando buscam duration maior (dado que esses instrumentos são os mais longos do mercado – até quarenta anos). Também existem negociações desses títulos associadas ao derivativo de juros futuros. Com o de- senvolvimento do mercado secundário nos últimos anos, agregado à estabilidade da economia, a inflação 18 Para maior aprofundamento do tema, ver Capítulo 2 da Parte 3. 19 Medida de sensibilidade de um ativo devido à variação de 1 ponto base (do inglês basis point) na taxa. 20 Como apresentado nas seções mais à frente, o mercado secundário de títulos públicos prefixados e o volume de contratos nego- ciados de juros futuros aumentaram consistentemente nos últimos anos. 21 Eventualmente, nos anos ímpares podem ocorrer vencimentos também em novembro. 421 implícita passou a fazer parte das negociações entre os investidores. Isto é, acreditando que a inflação vai ser maior que a diferença entre as taxas dos títulos prefixados e dos indexados ao IPC-A, o investidor fica long (comprado) em um título indexado ao IPCA e short (vendido) em um prefixado. A posição é inversa quando existe a crença de que a inflação futura será abaixo da inflação implícita no diferencial de taxas entre os dois títulos. 2.4 Mercado secundário de títulos da dívida externa O Brasil apresenta um mercado secundário de títulos da dívida externa bastante ativo, tendo o maior volume de negociação entre todos os países emergentes. Em 2008, os títulos soberanos brasileiros negociados no mercado internacional somaram US$ 192,5 bilhões, representando 22,5% do volume total de negócios com títulos da dívida externa soberana de países emergentes, o que mostra representarem os ativos brasileiros um importante instrumento para os investidores em mercados emergentes. A constatação anterior, entretanto, ilustra uma característica do mercado de dívida externa de países emergentes, em que os títulos brasileiros se apresentam como benchmarks para toda a classe. De fato, até a operação de troca do C-bond pelo A-bond, em 2005, aquele era o instrumento mais líquido da classe de mercados emergentes. Após a referida operação, essa função passou a ser exercida pelo global 2040. Com o objetivo de desenvolver a curva de juros dos títulos públicos brasileiros, o Tesouro Nacional tem concentrado esforços, nos últimos anos, no sentido de melhorar a liquidez de vários instrumentos. Assim, a utilização de reaberturas de títulos de prazo benchmark (dez e trinta anos), fazendo com que estes sejam mais líquidos, aumenta a eficiência, com a diminuição dos spreads entre os preços de compra e venda. Dos valores negociados em títulos externos brasileiros em 2008, US$ 80 bilhões referiram-se a negocia- ções do título brasileiro mais líquido (global 2040). Entretanto, os dados da EMTA mostram que a participação do global 40 no total de títulos soberanos brasileiros negociados tem decrescido em relação à dos títulos de dez e trinta anos. Em 2008, sua participação representou 42% do total negociado para o país, ante 52% em 2007 e 56% em 2006, o que mostra uma desconcentração nas alternativas de negociação para os investidores externos. Ainda, as participações dos títulos de dez e trinta anos aumentaram levemente no ano de 2008 para 8% e 13%, respectivamente, em linha com a estratégia de aperfeiçoamento desses benchmarks. 3 Características do mercado Dada a descrição anterior de como se desenvolveu o mercado secundário brasileiro nos últimos anos, nesta seção serão apresentadas as características do mercado secundário de títulos públicos no Brasil, os principais agentes participantes desse mercado e os ambientes de negociação existentes. Na esteira da redução da inflação, processo iniciado em meados da década de 1990, o mercado finan- ceiro brasileiro vem passando por várias modificações, com a implementação de um arcabouço de política econômica centrada em câmbio flexível, meta de inflação e superávits fiscais que garantam sustentabilidade da dívida pública. A partir da queda da inflação, requereu-se do sistema financeiro brasileiro uma reestruturação para a obtenção de maior produtividade, com alguns bancos ajustando-se via redução de pessoal, aumento de produtividade e de tarifas e maior investimento em tecnologia. 422 Dívida Pública: a experiência brasileira Como parte desse movimento, o setor passou por uma série de consolidações, privatizações22 e incor- porações23 que resultou em concentração do próprio setor. Simultaneamente, a criação de novas regras e a introdução da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (ou CPMF) impulsionaram a indústria de fundos de investimento (FI), anteriormente de abrangência limitada, fazendo-a atingir elevada participação em relação às demais formas de aplicação financeira. Os FIs tornaram-se os maiores detentores de títulos públicos, como se pode observar na Tabela 4, sendo representativos em todos os tipos de títulos. As exceções, nas quais os FIs não são os maiores detentores, ficam por conta das NTN-Fs e das NTN-Bs. Em relação às primeiras, o maior grupo detentor é o de carteira própria (das instituições financeiras), explicado pelo fato de a NTN-F ainda não apresentar volumes significativos nos prazos mais curtos e, portanto, possuir risco prefixado mais alto que os demais, o que as torna desinteressantes para os FIs. Ainda no caso da NTN-F, chama a atenção o volume detido pelas pessoas jurídicas financeiras (12,86%), com destaque para os investidores não residentes. Em relação às NTN-Bs, existe uma distribuição mais equânime, devido à maior presença dos fundos de pensão (grandes participantes desse mercado no Brasil). Tabela 4. Detentores dos títulos federais em poder do público24 (composição em relação ao total, por título) Fonte: STN/BCB Obs.: Pessoa Jurídica Financeira (PJFIN); Pessoa Jurídica Não Financeira (PJNF); e Fundos de Investimento (FI). Devido aos altos juros reais observados nos últimos anos, à maior liquidez dos títulos públicos em relação aos demais ativos de renda fixa e ao seu elevado estoque, tais títulos ainda representam parte substancial do mercado de renda fixa no Brasil (cerca de 45% em 2008 – ver Tabela 5). A estabilização das condições macroeconômicas do país e a consequente redução das taxas de juros dos títulos públicos federais vêm permitindo maior procura dos investidores por títulos privados, tais como CDBs e debêntures. Ainda em de- senvolvimento, esse novo mercado de títulos privados tem um enorme potencial de desenvolvimento, com melhorias como padronização, criação de mercado secundário e introdução de derivativos. 22 Principalmente por meio do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes). 23 Principalmente por meio do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer). 24 A posição de títulos públicos existente em “carteira vinculada”, que não aparece na tabela, foi distribuída proporcionalmente aos demais grupos, exceto “outros”, supondo que sua participação se distribui proporcionalmente entre eles. 423 Tabela 5. Mercado de renda fixa no Brasil Fonte: STN, BCB, Cetip e BM&F Elaboração: Andima * Posição em dezembro de cada ano. ** Inclui os títulos agrícolas custodiados na BM&F. *** Inclui RDB e letras de câmbio. 3.1 Mercado de balcão e sistemas de negociação Os títulos públicos brasileiros são, em sua grande maioria, negociados em mercado de balcão (ver Tabela 6), via telefone, diretamente, ou por meio de alguma outra instituição, denominada broker, de forma que não há um ambiente que centralize as negociações e o apregoamento de propostas de compra e venda. Algumas corretoras oferecem pregões próprios em horários definidos, via telefone (call de títulos), nos quais participantes de mercado negociam títulos, inclusive aqueles com liquidez reduzida. Essa prática é importante por reunir um grande número de participantes, negociando instrumentos com liquidez reduzida ao longo do dia e contribuindo para formar referências de preço de modo mais transparente. Apesar da importância desse mecanismo, o ideal seria que o mercado adotasse um ambiente organizado de negociação, com acesso a todos os segmentos que atuam no mercado financeiro, no qual haveria maior transparência e facilidade de regulação. A implementação, em 2004, da Câmara de Compensação (clearing) de ativos, desenvolvida pela BM&F, e a criação da plataforma de negociação da Cetip (CetipNet) foram duas medidas com vistas ao desenvol- vimento do mercado secundário de títulos públicos em ambiente eletrônico de negociação (um dos fatores considerados importantes, conforme citado na seção 2.1). As principais consequências do uso de um sistema eletrônico de negociação são: 1) maior transparência; 2) melhor precificação dos ativos negociados; 3) au- mento da liquidez no mercado secundário; e 4) ampliação da capilaridade do mercado. A transparência e a acessibilidade impulsionam os negócios no mercado secundário, contribuindo para a consolidação da estrutura a termo da taxa de juros doméstica. 424 Dívida Pública: a experiência brasileira Cabe ressaltar que o mercado secundário em sistema eletrônico vem ganhando espaço com a introdução, pelas autoridades fiscalizadoras, de medidas de incentivo, tais como o fato de as negociações das entidades de previdência complementar deverem ser feitas preferencialmente em plataformas eletrônicas. 25 Associado à intenção de desenvolvimento do mercado eletrônico como um mercado organizado e de aumento de transparência, o Tesouro Nacional e o Banco Central apresentaram regulamentação da atuação do dealer especialista, que foi implementada no primeiro semestre de 2008. Nessa proposta, as instituições classificadas como dealers especialistas têm como meta a abertura de spread em sistema de negociação para determinados títulos em períodos de trinta minutos pela manhã e à tarde. O modelo busca dar maior trans- parência aos parâmetros de mercado para ativos de emissão do governo e gerar maior liquidez. A instituição, em contrapartida, terá, caso cumpra sua meta mensal, o direito de participar das operações especiais que a STN permite apenas para as instituições dealers.26 Tabela 6. Negociação de títulos públicos federais por ambiente Fonte: Tesouro, Banco Central, Cetip e Sisbex Elaboração: Andima. * Sistemas eletrônicos de negociação de ativos. Obs.: Os percentuais são em relação ao volume total negociado. Portanto, sua soma perfaz 100%. 3.2 O alongamento dos prazos negociados no mercado secundário Como podemos observar na Tabela 6, o mercado de balcão representa a quase totalidade das negocia- ções em mercado secundário. A estabilização econômica, os incentivos das autoridades governamentais, as iniciativas do mercado financeiro, associadas às medidas efetivadas pelo governo no intuito de alongar o prazo da dívida pública e aumentar a liquidez do mercado secundário, podem auxiliar no aumento das negociações por meio de sistemas eletrônicos. Além dessa característica do sistema financeiro brasileiro, o prazo dos títulos mais negociados em mercado secundário, apesar de ter aumentado significativamente nos últimos anos, ainda se apresenta curto. Esse fato está diretamente relacionado à chamada “cultura” do DI. O Depósito Interbancário, ou DI, é um empréstimo interbancário de um dia. A taxa desse empréstimo, calculada pela Cetip, é o principal parâmetro 25 Art. 12, do Regulamento anexo à Resolução CMN nº 3.456, de 1º de junho de 2007, e Resolução CGPC nº 21, de 25 de setembro de 2006, do Conselho de Gestão da Previdência Complementar. 26 Maiores informações sobre o sistema de dealers de títulos públicos serão apresentadas a seguir, neste capítulo. 425 de rentabilidade financeira no Brasil. Em outras palavras, as aplicações no mercado financeiro, mesmo as de prazo mais longo, são frequentemente comparadas com a taxa overnight. No Brasil, seguradoras, entidades de previdência complementar, bancos de investimento, entre outros, que geralmente são participantes potenciais do mercado de títulos públicos de longo prazo, ainda não apresentam essa característica tão evidente quanto nos mercados financeiros mais desenvolvidos. O Tesouro Nacional busca aumentar a base de investidores justamente com o objetivo de alongar a dívida pública ao mesmo tempo em que se eleva a liquidez dos ativos de prazos maiores. Na verdade, as iniciativas do mercado financeiro associadas às medidas efetivadas pelo governo no intuito de alongar o prazo da dívida pública e desenvolver o mercado secundário de títulos públicos (discutidos na seção 4) vêm surtindo efeito como indutoras dessa liquidez. Como demonstrado na seção anterior, o mercado secundário vem aumentando em instrumentos pre- fixados e atrelados a índices de preços de forma consistente, acompanhando a melhoria do perfil da dívida observada nos últimos anos e ainda negociando títulos mais longos. Assim, associado à implementação de uma série de mudanças institucionais, o governo brasileiro obteve um relativo êxito no alongamento da dívida ao mesmo tempo em que aumentou o número de investidores (mais recentemente, a isenção de Imposto de Renda trouxe o investidor não residente, mais familiarizado com títulos mais longos e taxas mais baixas), permitindo melhor gestão da dívida pública brasileira. Os Gráficos 1 e 2 mostram que o estoque de títulos prefixados apresentou aumento consistente em seu prazo médio desde o primeiro semestre de 2003. Já nos ativos indexados a índices de preços, houve redução do seu prazo médio, consequência das emissões mais curtas para aumentar a liquidez desses instrumentos e a velocidade de substituição pelas dívidas cambial e remunerada pelas taxas de juros que venciam. Posterior- mente, entretanto, houve estabilização no prazo médio, observando-se, mais recentemente, novo aumento. Gráfico 1. Prazo médio do estoque de títulos prefixados Fonte: STN 426 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 2. Prazo médio do estoque de títulos indexados a índices de preços Fonte: STN Além do aumento do prazo médio da dívida prefixada e atrelada a índice de preços, observa-se, ao longo dos últimos anos, maior liquidez em títulos públicos mais longos. Por exemplo, analisando o Gráfico 3, o prazo médio das operações definitivas com títulos públicos federais aumentou entre 2004 e 2007 de dez meses para mais de vinte meses, sendo observado, no caso dos prefixados, um aumento de cinco meses para quinze meses. A queda observada após essa data reflete mais as condições adversas do mercado financeiro mundial do que uma particularidade do mercado de títulos no Brasil. Em que pese essa consideração, há uma inequívoca tendência para o alongamento dos prazos negociados no mercado de dívida pública. Gráfico 3. Prazo médio das operações definitivas com títulos federais no mercado secundário Fonte: STN 427 Ao se avaliar apenas as NTN-Fs (títulos prefixados com prazos mais elevados), o Gráfico 4 mostra que desde o início de 2006 esses ativos apresentaram aumento no volume médio negociado diariamente de menos de R$ 100 milhões/dia para valores em geral acima de R$ 300 milhões/dia. Associado a esse fato, observa-se tendência de aumento no prazo médio do vencimento mais negociado ao longo dos últimos anos. Gráfico 4. Relação entre prazo de vencimento da NTN-F e volume médio negociado diariamente – NTN-F mais líquida no mês Fonte: BCB Elaboração: STN Outro exemplo elucidativo é o caso de uma NTN-F de cinco anos, título que tem vencimento aproxi- mado de sessenta meses. Nesse caso, observa-se também um aumento consistente do volume diário médio negociado a partir do início de 2006. Gráfico 5. Relação entre prazo de vencimento da NTN-F e volume médio negociado diariamente – NTN-F benchmark de cinco anos Fonte: BCB Elaboração: STN 428 Dívida Pública: a experiência brasileira As estatísticas para as NTN-Bs também são positivas. Por exemplo, tomando uma NTN-B benchmark de cinco anos, o volume médio negociado ao dia passou de menos de R$ 100 milhões para valores superiores a R$ 400 milhões/dia, mesmo quando o prazo de vencimento do título aumentou de 40 meses para 55 meses. Gráfico 6. Relação entre prazo de vencimento da NTN-B e volume médio negociado diariamente – NTN-B benchmark de cinco anos27 Fonte: BCB Elaboração: STN A NTN-B com vencimento em 2045, o mais longo título disponível no mercado, segue o mesmo comportamento dos outros títulos, com aumentos mensais do volume negociado. Os dados no Gráfico 7 indicam que houve um aumento do volume diário médio de menos de R$ 20 milhões/dia para valores superiores a R$ 50 milhões/dia. Gráfico 7. Volume médio negociado diariamente – NTN-B com vencimento em 2045 Fonte: BCB Elaboração: STN 27 Em 2007, o Tesouro Nacional mudou o vencimento do benchmark de cinco anos, passando a ofertar NTN-B com vencimento em 2011 e, posteriormente, 2012. Entretanto, a liquidez de mercado permaneceu no título com vencimento em 2010, sendo para esse instrumento as informações mostradas no gráfico. 429 3.3 Atuações do Tesouro Nacional Apesar das melhorias apresentadas até o momento, o mercado secundário brasileiro ainda não é capaz de absorver grandes volatilidades sem que haja perdas das taxas de referência, diminuição significativa no número de negociações diárias e abertura nos spreads entre compra e venda. Assim, cabe ao Tesouro Nacional atuar em momentos de volatilidade acentuada por meio de operações, como, por exemplo, compra e venda de títulos simultaneamente, com o objetivo primordial de oferecer parâmetros de preços ao mercado de renda fixa até que a normalidade do mercado se restabeleça. No ano de 2004, o Tesouro Nacional realizou, nos meses de maio e agosto, resgates antecipados e leilões de compra e venda simultâneos de LFT com o intuito de manter a transparência e fornecer parâmetros de preços, pois, como observado no Gráfico 8 e na Tabela 7, houve forte correção nos mercados financeiros nacional e internacional. Além disso, buscou-se reduzir a volatilidade em um momento de maior turbulência do mercado financeiro e melhorar a liquidez do mercado secundário. Ainda no mês de maio daquele ano, com o mesmo objetivo, foram realizados dois leilões de compra e venda simultânea de LTNs. A atuação do Tesouro Nacional atingiu os resultados esperados, à medida que o mercado se normalizou, e, já no mês seguinte, houve a retomada do financiamento com a emissão de títulos prefixados. Gráfico 8. Taxa da LTF com vencimento em 18/06/2008 Fonte: Andima 430 Dívida Pública: a experiência brasileira Tabela 7. Volatilidade em ativos e indicadores selecionados em 2004 Fonte: Bloomberg Ao final de maio de 2006, houve uma maior volatilidade no mercado internacional associada às incertezas da condução da política monetária nos EUA. O mercado brasileiro teve a liquidez reduzida devido à expectativa de piora maior nos preços dos ativos. Investidores não residentes que haviam comprado as NTN-Bs mais longas (2024, 2035 e 2045), ao desejar vendê-las, não encontraram instituições financeiras dispostas a adquiri-las no mercado secundário, o que fez com que as taxas dos títulos mais longos aumentassem, elevando o custo de financiamento do Tesouro Nacional, como apresentado no Gráfico 9. Gráfico 9. Taxa das NTN-Bs mais longas Fonte: Andima Nesse momento, o Tesouro Nacional percebeu que havia um potencial desequilíbrio no mercado e decidiu agir, realizando leilões de compra e venda. A pronta intervenção reduziu efetivamente o estresse inicialmente verificado no mercado de NTN-Bs e posteriormente intensificado nos demais mercados, como apresentado a seguir, em que, após um movimento de piora generalizada, com o pico do stress no dia 24/05/2006, o mercado retornou, no final de julho, para níveis próximos aos de abril. 431 Tabela 8. Volatilidade em ativos selecionados Fonte: STN/Bloomberg Conforme observado a partir dos dois casos estilizados e das reações dos gestores para minimização dos seus efeitos negativos sobre a dívida pública, pudemos concluir que o Tesouro Nacional aprimorou sua capacidade de monitoramento da volatilidade e da liquidez dos títulos para preservar o dinamismo do mercado e a qualidade dos ativos. Nesse sentido, a seção a seguir descreve uma série de medidas tomadas por participantes do mercado com o intuito primordial de desenvolver a liquidez e o bom funcionamento do secundário de ativos de renda fixa. Ainda na próxima seção, serão apresentadas evidências de que o processo em que se encontra o mercado de dívida pública está consistente com as melhores práticas internacionais, o que tem permitido resultados positivos para sua gestão. 4 Desenvolvimento do mercado secundário Como já comentado no início deste capítulo, a liquidez no mercado secundário de títulos públicos é importante para o Tesouro Nacional, pois diminui os custos de financiamento do emissor. Quando existe um mercado secundário líquido, há maior transparência dos parâmetros de preços e, consequentemente, o compra- dor do título exige um prêmio menor para adquiri-lo. Mercados líquidos e transparentes implicam spreads mais justos entre os preços de compra e venda, diminuindo os custos de entrada e saída. A redução da assimetria de informação aumenta a eficiência, melhora o gerenciamento de ativos e passivos e beneficia o emissor. Assim, o governo vem implementando uma série de medidas com o intuito de aumentar a liquidez dos títulos públicos, o que, do ponto de vista da Secretaria do Tesouro Nacional, leva à diminuição dos custos de financiamento, à redução do risco de refinanciamento e, consequentemente, melhora a administração da dívida pública. 4.1 As 21 medidas de 1999 Até 1999, a grande quantidade de vencimentos, por vezes mais de dois por semana, prejudicava a precificação dos títulos e contribuía para a falta de liquidez devido à baixa concentração de vencimentos. Associado a esse fato, havia um excesso de leilões, sem regras explícitas, que levava à redução da ne- cessidade de as instituições recorrerem ao mercado secundário e, consequentemente, à diminuição da liquidez dos ativos transacionados. No mercado secundário, a redução do número de participantes ao longo dos anos afetou a capilaridade do sistema. Além disso, a previsibilidade das taxas overnight, somada à curva da taxa de juros inclinada nega- tivamente durante um longo período, aumentou o interesse por LFT, título com menor volatilidade, inibindo o 432 Dívida Pública: a experiência brasileira volume de negócios. Outros fatores apontados como prejudiciais aos mercados primário e secundário eram o baixo desempenho das instituições dealers no processo de formação de preços e provimento de liquidez e a pouca transparência dos preços e das negociações ocorridas no mercado. Em 1999, foi criado um grupo de estudo formado por integrantes da Secretaria do Tesouro Nacional e do Banco Central para obter um diagnóstico dos diversos problemas relacionados à dívida mobiliária interna e ao mercado financeiro local. O trabalho foi baseado em estudos e discussões, fundamentados nas experiên- cias internacionais, e em entrevistas realizadas com representantes de instituições financeiras, entidades de classes e bolsas. Ao final, ambas as instituições concluíram que existia a necessidade de uma reformulação das práticas até então utilizadas, com a introdução de novos instrumentos e procedimentos para uma maior dinamização do mercado de dívida pública mobiliária no Brasil. Assim, foram anunciadas as 21 medidas listadas a seguir: 1) redução do número de vencimentos dos títulos públicos em circulação, maior concentração de vencimentos dos títulos com rentabilidade prefixada e diminuição da frequência de ofertas públicas (leilões); 2) divulgação prévia, pelo Tesouro Nacional, de cronograma de emissão de títulos a serem colocados por oferta pública; 3) ofertas públicas de títulos prefixados com prazos mais longos, após o recebimento de pleito das insti- tuições financeiras contendo proposta firme de compra; 4) realização, pelo Tesouro Nacional, de leilões regulares e predefinidos de compra de títulos públicos; 5) criação de títulos cambiais sem pagamentos intermediários de juros (zero- coupon bond); 6) permissão para negociação em separado (strips) do principal e dos cupons dos títulos cambiais com prazo inferior a cinco anos; 7) reuniões periódicas do Banco Central e do Tesouro Nacional com os dealers, os clientes finais (fundos de pensão, seguradoras e outros investidores institucionais) e as associações de classe; 8) divulgação periódica de Nota para a Imprensa contendo informações e comentários sobre o mercado de títulos públicos e as condições de liquidez; 9) alteração do processo de seleção dos dealers do Banco Central,28 privilegiando a capacidade de serem market-makers (desenvolvedores de mercado); 10) lançamento de títulos longos com rentabilidade prefixada e simultânea oferta competitiva de opção de venda (put); 11) compra e venda final de títulos curtos, em complementação aos go-around de reservas bancárias realizados pelo Banco Central; 12) realização periódica de go-around de compra ou venda de títulos públicos; 13) lançamento de títulos no Selic com liquidação em D + 1; 28 À época, as instituições financeiras eram escolhidas para serem dealers exclusivos do Banco Central, com o objetivo de aumentar a eficiência da política monetária. Somente a partir de 2003 o sistema foi alterado, passando as instituições dealers a terem o obje- tivo adicional de auxiliar a gestão da Dívida Pública Federal e o desenvolvimento de seu mercado secundário. Maiores informações sobre o sistema de dealers de títulos públicos serão apresentadas a seguir, neste capítulo. 433 14) estímulo ao aumento da transparência na negociação de títulos públicos no mercado secundário me- diante, por exemplo, a utilização de sistema eletrônico; 15) facilitação para as instituições financeiras assumirem posições vendidas (short); 16) realização de go-around de títulos prefixados com compromisso de recompra (reverse repo) para as instituições dealers cobrirem posições vendidas (short); 17) divulgação diária, pela Andima, de preços dos títulos com rentabilidade prefixada e cambiais em circu- lação; 18) desenvolvimento de sistema para registro, no Selic, das operações a termo com títulos federais; 19) flexibilização do limite de alavancagem nas operações com títulos públicos federais; 20) incentivo para as bolsas de valores criarem mercado derivativo das opções de venda lançadas pelo Banco Central; 21) oscilação da taxa overnight ao redor da meta da taxa Selic. As 21 medidas propostas traziam consigo importantes diretrizes: 1) maior dinamização do mercado secundário propriamente dito, elevação da liquidez e expansão da base de investidores; e 2) transparência, melhoria da precificação e alongamento do prazo da Dívida Pública Federal (DPF), favorecendo sua gestão. Não obstante essa extensa e desafiadora lista, algumas medidas não avançaram, como títulos cambiais zero coupon e seu strip, principalmente pela falta de uma cultura do próprio mercado financeiro, que tendeu a deixar de lado algumas possibilidades de execução,29 ou ainda por alteração na política de gestão da DPF, como a decisão de não mais emitir títulos cambiais a partir de 2003. Contudo, a maioria foi efetivada, apresentando resultados satisfatórios, tais como a redução de vencimentos e a publicação de cronograma mensal de leilões. A Secretaria do Tesouro Nacional e as instituições interessadas no desenvolvimento do mercado se- cundário continuaram avançando no aperfeiçoamento dessas medidas, iniciadas em 1999. A próxima seção trata de novas modificações institucionais e outras estruturas, pensadas com o objetivo de melhorar a liquidez dos títulos públicos e demais ativos de renda fixa. 4.2 Novas ações para aumentar a liquidez Anos após o diagnóstico descrito no item anterior e as decisões tomadas para aperfeiçoamento do mercado secundário de títulos públicos, diversas outras medidas institucionais foram implementadas, e aquelas anteriormente efetivadas foram melhoradas. Como já comentado neste capítulo, no primeiro trimestre de 2003, a atuação do governo foi no sentido de consolidar o compromisso com a austeridade fiscal, o regime de metas de inflação e o câmbio flutuante. No âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional, foram tomadas medidas no intuito de aprimorar o mercado primário e secundário de títulos públicos. Entre as ações, estava a intensificação da concentração de vencimentos e o alonga- mento dos títulos públicos, a não emissão de títulos indexados ao câmbio no mercado doméstico, a implantação de um novo sistema de dealers e o maior relacionamento com os investidores nos seus diversos segmentos. 29 Por exemplo, as NTN-Bs e as NTN-Fs emitidas atualmente permitem a realização de strip, contudo o mercado não tem utilizado essa facilidade. 434 Dívida Pública: a experiência brasileira 4.2.1 Concentração de vencimentos As LTNs (e posteriormente as NTN-Fs) passaram a vencer em datas coincidentes com as dos vencimentos dos contratos de juros no mercado futuro (meses de janeiro, abril, julho e outubro de cada ano), aumentando a liquidez e a demanda, em razão da maior facilidade de combinação com demais ativos financeiros e da maior transparência na formação da curva de juros. Além disso, o fato de o vencimento ser coincidente com os ven- cimentos de DIs eliminou o risco de descasamento e favoreceu o investidor, à medida que houve redução no volume de margem requerida em operações de derivativos. A melhor precificação e a maior liquidez diminuíram o prêmio de risco do papel, reduzindo o custo de financiamento da Dívida Pública Federal. Outra contribuição para o aumento da liquidez foi o procedimento de reoferta de títulos, com volumes significativos. As emissões de LFTs e NTN-Bs concentraram-se em prazos mais longos e em meses diferentes dos esta- belecidos para os prefixados. A LFT passou a vencer no começo do terceiro mês de cada trimestre, e a NTN-B, na metade do segundo mês de cada trimestre (equidistante dos vencimentos dos prefixados). Cabe ressaltar que a construção do fluxo trimestral das NTN-Bs foi discutida com entidades de previdência complementar, visando a atender a uma demanda desses investidores, o que aumentou o volume de negócios no mercado secundário. A concentração dos vencimentos dos títulos prefixados em início de trimestre permitiu ao investidor utilizar os derivativos de juros da BM&F para modificar seu ativo de prefixado para pós-fixado em CDI (LTN “casada”).30 Nesse caso, observou-se um aumento significativo de negociações nos derivativos, o que pode ser creditado, em parte, pela nova estratégia do Tesouro Nacional. Ao mesmo tempo, a maior colocação de prefixados foi possível graças à compatibilização de interesses do Tesouro Nacional de aumentar a participação desse passivo no estoque total da dívida, dos investidores que têm o CDI como benchmark para suas carteiras e dos agentes que querem prefixar seus investimentos, apostando na melhora do cenário econômico. Como pudemos ver na Tabela 2, entre 2002 e 2003 houve um aumento da negociação média diária de títulos prefixados de R$ 0,18 bilhão para R$ 2,68 bilhões. Outro fator que evidencia o aumento do mercado secundário é o volume de contratos negociados de juros futuro (DI). Como ilustra a Tabela 9, ao longo dos últimos anos, o número de contratos negociados tem crescido, apesar da queda verificada em 2008, consequência da turbulência nos mercados financeiros internacionais. Esses valores demonstram que a liquidez dos títulos públicos aumentou a importância do mercado de derivativos para compatibilizar interesses do emissor e dos investidores. Tabela 9. Média mensal de contratos negociados de DI Futuro na BM&F Fonte: BM&F 30 Ao adquirir um swap de prazo equivalente ao título, o investidor, na prática, transforma seu ativo de prefixado para indexado à taxa de juros diária, transferindo o risco prefixado para um terceiro investidor. Sob a ótica do gestor da dívida, entretanto, o risco prefixado continua com o mercado, não havendo comprometimento de sua estratégia de redução do risco de volatilidade no serviço da dívida 435 4.2.2 Criação das strips A partir de 2003, o Tesouro Nacional passou a emitir a NTN-F, título prefixado com pagamento de cupom, com a possibilidade de destacar (strip) os cupons, à semelhança do observado no mercado internacional, facilitando a criação de uma curva de juros prefixada de médio prazo (na época entre três e quatro anos), o que possibilita uma precificação mais justa da curva de juros e minimiza o custo de financiamento do Tesouro Nacional. A primeira NTN-F com essa característica foi emitida em 2003, com vencimento em 01/01/2008. Já em 2005, com vistas a atender à crescente demanda por títulos prefixados mais longos, foram emiti- das NTN-Fs com vencimento em 01/01/2010 e 01/01/2012. No ano de 2007, o Tesouro Nacional começou a emitir NTN-F com vencimento em 2017, sendo a primeira vez em que se emitiu um título prefixado com prazo de dez anos no mercado local. Além disso, tal instrumento foi emitido com regularidade nos leilões seguintes, tornando-se efetivamente um benchmark de dez anos para o mercado local. As strips possibilitam tornar as NTN-Fs semelhantes às LTNs, cuja liquidez no mercado secundário é mais elevada. Cabe ressaltar que a possibilidade de destacar o cupom dos títulos não é efetivamente utilizada pelo mercado, por falta de cultura de uso de tal instrumento, associada à diferenciação nos códigos do cupom de NTN-F e da LTN no Selic. O Tesouro Nacional e o Banco Central vêm trabalhando com o objetivo de solucionar este último ponto. 4.2.3 Colchão da dívida A partir da crise asiática, em 1997, o Tesouro Nacional percebeu a necessidade de acumular um volume de recursos em caixa para garantir o pagamento da dívida pública em períodos menos favoráveis. Mais re- centemente, com a melhora nas condições de mercado, foi possível acumular recursos em montante superior a três meses do serviço da Dívida Pública Federal, tendo o Tesouro mantido essa proporção a partir de então. Os recursos acumulados são exclusivos para pagamento da dívida vincenda e têm por objetivo principal reduzir o risco de refinanciamento, transmitindo segurança quanto à capacidade de o Tesouro Nacional honrar os pagamentos em momentos nos quais o próprio mercado está reticente a adquirir títulos públicos ou o Tesouro não se sente confortável em corroborar as taxas apresentadas nos leilões. Ao mesmo tempo, tal reserva tem criado condições para os gestores da dívida pública trabalharem como agentes estabilizadores do mercado secundário em momentos de elevada volatilidade. 4.2.4 Novo sistema de dealers31 O novo sistema de dealers, implementado em 2003, credenciou as mais eficientes instituições a trabalha- rem em parceria com o Tesouro Nacional e o Banco Central para desenvolver o mercado de títulos públicos. Esse processo contribuiu de forma mais efetiva para o aperfeiçoamento do mercado secundário de títulos, aumentando a liquidez e melhorando a formação da estrutura de taxa de juros. Foram criados dois grupos de dealers, primários e especialistas, tendo o segundo grupo a função primordial de dar liquidez ao mercado secundário, apresentando volumes expressivos de negociação de títulos neste mercado. Assim, criaram-se incentivos para as transações em mercado, contribuindo para a ampliação da liquidez do sistema. 31 Para maiores detalhes sobre o sistema de dealers de títulos públicos, ver Capítulo 4 da Parte 3. 436 Dívida Pública: a experiência brasileira As instituições dealers do Tesouro Nacional e do Banco Central têm como metas, por exemplo, a negociação de determinados títulos considerados estratégicos para a gestão da dívida e a abertura de spreads em sistemas eletrônicos de negociação, no caso dos especialistas. Já os dealers primários são incentivados a entrar nos leilões de títulos do Tesouro Nacional, entre outras atribuições. 4.2.5 Reuniões com participantes de mercado32 Outro avanço em relação às 21 medidas foi a institucionalização, em 2003, de reuniões periódicas com entidades de previdência complementar, investidores naturais de instrumentos de longo prazo, e participantes do mercado secundário. Em 2004, foi criado um cronograma anual de reuniões com entidades de previdência comple- mentar, bancos comerciais e de investimento, fundos de investimento, seguradoras e empresas de capitalização. A diversificação da base de investidores, além de aumentar o número de participantes no mercado secundário, buscou desconcentrar os detentores de dívida pública, ainda concentrada nas mãos de fundos mútuos (fundos de investimento) e bancos (carteira própria), melhorando o perfil da dívida e reduzindo o risco de mudanças abruptas nas condições de refinanciamento do Tesouro Nacional em momentos de volatilidade no mercado. O aumento na base de investidores diversifica as estratégias e os interesses, minimizando o conhecido movimento de “manada”. 4.2.6 Criação da Conta Investimento Em 2004 foi criada a Conta Investimento, que eliminava a necessidade de cobrança da CPMF33 de investidores que já haviam pago a contribuição quando do saque da conta corrente para a referida conta (Lei nº 10.892, de 13 de junho de 2004). A Conta Investimento permitiu que um investidor alocasse recursos de modo mais eficiente e oferecia isonomia entre os fundos exclusivos e o restante da indústria de fundos, retirando um custo elevado que recaía sobre a mudança de aplicação. Tal alteração facilitou a movimentação de recursos em direção às aplicações e aos fundos mais rentáveis, o que gerou maior concorrência e eficiência. A diminuição dos custos de transação entre instrumentos financeiros aumenta o giro do mercado secundário, trazendo benefícios adicionais ao implicar melhor precificação dos ativos e aumento no volume de operações no mercado secundário de títulos públicos.34 4.2.7 Lançamentos de contratos derivativos Outra iniciativa ocorrida no ano de 2004 foi o lançamento, pela BM&F, de dois contratos de instru- mentos derivativos. O primeiro é o contrato futuro de IPCA, e o segundo, o contrato futuro de cupom de IPCA x CDI. Esses contratos propiciam, aos investidores tradicionalmente demandantes de ativos remunera- dos por índices de preços, instrumentos financeiros adicionais para administrar suas carteiras. Além disso, a medida atrai novos agentes para esse mercado, aumentando a negociação desse tipo de título no mercado 32 Para maiores detalhes sobre a estratégia de organização e os resultados das reuniões com participantes do mercado, ver Capítulo 5 da Parte 3. 33 Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Tal tributo não foi renovado para o período seguinte a 31 de dezembro de 2007, fazendo com que a Conta Investimento, na prática, não fosse mais necessária. 34 Logo após a aprovação da Conta Investimento, as Medidas Provisórias nºs 206 e 209, editadas em agosto de 2004, visaram a incentivar as aplicações financeiras de médio e longo prazos, por meio do tratamento tributário diferenciado tanto para as aplica- ções de renda fixa quanto de renda variável. Tais medidas tinham como objetivo estimular a poupança de longo prazo e contribuir para o gerenciamento da dívida pública. Posteriormente a essas medidas, o Tesouro Nacional obteve êxito na colocação de NTN-B com vencimento em 2045 ainda em 2004, e de NTN-F com vencimento em 2017 em 2007. 437 secundário. Cabe ressaltar que tal derivativo não havia apresentado, até 2008, liquidez satisfatória. O mercado financeiro, representado na BM&F (atualmente BM&FBovespa) por seus comitês, está avaliando a melhor forma de desenvolvê-lo. 4.2.8 Criação de índices de renda fixa Ao dar continuidade ao processo de apoio às iniciativas que impactam positivamente o mercado se- cundário de títulos públicos, a Secretaria do Tesouro Nacional e participantes do mercado, no âmbito da Andima, incentivaram a criação de novos índices de renda fixa (IMAs). Tais índices atendem às demandas dos gestores de carteiras por parâmetros (benchmarks), ajudando a aprofundar a confiança entre cotistas e gestores de fun- dos, ao permitir comparações quantitativas confiáveis. O processo também visa à eliminação de uma distorção cultural existente no Brasil, ou seja, a comparação de carteiras de ativos de diversas características e prazos com o CDI, que é um parâmetro diário. A mudança de paradigma tem como objetivo o aumento da liquidez em títulos mais longos, por conta do aumento do número de investidores com benchmarks de longo prazo. 4.2.9 Estímulo à entrada de não residentes Associado à busca por diversificação da base de investidores, aumentando o percentual de não residentes no mercado de dívida doméstica, o Tesouro Nacional vem apoiando a disseminação de informações de preços da dívida interna por meio de telas de agências de informações. Outra medida nessa linha foi a simplificação e maior agilidade na concessão do registro desses investidores no CNPJ. Desde 2005, o processo foi raciona- lizado, como resultado de um trabalho conjunto entre a Secretaria da Receita Federal, a Comissão de Valores Mobiliários e o Serviço de Processamento de Dados do Governo Federal. As pendências foram eliminadas e fixou-se o prazo de 24 horas para que os novos cadastros de investimento estrangeiro no mercado local fossem completados, recebendo o investidor nesse prazo os códigos CVM e CNPJ. Os resultados dessas medidas no mercado secundário estão relacionados diretamente ao aumento de participantes com tradicional capacidade de negociar títulos mais longos, o que incentiva o desenvolvimento de um mercado secundário mais líquido nesses pontos da curva. Em 2006, foi publicada a Medida Provisória nº 281, depois convertida na Lei nº 11.312, de 27 de junho de 2006, que promoveu a isenção de imposto de renda para não residentes sobre o ganho auferido em inves- timentos em títulos públicos da dívida interna. Como resultado dessa nova legislação, a participação de não residentes no mercado doméstico apresentou elevação significativa. O estoque médio que tais investidores detinham entre janeiro de 2005 e fevereiro de 2006, que era da ordem de R$ 2,7 bilhões, passou para cerca de R$ 10,7 bilhões entre março e dezembro de 2006, demonstrando o aumento da base de investidores e, por consequência, o aumento dos negócios no mercado secundário. Como esse tipo de investidor tem a característica de negociar títulos mais longos, tal aumento permitiu a dinamização das negociações de títulos de médio e longo prazos (como as NTN-Bs com vencimento em 2045, por exemplo – ver Gráfico 8). Como se pode observar no Gráfico 10, os investidores não residentes detinham, em dezembro de 2008, aproximadamente 6,5% do estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal interna em mercado, o que representava mais de R$ 70 bilhões em títulos públicos domésticos. 438 Dívida Pública: a experiência brasileira Gráfico 10. Participação de investidores não residentes em títulos da dívida interna Fonte: CVM e Banco Central do Brasil. Elaboração: Secretaria do Tesouro Nacional 4.2.10 Estímulo à transparência Ainda buscando o fortalecimento do mercado secundário, em 2006 a Secretaria do Tesouro Nacional apoiou o desenvolvimento do sistema on-line de títulos públicos federais chamado Compare. O sistema é administrado pela Andima e possibilita a consulta de dados e taxas relativas a preços e volumes negociados no mercado secundário, bem como a elaboração de análises comparando informações e parâmetros de mercado. O sistema promove a transparência, estimula a liquidez e aumenta a atratividade para investidores que, por razões regulatórias, se encontram resistentes à aquisição de títulos no mercado secundário. Mais recentemente, no início de 2008, o Tesouro Nacional e o Banco Central mudaram a regra dos dealers, ao estabelecer como critério para as instituições poderem participar dos leilões de segunda volta a abertura de spreads de compra e venda em sistemas eletrônicos de apregoação durante sessenta minutos, sendo trinta minutos pela manhã e trinta à tarde. Dessa forma, criam-se dois momentos no dia em que os participantes de mercado conseguem visualizar spreads para diversos títulos, contribuindo para o aumento da transparência. Assim, dadas todas as medidas implementadas nos últimos anos, pode-se avaliar que a transparência, a busca pelo aumento da base de investidores, a melhoria das informações relacionadas à dívida, o aumento da previsibilidade, entre outras ações, levaram a melhores precificações dos títulos públicos e, consequentemente, diminuição dos custos da dívida pública. Para corroborar essa informação, os gráficos a seguir apresentam as taxas calculadas e divulgadas pela Andima (resultado de pesquisa diária com as instituições financeiras) e também as taxas médias diárias registradas no Selic. Optou-se por apresentar apenas dois casos mais elucidativos, as NTN-Bs com vencimento em 15/05/2015 (Gráfico 11) e 15/05/2045 (Gráfico 12), respectivamente. Nota-se que, a partir do final de 2005, as taxas registradas no Selic estão muito mais aderentes às taxas divulgadas pela Andima. 439 Gráfico 11. Taxas das NTN-Bs com vencimento em 15/05/2015 Fonte: Compare (Andima) Gráfico 12. Taxas das NTN-Bs com vencimento em 15/05/2045 Fonte: Compare (Andima) 5 Conclusões Uma das peculiaridades do mercado de capitais no Brasil é a cultura da indexação diária, originada nos anos de inflação elevada. O mercado secundário de títulos públicos é impactado também por essa característica, refletida na preferência por prazos curtos e ativos indexados diariamente, os quais representam obstáculos para o desenvolvimento do mercado. Várias medidas têm sido tomadas objetivando facilitar o acesso dos investidores aos títulos públicos e aumentar a eficiência do mercado secundário. Os dados apresentados na seção 2 mostraram que progres- sos têm sido obtidos e refletidos no aumento do volume de títulos negociados, particularmente nos papéis prefixados e remunerados por índices de preços, assim como nos seus prazos. 440 Dívida Pública: a experiência brasileira A despeito desses aprimoramentos, ainda é necessário aperfeiçoar a estrutura da dívida pública. Nesse sentido, o Tesouro Nacional está em permanente monitoramento para identificar e viabilizar as medidas que julgue necessárias para a consecução desse objetivo. Espera-se que ao longo dos próximos anos novas melhorias aconteçam, de aumentando a eficiência do mercado secundário de títulos públicos no Brasil. Referências WORLD BANK. Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementation. Washington, 2007. 441 442 Dívida Pública: a experiência brasileira Parte 3 Capítulo 7 Venda de títulos públicos pela internet: Programa Tesouro Direto André Proite1 1 Introdução Quando se fala em financiamento do governo por meio do varejo, essa prática remete a um passado distante e curioso. Registros datam do século XVII na França, que lançava mão dessa modalidade para finan- ciar a Guerra dos Trinta Anos. No século seguinte, o governo do Reino Unido financiou-se por intermédio de pequenos investidores privados com instrumentos que sobrevivem até hoje (WORLD BANK, 2006). Na Suécia, o Estado emitiu títulos especiais para construir navios de batalha. Os motivos variam assim como os países, mas há razões importantes que justificam o interesse sobre o mercado de títulos públicos em varejo. O objetivo deste capítulo é fornecer maiores informações acerca do Tesouro Direto – programa do Tesouro Nacional de venda de títulos públicos federais da dívida interna diretamente a pessoas físicas por meio da internet no Brasil. 1.1 Por que desenvolver um programa deste tipo? Em muitos países, o governo devota atenção especial para os investidores pequenos como financiadores de seu déficit orçamentário em contraste com o mercado institucional (wholesale). Na maioria dos casos, o governo pode ser reconhecido como o único tomador de empréstimos livre de risco de crédito, fato este de particular importância para aqueles que são a fonte primária de poupança. Qualquer que seja sua significância em termos proporcionais, o desenvolvimento desse mercado especial deve ser de elevada importância para os formuladores de política econômica. (MCCONNACHIE, 1997) Uma questão que surge naturalmente remete à importância da poupança. Mesmo quando se coloca de lado o debate macroeconômico sobre a taxa de poupança nacional, há pouca dúvida sobre a necessidade das famílias em pouparem. Em geral, estas precisam de recursos para lidar com choques temporários no fluxo de renda, mas uma fração surpreendente da população não possui recursos suficientes para sustentar alguns meses de despesas. (TUFANO; SCHNEIDER, 2005) Possivelmente, há quatro razões principais para se preocupar com essa questão. Primeiro, o agregado de pequenos investidores pode ser grande e diversificado, mas ainda relativamente inexplorado. Pode-se argumentar 1 O autor agradece os valiosos comentários da equipe de Relacionamento Institucional (em ul./2008), particularmente Fabio Guelfi, Fabricio Moreira, Flávia Fernandes, Juliana Coelho, Leonardo Tavares e Helena Menezes, além de todos os envolvidos na precifica- ção dos títulos, no registro e no pagamento. Importantes informações foram passadas pelos que lidam com a custódia de títulos na BM&FBovespa, em especial Gustavo Laurino, Valmir Soler, Valéria Lorenzo e Alexandre Gushi. 443 que esse mercado contrabalanceia possíveis desequilíbrios decorrentes da concentração de investidores institu- cionais, muito importante em mercados estreitos e nos quais haja um consenso entre as autoridades de que, na ausência de algum grau de competição, as taxas de juros ( yields ) podem ser forçadas contra eles.2 A literatura (WHEELER; JENSEN, 2000) mostra que a redução de custos pode ser obtida por diversos meios, mas que alguns são mais eficientes no longo prazo. Segundo, o financiamento do déficit público via investidores individuais pode assistir a política monetária reduzindo a base de depósitos nos bancos comerciais3 (MCCONNACHIE, 1997). Terceiro, pode haver um efeito benéfico no desenvolvimento de outros mercados financeiros em economias em desenvolvimento. Quarto, os governos geralmente veem a formação de poupança como um hábito geral de interesse para a nação. A tecnologia diminuiu custos e aumentou o acesso a um leque variado de serviços financeiros (GLAESSNER; KANTUR, 2004). Posto isso, o Tesouro Direto (TD) começou a ser concebido pelo Tesouro Nacional em 2001, tendo como principais objetivos a democratização do acesso a títulos públicos, a disse- minação do conceito de dívida pública, o incentivo à formação de poupança de médio e longo prazos e o aumento da base de demandantes dos títulos públicos. Em 6 de novembro de 2001, foi celebrado Acordo de Cooperação Técnica entre o Tesouro Nacional (TN) e a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC), com vistas à oferta pública de títulos federais pela internet. Em 12 de dezembro de 2001, foi publicada a Portaria STN nº 554, que regula a oferta pública de títulos pela internet. Finalmente, em 7 de janeiro de 2002, foi iniciada a oferta de títulos públicos no site da internet www.tesourodireito.gov.br. Além desta Introdução, este capítulo está dividido em cinco seções. A seção 2 trata dos objetivos do programa; a seção 3 descreve seu modo de funcionamento; a seção 4 apresenta e discute os resultados; a seção 5 traz um breve relato de outras experiências internacionais; e a seção 6 conclui. 2 Objetivos do Tesouro Direto A ideia subjacente ao programa remetia à necessidade de criar novas alternativas para o pequeno investidor, como um produto complementar que não passasse pela indústria de fundos de investimento. Esse importante segmento era, até então, praticamente o único canal de distribuição de títulos públicos ao público geral. No entanto, as taxas cobradas pela maioria das instituições eram relativamente elevadas para o peque- no poupador. O programa motivaria, em princípio, as instituições a diminuírem sua margem para produtos de pouco valor agregado. Além disso, a base de investidores da dívida pública doméstica seria ampliada de maneira que o Tesouro Nacional – na qualidade de gestor – pudesse extrair os benefícios dessa diversificação. Por fim, deve-se mencionar o caráter didático do programa ao dar transparência e disseminar os princípios da administração da dívida brasileira. 2.1 Aumento da base de investidores O aumento da base e a maior heterogeneidade de investidores colaboram para dar maior flexibilidade ao governo no gerenciamento da dívida pública brasileira, uma vez que permitem o alongamento da dívida a custos menores ao diminuírem o grau de concentração da demanda. É nesse sentido que recai a importância 2 Na Suécia, por exemplo, o Parlamento tem como diretriz, que o National Debt Office deve ser financiado pelo pequeno investidor somente se isso contribuir para reduzir a taxa de juros obtida pelo Estado. 3 No caso da Bulgária, as autoridades citam esse motivo como uma das justificativas para desenvolver esse mercado. 444 Dívida Pública: a experiência brasileira da adoção de políticas como o Tesouro Direto. Ainda, a representatividade do estoque de títulos vendidos no âmbito do programa é pequena, pois esse montante alcançava cerca de 0,11% do estoque da DPMFi (Dívida Pública Mobiliária Federal interna) em dezembro de 2007. Contudo, esse número não deve ser considerado isoladamente, ao contrário de outros países onde há uma cultura de poupança de longo prazo. Esse costume ainda é incipiente no caso brasileiro, e a potencialidade do programa é enorme no Brasil, onde atualmente se estima que, em 2007, havia cerca de 30 milhões de pessoas usuárias de internet banking, contra apenas 8 milhões sete anos antes. O número de pessoas com recursos em conta poupança também teve um salto significativo nesse período. O gráfico a seguir detalha essa evolução. Gráfico 1. Número de pessoas com internet banking e com conta poupança (milhões) Fonte: Febraban, Abecip e BB O uso de instrumentos que ampliam e diversificam a base de investidores é uma tendência internacio- nal, como fica claro no Capítulo 5 da Parte 3. Dentre esses instrumentos, destaca-se a venda direta de títulos públicos para pessoas físicas. Para ilustrar, o Gráfico 2 mostra a evolução do número de pessoas cadastradas no TD. Embora o número de cadastros tenha mais do que quadruplicado em cerca de três anos, ainda há muito espaço para o incremento de investidores. Mais detalhes serão apresentados na seção 4: Resultados do Tesouro Direto. 445 Gráfico 2. Número de investidores cadastrados no programa Fonte: Tesouro Nacional 2.2 Incentivo à formação de poupança de médio e longo prazos Outro objetivo importante do Tesouro Direto é incentivar a formação de poupança de médio e longo prazos. Atualmente, a estrutura da indústria de fundos de investimentos não contribui plenamente para esse objetivo, uma vez que não há incentivos em termos de maiores rentabilidades associadas a custos decrescentes para investimentos de médio e longo prazos. O progresso e o fortalecimento de uma cultura de poupança doméstica de longo prazo são muito importantes para o desenvolvimento econômico sustentado. Deve-se destacar que, mesmo oferecendo liquidez semanal,4 conforme visto, a estrutura do Tesouro Direto incentiva a poupança de médio e longo prazos. Isso se dá por meio da incidência de taxas de custódia e corretagem e pelo esquema de impostos nas aplicações financeiras (o mesmo de qualquer aplicação de renda fixa), como será descrito na próxima seção. Adicionalmente, o Tesouro Nacional vem ofertando no Tesouro Direto apenas títulos com prazos supe- riores a seis meses, girando os prazos mais longos em torno de quarenta anos. Isso contribui não apenas para o alongamento do perfil de vencimentos da dívida pública, mas também para a formação de uma cultura de poupança de longo prazo. À medida que os investidores alonguem o horizonte de suas aplicações, buscando uma maior rentabilidade, por meio do Tesouro Direto, é razoável supor que também os fundos de investimen- to passem a ter em suas carteiras um maior volume de títulos de longo prazo, diminuindo assim o risco de refinanciamento da dívida pública. De modo geral, dívidas com perfil de vencimento mais longo e de menor risco de refinanciamento são interpretadas pelos investidores como menos suscetíveis ao não pagamento e, por consequência, menor tende a ser o prêmio de risco, ou spread, cobrado pelos investidores para a compra de títulos, e, finalmente, menor o custo da dívida pública no longo prazo. 4 Há fundos que desincentivam o resgate antecipado pelos cotistas. 446 Dívida Pública: a experiência brasileira 2.3 Disseminação do conceito de dívida pública A transparência é uma das principais características do Tesouro Direto, porque o investidor sabe exata- mente os papéis que adquire. A conscientização de que os títulos da dívida pública não estão concentrados exclusivamente nos bancos e que os pequenos e médios poupadores sofreriam prejuízos com uma eventual moratória do governo atua no sentido de diminuir a aceitação e a popularidade dos discursos que pregam o não pagamento da dívida pública como benéfica para o país. Pode-se concluir que quanto menor a aceitação popular desse tipo de discurso, menor a possibilidade de algum dia este vir a ser implantado, o que já é, de fato, uma realidade muito distante da brasileira.5 Adicionalmente, essa discussão contribui para um melhor entendimento das políticas fiscais ortodoxas adotadas no Brasil desde o início da década e ilustra como o descontrole da inflação e um choque nas taxas de juros poderiam desestabilizar a economia. Ao disseminar o conceito de dívida pública entre a população, o Tesouro Nacional difunde a noção de que uma fatia signi- ficativa da poupança dos pequenos poupadores está canalizada em títulos públicos, seja via Tesouro Direto seja via fundos de investimentos. Para finalizar esta seção, ainda que seja difícil mensurar precisamente a contribuição do programa na melhoria do perfil da dívida doméstica, há dados claros sobre o acesso do pequeno investidor, participação distribuída em mais de duas regiões geográficas, predileção por aplicações de prazos mais longos e de menor indexação em comparação com outros tipos de investidores. As decisões individuais dos investidores, bem como as condições de mercado, são observadas em cada um desses aspectos, o que ressalta o caráter de- mocrático do Tesouro Direto. 3 Modelo de funcionamento do Tesouro Direto Antes do Tesouro Direto, os títulos públicos da dívida interna eram vendidos apenas por meio de ofertas públicas com a realização de leilão e por emissões diretas para atender às necessidades específicas deter- minadas em lei. O Tesouro Direto é um mecanismo de oferta pública via internet sem a realização de leilões. Antes de surgir a possibilidade de negociação de títulos via internet, os compradores dos títulos públicos no mercado primário restringiam-se a bancos, corretoras, distribuidoras e outras instituições financeiras registradas no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), com volume mínimo de compra de aproximadamente R$ 50.000,00. Podem comprar títulos no Tesouro Direto todos os residentes no Brasil que possuam Cadastro de Pessoa Física (CPF), conta corrente em algum banco ou corretora e sejam cadastrados em alguma das quase 70 instituições financeiras habilitadas a operar no programa. Essas instituições financeiras são chamadas de agentes de custódia, credenciados na Bolsa de Valores, a BM&FBovespa,6 e responsáveis pela atualização cadastral, pelo recolhimento de impostos e pelo repasse dos recursos dos/aos investidores, quando da com- pra, do pagamento de juros ou do resgate do principal do título. São elegíveis como agentes de custódia as corretoras de valores, os bancos comerciais, múltiplos ou de investimento e as distribuidoras de valores. Uma lista de instituições habilitadas está permanentemente disponível no site, e recentemente uma ordenação por volume de operações e pelas taxas cobradas. Sucintamente, o papel dos agentes de custódia é simplesmente 5 Desrespeitos a contratos são muito malvistos no Brasil. Como observado nas eleições mais recentes, irresponsabilidade fiscal e quebra de contratos foram banidas das discussões, refletindo o repúdio da população ante tais posturas. 6 Nome da companhia advindo da fusão da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F). Juntas elas ficaram entre as cinco maiores bolsas de valores do mundo. 447 operacionalizar as decisões de compra e venda dos investidores e fazer o contato direto com estes, dado que o Tesouro Nacional é impedido de lidar com pessoas físicas. Depois de efetuado o cadastro no agente de custódia, o investidor recebe da BM&FBovespa, via agente de custódia, no endereço de e-mail indicado no momento do cadastro, uma senha provisória para acesso à área restrita do site, para que possa efetuar compras, vendas e consultas. Para acessar essa área restrita, o investidor deve informar seu CPF e sua senha. A partir disso, ele poderá comprar e vender títulos e ainda fazer atualizações cadastrais de informações pessoais relevantes ao programa. 3.1 Compras e vendas de títulos Há três modalidades de compras e vendas de títulos no Tesouro Direto. As operações podem ser realizadas diretamente pelo investidor, acessando a área restrita do site, ou, caso o investidor não tenha acesso à internet, ou por qualquer motivo não deseje comprar seus títulos diretamente no Tesouro Direto, pode fazê-lo por meio de seu agente de custódia, mediante sua autorização.7 Finalmente, as compras e as vendas podem ser feitas diretamente no site do agente de custódia, caso este tenha integrado seu site ao do Tesouro Direto. As compras de títulos estão disponíveis para o investidor diariamente, inclusive nos fins de semana e feriados. Como regra, nos dias úteis as compras estão disponíveis entre 9 a.m. e 5 a.m. do dia seguinte. Entre 5 a.m. e 9 a.m., o sistema fica indisponível em função de manutenção e atualizações. Nos fins de semana e feriados, as compras estão disponíveis 24 horas por dia. Eventualmente, visando a proteger o pequeno investidor, o Tesouro Nacional pode suspender temporariamente as vendas em momentos de volatilidade extrema do mercado. Tendo efetuado a compra de títulos, o investidor tem duas opções: manter os títulos em carteira até o vencimento ou revendê-los ao Tesouro Nacional. As recompras de títulos são disponibilizadas semanalmente, tradicionalmente entre as 9 a.m. de quarta-feira e as 5 a.m. de quinta-feira, exceto nos dias de Copom,8 quando as vendas de quarta-feira são interrompidas às 5 p.m. e retomadas na quinta-feira às 9 a.m., durando até a manhã do dia subsequente. Dessa forma, mesmo que o investidor compre títulos de longo prazo, o investimento tem liquidez semanal. É importante ressaltar que, uma vez que o investidor decide vender seus títulos antes do vencimento, ele recebe a taxa de mercado do dia, que pode ser maior ou menor que a taxa contratada na data da compra. A recompra representa uma importante flexibilidade adicional conferida pelo programa. O valor mínimo para a compra de títulos corresponde a uma fração de 1/5 de título. Esse valor varia normalmente entre R$ 160 e R$ 400, dependendo do título escolhido. O sistema não permite que operações abaixo de R$ 100 sejam realizadas. Todas as compras superiores a essa quantidade deverão ser múltiplas de 0,2 títulos. Em dezembro de 2008, o limite máximo de compra por investidor era de R$ 400 mil por mês, com exceção dos meses de vencimento e pagamento de juros de títulos adquiridos anteriormente no Tesouro Direto e que ainda estivessem em sua carteira. Nesses meses, o limite será de R$ 400 mil mais o valor de resgate e de juros dos títulos. O limite máximo para a compra de títulos foi criado para inibir a arbitragem entre o Tesouro Direto e o mer- cado secundário. Caso não houvesse esse limite, investidores poderiam se aproveitar de eventuais diferenças9 entre o preço praticado no Tesouro Direto e o preço que poderia obter vendendo títulos no mercado secundário. 7 Para tanto, o investidor deverá autorizar formalmente seu agente de custódia a realizar compras e vendas em seu nome, embora essa modalidade quase não seja usada. 8 Comitê de Política Monetária. 9 Essas discrepâncias podem refletir diferentes pontos do tempo, uma vez que os preços do Tesouro Direto são atualizados com base no mercado secundário três vezes ao dia, ao passo que no mercado podem ocorrer variações a cada minuto. 448 Dívida Pública: a experiência brasileira Figura 1. Website do Tesouro Direto – acesso rápido e fácil 3.2 Títulos disponíveis e precificação O Tesouro Nacional tem por princípio disponibilizar para compra títulos semelhantes ou iguais aos ofer- tados nos leilões tradicionais semanais. Em dezembro de 2008, esses títulos dividiam-se em prefixados (LTN e NTN-F), indexados à inflação (NTN-B e NTN-B principal) e indexados à taxa Selic (LFT),10 com vencimentos diversos. Destaca-se que todas as operações de compra e venda de títulos são realizadas a preço de merca- do. A mesa de operações do Tesouro Nacional mantém um monitoramento permanente dos preços desses títulos por intermédio de acompanhamento das cotações e contatos com instituições financeiras. Os preços são atualizados em média três vezes ao dia, porém o Tesouro pode mudar os preços ou mesmo interromper temporariamente a negociação a qualquer momento, dependendo das condições de mercado, no intuito de proteger o pequeno investidor de oscilações abruptas nos preços. Há uma pequena diferença, chamada de spread, entre os preços de compra e os preços de venda de títulos praticados no Tesouro Direto. Tal fato espelha a prática de mercado de ter diferentes preços para compra e para venda para evitar transações intradiárias de arbitragem e incentivar o carregamento do ativo por prazos mais longos. 10 Para mais detalhes, ver Capítulo 2 da Parte 3. 449 3.3 Taxas e impostos incidentes sobre as operações As taxas incidentes sobre as operações no Tesouro Direto têm naturezas distintas. Ao final de 2008, a CBLC cobrava uma taxa de custódia de 0,4% ao ano sobre o valor da compra do título referente à prestação de serviços de guarda dos títulos e informações de saldos e movimentações dos investidores.11 Com a incor- poração da companhia à BM&FBovespa holding, esses custos sofreram novas alterações de acordo com a nova estrutura de tarifação da instituição. Com isso, o custo referido é composto por uma taxa de negociação de 0,10% do valor da compra cobrado no primeiro ano e uma taxa de custódia de 0,3% do valor da compra ao ano, porém cobrada semestralmente. Dessa forma, o custo mantém-se igual àquele de antes da mudança no primeiro ano, mas é reduzido nos anos seguintes. Os agentes de custódia cobram taxas de corretagem, manutenção da conta de custódia e outros serviços. Essas taxas são livremente pactuadas entre o investidor e a instituição financeira. De modo geral, as taxas dos agentes de custódia variam entre 0% e 4,0% ao ano sobre o valor dos títulos. Instituições que não cobram taxas de custódia justificam essa estratégia como um meio de atrair clientes para serviços adicionais oferecidos, nos quais a lucratividade seja maior e possa compensar as despesas com as operações do Tesouro Direto. Assim, temos que o total a ser pago em taxas varia entre 0,30% e 4,40% ao ano sobre o valor das aplicações e dependendo do prazo. Essas taxas são as mesmas para todos os aplicadores, independentemente do montante investido. Tal prática não é comum no mercado, que tende a discriminar e a privilegiar com a cobrança de taxas menores os investidores que têm um maior volume de recursos. Essa democratização de acesso a taxas reduzidas e mesma rentabilidade para todos os investidores é uma característica marcante do Tesouro Direto, que beneficia os pequenos e os médios investidores. Para estes, não é comum encontrar no mercado alternativas de fundos de investimento em renda fixa com taxas tão reduzidas. Os impostos cobrados no Tesouro Direto são os mesmos dos demais investimentos em renda fixa, e seu recolhimento é responsabilidade dos agentes de custódia. Há cobrança de Imposto de Renda (IR) regressivo com o tempo, incidente sobre o rendimento nominal dos títulos, e nos investimentos com prazo inferior a trinta dias incide o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A principal diferença em relação aos fundos de investimento está no fato de que o IR sobre os títulos públicos é cobrado apenas no momento do pagamento de juros ou no resgate da aplicação. Os fundos de investimento, por sua vez, sofrem um desconto semestral de IR, que se traduz em redução do número de cotas que o aplicador possui e em menor rentabilidade no longo prazo em comparação com a compra direta de títulos públicos. Em geral, as pessoas não têm a exata dimensão do impacto dos custos de administração sobre a rentabilidade. Para mostrar a diferença, pode-se comparar uma aplicação em um fundo de investimento contra a compra de títulos no Tesouro Direto usando a seguinte simulação. Considere uma aplicação que tenha o rendimento nominal de 12% a.a. por um período de um ano e que a inflação ao final deste ano se realize em 3,5%. Como descrito, o Imposto de Renda (IRPF) que incide sobre essa aplicação é de 20% (180 a 360 dias). Suponha que o investidor do Tesouro Direto se depare com uma taxa de administração de 0,9% a.a. (taxa da CBLC e do agente de custódia) e, alternativamente, três fundos de investimento com taxas de 2% a.a., 3% a.a. e 4% a.a., respectivamente. A partir daí, as primeiras diferenças começam a surgir quando da dedução do Imposto de Renda após a cobrança da administração. A dedução do Imposto (IRPF) no Tesouro Direto nesse caso é de 2,38%, enquanto nos fundos ela é, respectivamente, 2%, 1,8% e 1,61% (varia inver- 11 Após o primeiro ano, a taxa de 0,4% anual é cobrada proporcionalmente ao período em que o investidor mantiver os títulos na CBLC, calculada  considerando o estoque atual do investidor no dia  (pro rata dia) e serão cobradas no momento de pagamento de juros, nos resgates ou nas recompras pelo Tesouro Nacional. 450 Dívida Pública: a experiência brasileira samente com a taxa cobrada). Descontando a inflação igualmente em cada aplicação, a rentabilidade líquida no programa fica em 5,81%, enquanto nos fundos ela cai para 4,33%, 3,57% e 2,83%, respectivamente, como consta na Tabela 1. Tabela 1. Comparação entre o Tesouro Direto e fundos de investimento Simulação: Rendimento nominal de 12% a.a., IR de 20% a.a. e IPCA de 3,5% Obs.: A taxa do TD (0,9%) inclui a taxa da CBLC (0,9%) e a corretagem do agente de custódia médio (0,5%). Fonte: Tesouro Nacional Depois de descontados a inflação e os impostos, o restante da rentabilidade é repartido entre o investidor e seu administrador. No TD, a taxa de administração média é 9% do total da rentabilidade. No caso do fundo de investimento que cobra 4% a.a., os custos de administração representam 34% do total da rentabilidade. Gráfico 3. Tesouro Direto versus fundos de investimento } Pare administrável pelo investidor } Pare fora do con- trole do investidor Fonte: Tesouro Nacional 451 É preciso destacar uma particularidade no esquema de tributação nos fundos de investimentos e no Tesouro Direto. No primeiro, existe a figura da tributação semestral sobre os rendimentos, chamada de “come-cotas”, que ajusta a alíquota de Imposto de Renda citada anteriormente ao período do investimento do aplicador. No caso do Tesouro Direto, somente há tributação quando do vencimento ou da venda do título, o que tem um impacto sobre a rentabilidade tão maior quanto mais longo for o período da aplicação. Há ainda no site do Tesouro Direto e da BM&FBovespa um simulador12 de aplicações que possibilita ao investidor enxergar a rentabilidade bruta e a líquida aberta pelos custos envolvidos a cada ano, provendo clareza e tempestividade nas informações frequentemente desejadas pelos investidores. 3.4 O programa de divulgação Desde o início do programa em 2001, o Tesouro Nacional sempre teve uma preocupação com o suporte aos investidores e com o acompanhamento das vendas. Essa atitude traduz-se em atendimento ao público e na divulgação por meio de palestras livres e participação em feiras especializadas. Diariamente, a equipe responsável responde a todo tipo de dúvidas dos investidores enviadas por meio eletrônico.13 Em geral, elas se concentram nas particularidades operacionais, bem como em questões relacionadas às características dos títulos ofertados e a sua precificação, atingindo um volume semanal de cerca de duzentas mensagens. Na mesma linha, a BM&FBovespa (bolsa) presta um serviço semelhante aos agentes de custódia e ao público em geral. Permanentemente, o Tesouro Nacional está disponível para realizar palestras gratuitas para os mais diversos públicos. Já foram visitadas diversas universidades, empresas privadas e públicas, corretoras, con- gressos e outros. Novamente, o intuito é o esclarecimento, in loco, de dúvidas e o fortalecimento da confiança das pessoas no produto, o que parece ser determinante nesse tipo de aplicação no Brasil. Ao longo do ano, o Tesouro Direto participa das mais conhecidas feiras de finanças dedicadas ao varejo no Brasil.14 Nessas feiras, funcionários do Tesouro e da bolsa ficam à disposição do público para diversos esclarecimentos e exemplifi- cações, além da realização de palestras gerais para os participantes. Essas feiras concentram-se nas principais capitais do Brasil, e, com isso, o programa cobre desde o Sul até o Nordeste brasileiro. Isso é extremamente desejável num país de dimensões continentais como o Brasil, onde o costume do pequeno poupador é muito diferente entre as regiões geográficas. A partir de 2009, o Tesouro Direto passou a integrar de maneira mais efetiva os programas de divul- gação e de educação financeira da BM&FBovespa. Esse programa representa um conjunto permanente de ações amplas de aproximação com o público de varejo, com os formadores de opinião e com as instituições financeiras de mercado que deu muito resultado para o mercado de ações e de home brokers no Brasil, observando elevadas taxas de crescimento entre 2002 e 2008. Curiosamente, o TD é um dos produtos que mais se beneficiam da mídia espontânea, por meio de ar- tigos de formadores de opinião, colunistas especializados e reportagens jornalísticas nos principais meios de comunicação. Uma possível explicação remete à facilidade e à qualidade do Tesouro Direto em comparação com produtos semelhantes. Por fim, a maioria das iniciativas de divulgação do programa concentra-se no 12 Ver http://www.tesouro.fazenda.gov.br/tesouro_dieto/. 13 Ver http://www.tesouro.fazenda.gov.br/tesouro_direto/faleconosco.asp. 14 Ver http://www.expomoney.com.br/ e http://www.traderbrasil.com/expo/index.php. 452 Dívida Pública: a experiência brasileira Tesouro Nacional, de onde se aufere que há espaço para campanhas publicitárias de largo alcance, em linha com o que será mencionado na seção 4: Resultados do Tesouro Direto. 3.5 Quais os próximos passos? A área da dívida pública apresentou no primeiro semestre de 2009 um estudo abrangente que reflete o estado atual do TD em termos de amplitude, segmentação, recursos envolvidos, gargalos existentes, uma comparação com a experiência internacional e propostas para que os tomadores de decisão adequem suas funções-objetivos. Certamente, a ampliação da escala nos moldes de outros países estudados passa pela extensão do programa para uma estrutura mais robusta em termos de pessoal e principalmente na formatação do produto de maneira mais simplificada e de fácil entendimento para o público. Por exemplo, seria possível ampliar o canal de distribuição do TD via agências lotéricas e via Correios (Banco Postal). No Brasil, as loterias são um monopólio estatal ligado a um grande banco federal (CEF). As lotéricas são muito utilizadas pelo público de baixa renda porque estendem os serviços da rede bancária para essa parcela da população. Na mesma linha, o Banco Postal configura-se como uma extensão dos serviços bancários para todas as agências dos Correios. Estas, por sua vez, estão presentes na quase totalidade dos 5.561 municípios brasileiros. Desse modo, os títulos públicos poderiam ser uma opção de poupança para o público-alvo do Banco Postal, ou seja, as camadas mais desfavorecidas da distribuição de renda. Essa exten- são não se faz trivial do ponto de vista operacional, de maneira que não se espera mudanças desse tipo no curto prazo. 4 Resultados do Tesouro Direto Dentre os objetivos gerais, alguns resultados serão explicitados nesta seção para dar a medida da abrangência e da evolução do programa. Serão apresentadas informações sobre o estoque de títulos, perfil das vendas, prazos médios dos títulos e o perfil dos investidores. 4.1 Estoque O estoque do TD alcançou o valor de R$ 2,4 bilhões em dezembro de 2008, num significativo incremento de 72% em relação a dezembro de 2007, mas representa apenas 0,17% da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Credita-se esse crescimento ao próprio desenvolvimento do programa e à maior volatilidade vivida pelo mercado de renda variável no mundo e no Brasil, que fez com que muitas pessoas migrassem suas aplicações para títulos públicos, que funcionam como um porto seguro em tempos de crise. Em dezembro de 2008, com cerca de 146 mil investidores cadastrados, sabe-se que 43,6% da- queles que possuem estoque no Tesouro Direto têm aplicações de até R$ 10 mil. Esse número dá uma dimensão da representatividade do pequeno investidor. Para as demais faixas de aplicação, pode-se inferir que o público atesta a qualidade do programa porque, em geral, esse grupo está mais informado sobre as oportunidades oferecidas pelos demais produtos financeiros e reconhece os baixos custos envolvidos no Tesouro Direto. 453 Gráfico 4. Estoque do Tesouro Direto – R$ milhões Fonte: Tesouro Nacional Gráfico 5. Participação histórica dos títulos no estoque Fonte: Tesouro Nacional Observa-se nos Gráficos 4 e 5 que o estoque total do Tesouro Direto, que representa os títulos públi- cos em poder dos investidores dessa modalidade, tem uma distribuição diferente da DPMFi (Dívida Pública Mobiliária Federal interna). No TD, os títulos de maior volume no estoque foram os indexados à inflação, que representam 42,0% do estoque (24,6% para as NTN-Bs, 13,3% para as NTN-Bs principal e 4,3% para as NTN-Cs). Os prefixados têm participação de 38,3%, destacando-se as LTNs com 24,8% do estoque total, ultrapassando R$ 610 milhões. Finalmente, ressalta-se a tendência de queda da participação dos títulos indexados à taxa Selic, que em dezembro de 2005 foi de 28,0% e se reduziu para 19,5% em dezembro de 454 Dívida Pública: a experiência brasileira 2008. De modo geral, o perfil do estoque do Tesouro Direto, concentrado em títulos prefixados e indexados à inflação, antecipou as mudanças ocorridas no perfil da DPMFi em mercado. Destaca-se que em 2004 essas duas categorias representavam cerca de 83% do estoque, ao passo que na DPMFi a representatividade era de apenas 35% do estoque total. Essa é a primeira evidência de que as preferências dos indivíduos não seguem de perto o perfil da demanda de investidores de grande porte, muitos dos quais oferecem esses mesmos títulos ao público indi- retamente, via fundos de investimento. De fato, quando se olha a composição dos fundos de renda fixa dos maiores bancos brasileiros, verifica-se que as LFTs correspondem à maior parte dos ativos.15 Gráfico 6. Participação dos títulos no estoque por título – dezembro de 2008 Fonte: Tesouro Nacional 4.2 Perfil das vendas Corroborando informações da seção anterior, a utilização do programa por pequenos investidores pode ser observada novamente pelo elevado volume de vendas por faixa de aplicação até R$ 5.000,00, cuja partici- pação concentrou 63,2% do volume aplicado em 2008. O Gráfico 6 mostra que cerca de 27% das aplicações ficaram abaixo de R$ 1.000,00. É interessante notar que a distribuição é relativamente estável no tempo. Em 2008, as vendas de títulos públicos totalizaram R$ 1.558,32 milhões, representando aumento de 102,1% em relação ao volume financeiro vendido em 2007, constituindo o melhor resultado desde 2003. Destaca-se a elevada demanda por títulos prefixados (LTN e NTN-F), cuja participação atingiu 45,9%, seguidos dos títulos indexados ao IPCA (NTN-B e NTN-B principal), que representaram 37,7% das vendas. Os títulos mais vendidos no ano foram as LTNs, correspondendo a 30,3% das vendas. Essa tendência perpetua-se desde o início do programa e obviamente se reflete no estoque. Os títulos indexados ao IPCA (NTN-B e NTN-B principal) ficaram em segundo lugar entre os mais vendidos na classificação geral nos meses recentes, superando as LFTs. A explicação para isso se dá, em parte, porque esses títulos são de fácil entendimento e cumprem um objetivo de formação de poupança de longo prazo, ao estilo das instituições previdenciárias, porque protegem 15 Ver Capítulo 5 da Parte 3. 455 o investidor da inflação. Numa economia com boas perspectivas de queda de taxa de juros no médio prazo,16 o investidor pode conseguir uma excelente rentabilidade com os prazos mais longos atualmente oferecidos pelo Tesouro Nacional. O Gráfico 7 mostra as vendas acumuladas no tempo. Gráfico 7. Número de vendas por faixa de aplicação Fonte: Tesouro Nacional Gráfico 8. Evolução das vendas mensais Fonte: Tesouro Nacional 16 Ver expectativas de mercado Focus – Banco Central. 456 Dívida Pública: a experiência brasileira 4.3 Prazos O Gráfico 9 faz uma comparação recente entre a distribuição dos vencimentos dos estoques do Tesouro Direto e a da DPMFi. Percebe-se que o percentual vincendo em 12 meses era muito discrepante, principalmente em dezembro de 2006, quando o Tesouro Direto apresentava percentual bem abaixo comparativamente ao estoque da DPMFi, mas a parcela do estoque com prazos maiores do que cinco anos era praticamente o dobro no âmbito do Tesouro Direto em relação à DPMFi para 2006 e 2007 e sensivelmente superior também para 2008. Assim como no caso comparado da composição dos dois estoques, os pequenos investidores aparentam antecipar as mudanças na estrutura da dívida mobiliária federal. Observe que a queda no percentual vincendo em um ano ocorreu antes e foi mais acentuada no Tesouro Direto do que na dívida doméstica total,17 de maneira que em dezembro de 2006, pouco mais de um terço da DPMFi vencia a cada 12 meses, enquanto no programa esse percentual fica perto de um quarto. Semelhantemente, a parcela com mais de cinco anos cresceu nos dois grupos, mas foi maior e aumentou antes no estoque do TD. Para esse segmento, a mudança foi ainda mais significativa, porque a partir de fevereiro de 2006 os investidores não residentes foram isentados do Imposto de Renda, e estes contribuíram para a melhora do perfil da DPMFi. Essa é a segunda evidência de que há um descompasso entre as preferências dos indivíduos e o perfil da demanda dos investidores de grande porte. Referente aos prazos, o pequeno poupador prefere prazos mais longos porque os custos de transação têm mais impacto para eles do que para os bancos e os investidores institucionais, de maneira que os primeiros não conseguem se beneficiar plenamente das oscilações desse mercado, enquanto os outros conseguem explorar suas economias de escala operacionais e mitigar esses custos. O poupador de varejo também vislumbra prazos maiores porque suas alternativas de poupança desse tipo são limitadas a poucos produtos, com atratividade reduzida em termos de rentabilidade. Gráfico 9. Estoque de títulos por prazo Fonte: Tesouro Nacional 17 Apesar de o Tesouro Direto estar computado na DPMFi, seu estoque e sua composição são insignificantes quando comparados com a DPMFi. 457 4.4 Perfil dos investidores Expostos os resultados do programa em termos de estoque, prazo e andamento das vendas, surge naturalmente o interesse sobre quais características dos investidores estão por trás daqueles números. É importante conhecer o perfil dos demandantes dos títulos do Tesouro Nacional em varejo para melhor ajustar o programa ante suas eventuais necessidades operacionais e conceituais. Informações sobre a ocupação, o sexo, a idade, a localização geográfica e a frequência com que os investidores operam no sistema podem ser usadas para focar os esforços de divulgação e de ampliação do programa. Ao final de 2008, a distribuição dos poupadores do Tesouro Direto encontrava-se bastante diluída entre as 101 diversas profissões listadas nos cadastros. Somente 14 delas tiveram uma representatividade maior do que 1,5% dos participantes. Do total de cadastrados, a profissão mais significante em tamanho é a dos engenheiros, com cerca de 13%, seguida dos servidores públicos federais (7,5%), dos administradores (6,5%) e dos bancários (6,1%). Por proximidade e por facilidade de acesso ao menu de produtos financeiros mais comumente ofertados, esse número é surpreendente na medida em que se esperava que a parcela dos bancários fosse a mais significativa, numa aplicação que requer pequenos volumes monetários. Gráfico 10. Investidores: compras por profissão Fonte: BM&F Bovespa Elaboração: Tesouro Nacional. Para 2007,18 também era possível obter uma medida de atividade dos investidores por profissão. Nesta categoria, os servidores federais eram aqueles que mais participaram do programa, sendo 62,5% deles com- pradores diretos de títulos públicos. Esse fato estava associado às poupanças relativamente elevadas que esses profissionais são capazes de manter comparativamente às outras categorias. Os economistas colocavam-se como a segunda categoria mais ativa por esse critério, o que poderia refletir a maior familiaridade que esse grupo possui sobre os conceitos e os indicadores que afetam o desempenho dos títulos públicos. 18 Para 2008, essas informações não estavam disponíveis quando da revisão deste capítulo. 458 Dívida Pública: a experiência brasileira De modo geral, 38,7% dos investidores que já investiram também fizeram compras nos últimos 12 meses. O Gráfico 11 mostra que os homens são a maioria dos cadastrados no programa e representam 81,4% dos participantes que compraram efetivamente. Contudo, informações históricas mostravam que as mulheres eram mais ativas do que o sexo oposto, pois 54,2% delas já efetuaram ao menos uma compra desde seu cadastro, enquanto somente 45,8% deles adquiriram títulos. Esses números indicam uma maior aversão ao risco do sexo feminino, considerando que títulos públicos estão entre os ativos financeiros mais seguros. É possível que os homens estejam distribuindo mais seus recursos entre aplicações de renda fixa e variável.19 Gráfico 11. Distribuição das compras por sexo – dezembro de 2008 Fonte: BM&FBovespa Elaboração: Tesouro Nacional. A distribuição da faixa etária dos que se voluntariaram no programa se assemelha razoavelmente com a estrutura da população brasileira. Em intervalos de dez anos, os grupos de 20 a 50 anos são respectivamente cerca de 15%, 40% e 23% do total, o que está em linha com a conhecida teoria do ciclo de vida em termos de poupança e produtividade. A faixa de idade na qual as mulheres são mais representativas em proporção aos homens é a de 30 a 40 anos. 19 Em maio de 2007, as mulheres representavam cerca de 22% dos investidores em ações, segundo a Bovespa (www.bovespa. com.br). 459 Gráfico 12. Participação dos cadastrados por idade Fonte: BM&F Bovespa Elaboração: Tesouro Nacional. Por fim, os dados confirmam a concentração dos investidores na Região Sudeste, onde residem 53% dos que mais compram. O Norte e Nordeste brasileiros representam apenas 5,7% do total, e o Centro-Oeste 12%. Nota-se um importante crescimento na participação da Região Sul, a segunda mais rica do país. Desde 2006 intensificaram-se a disseminação de feiras e a expansão de treinamentos nas capitais dos três estados da região. Essa situação está positivamente correlacionada com a concentração de renda nessas regiões, com o nível de escolaridade e com o acesso à informação. Assim, justificam-se esforços do governo para disseminar o programa nas regiões onde ele tem menor representatividade. Gráfico 13. Distribuição geográfica das compras Fonte: BM&F Bovespa Elaboração: Tesouro Nacional. 460 Dívida Pública: a experiência brasileira 5 Experiência internacional O método de vendas diretas de títulos públicos ao poupador individual já é adotado por muitos países, especialmente os desenvolvidos. Como mencionado na seção 1, existem variadas razões que motivam as vendas de títulos públicos ao varejo. O objetivo amplo entre os países que mantêm esses programas varia pouco entre eles. Basicamente se preocupam em oferecer alternativas de baixo custo para seus aplicadores e em diversificar a base de investidores. Para facilitar a comparação, a Tabela 2 coloca em perspectiva os objetivos dos diferentes países.20 De modo geral, esses instrumentos podem ser divididos entre os negociáveis, semelhantes aos adquiridos pelos grandes investidores, e aqueles não negociáveis, desenhados especialmente para o varejo para facilitar o entendimento do público, destacando-se os saving bonds e os lottery bonds. A maioria dos países que conduzem esses programas oferece tanto produtos negociáveis como produtos diferenciados para o público, como pode ser visto na Tabela 3. Isso se deve à existência de uma correlação positiva entre o nível de educação financeira e a demanda por instrumentos negociáveis, porque esse tipo de título geralmente requer um maior entendimento sobre suas características e sobre sua precificação, es- tando isso associado a informações mais específicas sobre o programa. Mesmo que estas estejam facilmente disponíveis, comumente são procuradas por pessoas com maior afinidade e entendimento do mercado de capitais, o que representa uma parcela menor daquelas interessadas no programa. Por sua vez, produtos diferenciados não negociáveis e de fácil entendimento potencialmente são mais abrangentes do que suas outras alternativas.21 Tabela 2. Objetivos dos programas de varejo para países selecionados 20 Para mais detalhes, ver World Bank (2006). 21 Esta explicação está de acordo com Tufano e Schneider (2005), que sugerem a revitalização dos US Savings Bonds. 461 Fonte: Banco Mundial A Suécia, por exemplo, dá muita atenção para seu programa, e, de acordo com o The Swedish National Debt Office, os pequenos investidores respondem por 5,5% do total da dívida do governo central, e o lottery bond é o principal instrumento. De fato, como foi mencionado na seção 3, o Brasil preocupa-se em ampliar os canais de distribuição. Essa tarefa passa pela adequação do produto para aumentar o volume de vendas para alguns segmentos da sociedade. Tabela 3. Instrumentos financeiros públicos disponíveis a pequenos investidores Fonte: Banco Mundial 462 Dívida Pública: a experiência brasileira Restringindo ainda mais a amostra, pode-se destacar alguns países para ilustrar o tipo de acesso dos investidores, a característica dos títulos e apresentar informações sobre a liquidez. A Tabela 4 mostra seis exemplos em que os programas são consolidados e com alguma diversidade geográfica e em estágio de desenvolvimento.22 A maioria dos países dá alguma liquidez para os investidores resgatarem seus recursos antes do vencimento. No caso sueco, os investidores podem vender seus ativos via bolsa de valores local aos preços vigentes. Em todos os exemplos citados existe um leque bastante variado de prazos oferecidos nos títulos, que incluem papéis de seis meses e instrumentos de mais de trinta anos. Isso permite aos investidores montar sua carteira de maneira personalizada, misturando diversos prazos e tipos de instrumentos. Nota-se que todos possuem uma quantidade mínima exigida quando da aplicação, e no Brasil esse limite (cerca de USD 50,00) é possivelmente o menor dentre toda a amostra. Tabela 4. Comparações em países selecionados Fonte: Websites dos governos e outras publicações Alguns países interromperam seus programas na década de 1990 (Dinamarca e Austrália, por exemplo). Questões como o ajuste macroeconômico e a menor necessidade de financiamento desses países, bem como outras questões relacionadas ao funcionamento do mercado, motivaram-nos a suspender suas operações. As razões principais giram em torno da relação custo-benefício intrínseca às atividades desenvolvidas, mas como mostra Thedéen (2004), outros fatores devem ser considerados. Quando se discute a criação de programas desse tipo em diversos países, é preciso identificar os objetivos e os riscos envolvidos, o desenho a ser usado na estrutura da oferta ao pequeno investidor e investigar as precondições para um programa efetivo, legalmente viável e confiável para os usuários. (GLAESSNER; KANTUR, 2004) 6 Comentários finais A literatura econômica destaca que a diversificação da base de investidores é um dos fatores para diminuir o custo da dívida soberana e, principalmente, para torná-la menos frágil a choques financeiros (WHEELER; JANSEN, 2000). A análise dos dados mostra que o Tesouro Direto vem alcançando seus objetivos paulatinamente. Em particular, ele tem sido capaz de atrair investidores de pequeno porte, apesar da pouca publicidade do programa nos meios de comunicação. 22 É importante destacar que a escolha particular desses países reflete somente a maior disponibilidade e facilidade de informações sobre os programas encontradas pelo autor. 463 Ainda que se demonstre que a ampliação do Tesouro Direto significará importante economia para os pequenos poupadores – que terão rendimentos mais altos –, o receio de uma concorrência exagerada com o setor financeiro parece descabido. Certamente, o Tesouro Direto pode estimular mais concorrência entre instituições financeiras, o que traz benefícios para os investidores. Como no caso do efeito da concorrência na diminuição do spread nos empréstimos, aqui também a população ganha com o aumento da eficiência do setor financeiro. O adequado funcionamento da intermediação financeira é a base do crescimento econômico, e a redução dos custos fiscais da colocação da dívida é fonte de alívio para as contas públicas, o que abre espaço para o financiamento do investimento público em infraestrutura e outras áreas essenciais. Diferentemente da maioria dos países analisados, a experiência brasileira conta com um elevado nível de automação e descentralização das decisões pelos investidores, o que apresenta custos muito baixos de manutenção do TD. Isso é feito por meio de sistemas baseados na internet e em ganhos de escala na expertise da BM&FBovespa, parceira do Tesouro Nacional em consolidar as ações de custódia e no relacionamento diário com as corretoras e os bancos como agentes de custódia. Ressalte-se, por fim, que em bom número de países desenvolvidos, inclusive os EUA, mecanismos como o Tesouro Direto convivem sem conflito com o setor financeiro. Isso porque, nessas localidades, a maior parte dos fundos de investimentos não se dedica a apenas carregar títulos públicos de taxas variáveis, mas a ofertar fundos de ações e outras carteiras com maior valor agregado na administração da poupança. Com a redução da taxa de juros observada no Brasil, é de esperar que haja uma mudança na composição dos fundos, de maneira que o Tesouro Direto possa firmar-se como o mecanismo mais efetivo para a distribuição de títulos públicos. Referências BASTOS, Leonardo Faccini Tavares. Tesouro Direto: funcionamento no Brasil e no Exterior, análise de seus riscos operacionais e comparação da performance da NTN-C com fundos de investimento atrelados ao IGP-M. Finanças públicas: IX Prêmio Tesouro Nacional. Brasília: Esaf, 2005. 76 p. Monografia premiada em 3º lugar. Tema: Ajuste Fiscal e Dívida Pública. DIPARTIMENTO DEL TESORO DE ITALIA – DEBITO PUBBLICO. Disponível em: http://www.dt.tesoro.it/ Aree-Docum/Debito-Pub/index.htm. GLAESSNER, T. G.; KANTUR, Z. Two case studies on electronic distribution of government securities: The US Treasury Direct System and The Philippine Expanded Small Investors Program. World Bank Policy Research Working Paper 3.372, August. 2004. HAYES, Roger G. The path to bond market efficiency: how increased retail distribution can lower borrowing costs. Government Finance Review, 2003. Disponível em: http://www.allbusiness.com/business-finance/ equity-funding-stock/580635-1.html. MCCONNACHIE, R. The retail market for government debt. Centre for Central Banking Studies/Bank of England, 1997. RIKSGÄLTEN – SWEDISH NACIONAL DEBT OFFICE. Disponível em: http://www.riksgalden.se/default_ EN.aspx?id=1559. SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL; COMPANHIA BRASILEIRA DE LIQUIDAÇÃO E CUSTÓDIA (CBLC). Regulamento do Tesouro Direto. Disponível em: www.tesourodireto.gov.br. TESORO PÚBLICO DE ESPAÑA. Disponível em: http://www.tesoro.es/ 464 Dívida Pública: a experiência brasileira THEDÉEN, E. Retail borrowing: an important part of the national debt. Swedish National Debt Office, june, 2004. TREASURY DIRECT® – USA. Disponível em: http://www.savingsbonds.gov/. TUFANO, P.; SCHNEIDER, D. Reinventing savings bonds. Harvard Business School, 2005. WHEELER; G.; JENSEN, O. Governance issues in managing the government’s debt. World Bank Handbook on Public Debt Management. World Bank, 2000. WORLD BANK. Retail government debt programmes: practices and challenges. Bozena Krupa, Eriko Togo and Antonio Velandia (Treasury). World Bank, 2006. 465